Portador do Segredo Pontifício

No fim da missão diplomática em Portugal, D. Alfio Rapisarda recorda a assinatura da Concordata, e explica os processos de nomeação de bispos.

D. Alfio Rapisarda finalizou o processo de revisão da Concordata nos 6 anos que esteve em Portugal como Núncio Apostólico. Em entrevista à Ecclesia, diz que foi testemunha das boas relações entre a Igreja e o Estado, o mesmo que chega a desconsiderar a matriz cristã da cultura portuguesa. Antes de deixar Portugal, explicou ainda os processos de nomeação dos bispos, o que sente com mais responsabilidade na missão do Núncio, “chegou mesmo a não me permitir dormir”.

Nova Concordata
Ecclesia – Fica na História da Igreja Católica e de Portugal pela assinatura de Concordata, em 2004. Será esse o facto mais importante da missão diplomática no nosso País?
D. Alfio Rapisarda – Eu considero a assinatura da Concordata, por ser a mais eloquente expressão do espírito de cooperação e colaboração que caracterizam as relações entre a Santa Sé e Portugal, o ponto mais alto da minha permanência em Portugal (reconhecendo, no entanto, que quando cheguei a negociação já estava muito avançada).
A Concordata, como eloquentemente afirmou o Presidente da Assembleia da República, Dr. Jaime Gama, “corporiza de forma feliz o espírito de sincera e leal colaboração entre o Estado e a Igreja”.

E- A Concordata é um privilégio da Igreja Católica?
AR – Não é! A Concordata é um acordo entre duas entidades que se reconhecem livres, soberanas e independentes, como são o Estado e a Igreja, e que, como tal, se aceitam; a Concordata é acordo que estabelecem entre si, para melhor se definir o papel complementar que a cada uma das partes compete, em vista a uma melhor e mais eficiente colaboração para o bem da comunidade que as duas se propõem servir, cada uma no seu papel específico e segundo as suas próprias competências.

E – Porque tarda a regulamentação da Concordata? 

AR – Houve uma demora. Eu mesmo tive, várias vezes, de “queixar-me” disso… Agora posso dizer que as coisas estão prosseguindo e tenho confiança que se chegará, quanto antes, a conclusões que verdadeiramente possam executar o que está estabelecido na Concordata.

E – De quem depende esse processo?
AR – Depende de duas comissões: a paritária e a bilateral. Estas duas comissões estão a trabalhar (houve uma interrupção por causa das férias do Verão e espero que quanto antes possam retomar os trabalhos que já estavam avançados…)

E – A designação de representantes aconteceu em tempo útil?
AR – Bom… Houve uma substituição da Comissão do Governo, que terá um novo presidente, porque o anterior foi nomeado embaixador na Itália. Espero que o Governo faça, quanto antes, esta nomeação, para que possa começar a trabalhar. A Comissão da Santa Sé é sempre a mesma.
Como Núncio dou todo o apoio, mas o trabalho é deles.

Igreja/Estado:
relações óptimas entre sinais de falta de consideração pela cultura cristã

E – Como avalia as relações Igreja/Estado, em Portugal?
AR – Sem entrar em pormenores, direi, antes de mais, que falar de relações Igreja/Estado é o mesmo que falar de relações Santa Sé/Estado, entendendo-se por Santa Sé o organismo central da Igreja Católica e, como tal, como dizia Paulo VI, a própria personificação da Igreja.
Todos verificamos que, no país, as relações entre a Igreja e o Estado são melhor que boas, sem precisar de as qualificar de óptimas ou excelentes. Pessoalmente estou muito contente por ter podido desempenhar a minha missão de Núncio Apostólico num período em que não só foram estreitadas as relações entre a Santa Sé e Portugal, como foi possível verificar a bondade e a eficácia dessas relações, com a assinatura da nova Concordata, que considero (como disse) a mais eloquente expressão do espírito de compreensão e de colaboração que caracterizam as relações entre a Santa Sé e Portugal.
Seguiram-se depois as visitas oficiais ao Vaticano dos Presidentes da República, Dr. Jorge Sampaio, em Novembro de 2004, e do Prof. Cavaco Silva, a 28 de Junho deste ano. Ocorreram ainda as visitas a Portugal de dois Legados Pontifícios: o Cardeal Angelo Sodano, antigo Secretário de Estado, a 13 de Maio de 2007, e o Cardeal Tarcisio Bertone, actual Secretário de Estado, a 13 de Outubro seguinte.

E – Com esse espírito de compreensão e colaboração, como explicar propostas legislativas e de organização social que são contrárias às perspectivas da Igreja Católica?
AR – Eu sempre tive a ocasião de falar aberta e lealmente com as autoridades e explicar o ponto de vista da Igreja.
A Igreja não quer impor a sua posição, mas exige o direito que tem de expressar a sua opinião. Neste sentido, apelamos à consciência dos católicos, sobretudo dos católicos que exercem algum cargo público. Deles exigimos que dêem testemunho das confissões religiosas que professam. E esse é o verdadeiro problema!

E – O facto de se legislar a favor do aborto, facilitando o divórcio ou tentando legalizar o casamento de homossexuais não constitui um sinal de que a voz da Igreja tem cada vez menos relevância?
AR – Apenas digo que a Igreja tem a sua posição. A Igreja acredita firmemente que o matrimónio tem uma finalidade precisa. O matrimónio é uma coisa, outro tipo de convivência é outra coisa.

E – Defende a existência de uma “laicidade positiva” nas relações entre a Igreja/Estado?
AR – Em várias ocasiões, o Papa Bento XVI tocou o tema da laicidade do Estado, definindo-a como “legítima”. Por ocasião da sua visita à Assembleia da República de Itália, em Outubro de 2005, disse que “a Igreja não quer reivindicar nenhum privilégio para si, mas somente ter a possibilidade de cumprir a missão que lhe é própria no respeito pela legítima laicidade do Estado”.
Para a Igreja o Estado deve ser laico, no sentido próprio da palavra. Isto é, não deve professar, proteger ou criar obstáculos a nenhuma religião legitimamente estabelecida no seu território. Se me é permitida a expressão, o Estado deve ser “a-religioso”. Isto é, nem a favor, nem contra a religião, sendo a sua razão de ser e a sua finalidade o bem-estar dos cidadãos, o bem comum, como costumamos dizer. O Estado deve ter em conta, deve respeitar e até promover a dimensão religiosa de todos os cidadãos, fazendo de maneira que todos e cada um se possa sentir realizado do ponto de vista religioso. Isto é, que todos possam professar, praticar, proclamar livremente, em privado e publicamente, a própria fé, e até mesmo não professar religião nenhuma. E isto para que todos e cada um dos seus cidadãos – desde o mais humilde na sociedade até a quem ocupa um cargo público ou faz política – possam viver e agir de acordo com a própria convicção religiosa.
Para mim, a laicidade não tem nenhuma qualificação: não há uma laicidade positiva ou negativa. Laico, basta. Se qualificamos, estamos perdidos…

E – E em Portugal vive-se essa laicidade, com a possibilidade de professar, em privado ou publicamente uma religião?
AR – Eu acho que sim. Eu assisti várias manifestações do povo que vive a sua religião. Nunca encontrei um problema.

E – Mas, por exemplo, que sinal constitui o retirar o crucifixo de espaços públicos? 

AR – Pode ser um final de falta de consideração pela cultura cristã do po vo. As sondagens dizem que Portugal é o país mais católico da Europa. E o Estado deve reflectir esta situação!

Nomear Bispos
E – Qual a importância da “gestão” dos processos de nomeação de Bispos no trabalho de um Núncio?
AR – A nomeação de um Bispo é uma coisa delicada. Não é um concurso público!
Para nomear um bispo apresenta-se uma documentação ao Papa, que a Nunciatura é responsável por elaborar. Para isso, são consultados bispos, padres, religiosos e religiosas, leigos e leigas. Isto não se diz, porque não se pode dizer publicamente. Mas eu posso assegurar que os fiéis, através dos leigos e leigas, tem o seu parecer manifestado. E tenho de dizer que eles dão testemunho com muita seriedade e com precisão que me edificam muito.
Quero assegurar à opinião pública que o estudo para se chegar à nomeação de um bispo é conduzido com seriedade, com muita reflexão, para que o Santo padre possa tomar a sua decisão, com o conhecimento da realidade da diocese que o novo Bispo tem de exercer.

E – Mas há casos em que Dioceses estão muito tempo sem Bispo. Isso não é negativo?
AR – Às vezes acontece, porque é necessário tempo para preparar os processos.

E – Foi o que aconteceu com a Diocese de Portalege-Castelo Branco, por exemplo?
AR – Para a diocese de Portalege-Castelo Branco, o dossier foi apresentado em Roma entre Abril e Maio, quando a Congregação para os Bispos tinha outros em análise. Entraram as férias do Verão e tudo parou! Foi por isso o atraso, não houve outra coisa, em absoluto! E temos de considerar também estas coisas…

E – Quanto tempo é necessário para concluir um processo de nomeação de um Bispo?
AR – Geralmente, para prover uma diocese, são necessários entre 5/6 meses e um ano. Isto em toda a parte do mundo!

E – Também por isso, pelo tempo que o processo exige, será legítimo pensar em alterá-lo, fazendo-o depender mais da comunidade a que o Bispo se destina?
AR – A nomeação não pode ser pública, porque é delicado! Posso assegurar que estamos muito atentos em escutar o ambiente da Diocese. Porque é importante escolher uma pessoa que possa responder às exigências da Diocese. Por isso, escutar primeiramente os Bispos, porque conhecem a realidade, depois os padres que trabalham e estão em contacto directo e o povo que vive lá concretamente. Estas pessoas são consultadas.
Naturalmente que tudo isto faz-se com reserva, em segredo pontifício.
Outro aspecto: ao Papa são apresentados 3 candidatos. O Papa vai escolher um. Se eu faço saber que há nomes não escolhidos, geram-se uma série de perguntas…
Além disso, o escolhido tem toda a liberdade de aceitar ou não. Quando o Papa designa um Bispo, a primeira coisa que eu faço é falar com ele. Ele pode dizer-me: não aceito! E isso aconteceu, várias vezes.

E- No tempo que esteve em Portugal? 

AR – Bem, deste tempo não quero falar, mas noutros lugares aconteceu!
Ainda mais: é o Papa que nomeia, que faz as escolha, independentemente de todas as considerações.
A nomeação de um Bispo exige muita seriedade, muita discrição e sempre foi o que mais senti com sentido de responsabilidade, que chegou mesmo a não me permitir dormir. Porque é muito sério! É a coisa que mais responsabilidade tem um Núncio, onde a colaboração dos bispos é muito importante.

E – Não aconteceu a visita do Papa a Portugal durante este período. Teria tido gosto em o receber, por certo…
AR – Teria tido gosto… talvez se se chegasse à canonização dos pastorinhos ou à beatificação da Irmã Lúcia!
A causa está adiantada porque estão a estudar o milagre, mas não sabemos. Nestes casos a Igreja anda muito devagar.

E – Aconteceu, isso sim ,a visita Ad Limina do Episcopado Português a Roma. Que ocasião foi essa para a Igreja católica em Portugal?
AR – A visita Ad Limina é uma ocasião para revitalizar, para tomar mais consciência e naturalmente sentir que o Santo Padre verdadeiramente acompanha a vida e a missão da Igreja. Eu próprio tive um encontro com o Santo Padre no dia 5 de Setembro, que foi excelente.

E – Ele tem vontade de vir a Portugal?
AR – Vontade tem. Mas, por enquanto, não temos um motivo para ele vir cá (o que pode acontecer com a canonização dos pastorinhos de Fátima)

Biblioteca para a Católica
E – Com a doação da biblioteca da Nunciatura para a Universidade Católica, o que fica mais disponível aos leitores?
AR – Trata-se da biblioteca do Cardeal Cerici, que foi aqui Núncio Apostólico. Tem livros de uma certa preciosidade!
Eu informei a Secretaria de Estado que tínhamos esta biblioteca valiosa e manifestei o desejo de a entregar à Universidade Católica, como manifestação de apreço pela nossa universidade, que merece isto! E fiquei muito satisfeito com a autorização da Secretaria de Estado. Espero que contribua para o prestígio que a Universidade tem e a possa colocar á disposição de todo o mundo…

E – E a documentação da Nunciatura?
AR – Foi enviada toda para o Vaticano. Aqui apenas ficaram os documentos dos últimos dois Núncios, porque seria impossível guardar tudo aqui.

Núncio “em casa”
E – Que memórias guarda da missão diplomática em Portugal?
AR – Quase sempre me perguntam, ao deixar um país onde estive como representante do Santo Padre, o que recordo da minha estadia. Respondo sempre que o que me foi dado experimentar e o que recordo com satisfação, sobretudo do ponto de vista eclesiástico, é o clima de família que eu respirei. Um clima de família que me fez sentir como em casa própria. Tanto com o clero e os religiosos, nas relações com os senhores bispos e os sacerdotes, como com os fiéis em geral e, acrescento, mesmo com as autoridades civis pela deferência que me foi concedida.
Também em Portugal me sinto como em família. Esta é a memória, a lembrança que trago comigo e que conservo dos anos da minha permanência no meio de vós.
Desejo acrescentar a minha admiração, que guardarei também com satisfação e alegria, pelo zelo com que o Episcopado, colegialmente e cada bispo em particular, como também os padres e as pessoas comprometidas na Igreja, desempenham o seu ministério apostólico, suportando com perseverança e fidelidade o evangélico peso do dia e o calor da preciosa vinha do Senhor, que é Portugal.
Foi-me muito consolador verificar – e pude fazê-lo durante a minha permanência no País – como o bom povo português não se inibe de professar as próprias convicções religiosas, permanecendo fiel às suas nobres tradições

E – Sente-se realizado enquanto padre, bispo e diplomata da Igreja Católica?
AR – Eu considero o serviço diplomático da Santa Sé um verdadeiro serviço. E sobretudo um serviço pastoral. Porque a missão do Núncio é representar o Papa, que é o Pastor Universal da Igreja, e ajudá-lo no governo da Igreja. Eu estou aqui para, de uma certa maneira, ser o espelho do Papa, a preocupação e a afeição que o Papa tem para com a Igreja que está em Portugal.
Por isso, sinto-me sinceramente realizado, satisfeito. Sobretudo sinto-me sempre acolhido e tratado como Padre e como Bispo, que para mim é o essencial.
Agradeço ao Senhor por me ter dado a oportunidade de exercer o meu sacerdócio e o meu episcopado para servir o Pastor Universal da Igreja e servir, através dele e com ele, o Povo de Deus, a Igreja, que é a mesma em todos os países.

E – Do seu trabalho em Portugal fica essa marca de proximidade com todos?
AR – Quando cheguei aqui comecei como se estivesse em minha casa…
Comecei em 1962, na missão diplomática. Em todos os lugares onde estive, encontrei a mesma Igreja.
Cheguei aqui com esta convicção e sempre me senti assim! Respirando este clima de família!
Vivi aqui esta experiência, neste país que merece ser chamado o “Jardim da Europa” e, sobretudo, a “Terra de Santa Maria”.

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