Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Uma metáfora que mudaria. Um caminho que acrescentaria. Quem sou eu para ter esta opinião após a leitura da envolvente nova Encíclica do Papa Francisco intitulada “Dilexit Nos”? Um ninguém que gosta de pensar, sendo mais na qualidade de ninguém que gostaria de oferecer duas ideias ligadas a uma metáfora e a um caminho para colmatar uma ausência que senti nesta Encíclica.
Uma das impressões recorrentes nos escritos do Papa Francisco é a linguagem de proximidade e a consciência dos sinais dos tempos que vivemos. Em “Amou-nos”, o Papa procura recuperar o significado de coração num sentido mais amplo que abrange a totalidade daquilo que somos. E orienta o nosso coração para o Coração de Jesus. As inúmeras citações das experiências dos Santos a esse respeito mostram a intemporal importância desta experiência de nos unirmos ao Coração de Jesus. Será na leitura dos sinais dos tempos que o Papa Francisco usa uma metáfora que eu mudaria: a sociedade líquida. E será no convite a fazer a experiência do Coração de Jesus que senti a ausência de um caminho que conheci ao ler o Cardeal Tomáš Špidlík. A razão para mudar a metáfora é defeito profissional.
Um líquido é um fluido, diferente de um gás que também é fluido. Em engenharia, sobretudo na Engenharia Mecânica, estudar o comportamento dos fluidos é essencial pela sua presença em inúmeras aplicações. Por isso, quando se usa um líquido como metáfora para expressar algo negativo, não posso deixar de pensar noutras leituras mais positivas que podem diminuir o valor do propósito pretendido com essa metáfora.
Numa sociedade de consumo em série, que só cuida daquilo que possui no momento, e vive ao sabor dos ritmos sem paciência para aprofundar as questões que surgem das assimetrias sem sentido, vive na superficialidade e ao sabor da maré sem rumo. Porém, podia usar a metáfora “líquida” como forma de ver a sociedade num sentido mais positivo. Pois, a sociedade faz-se a partir das pessoas, e cada um de nós poderia ser como um navio onde Deus é o timoneiro que nos conduz pela maré da Sua Vontade, aonde Ele quiser levar-nos, deixando que sejam os eventos do presente a definir o nosso rumo. Por outro lado, um “mundo líquido” dá a entender que não tem estrutura, como se fosse um ser humano sem esqueleto. Esse esqueleto, metaforicamente, seria a nossa interioridade. Mas podemos olhar para a metáfora de um “mundo líquido” como aquele que se ajusta às vicissitudes, adaptando-se aos sinais do tempo, como qualquer líquido que se ajusta à forma do recipiente, em vez da rigidez de comportamentos que nos impede de evoluir interiormente.
Para um engenheiro mecânico, o líquido é a génese de metáforas mais positivas. Por isso, a liquidez do mundo e da sociedade possuem duas faces de uma moeda, uma positiva e outra negativa, sendo, na minha opinião, uma metáfora frágil. O objectivo do Papa Francisco ao usar esta metáfora é o de chamar a nossa atenção para um mundo que experimenta a falta do coração, como se fosse um mundo sem palpitar vivente, vazio, seco e amorfo. Um mundo saturado de cores ciberculturais, movimentos fugazes, sem razões profundas, mas que vive antes de gratificações instantâneas. Um mundo hidrofóbico porque não se deixa sequer molhar pela água que dá vida e sacia a sede de infinita profundidade. Um mundo viral e esta é a metáfora para a qual mudaria a líquida.
Um mundo viral não tem outra hipótese senão parasitar para sobreviver. Os vírus não têm coração e reproduzem-se à custa dos organismos que parasitam. O problema da sociedade viral que retira o coração do ser humano no sentido da totalidade do seu ser, ou desvaloriza o coração, é o de fazer do ser humano um vírus. Pessoas que vivem e se alimentam das células sociais para reproduzir os seus estilos de vida superficial por toda a comunidade humana. Um ser humano que procura o seu coração no Coração de Jesus, recupera-o, deixando de ser vírus para se transformar em célula. Mas uma vez que recupera o seu coração, importa aprender como mantê-lo unido ao Coração de Jesus, sendo aqui que senti a falta de um caminho em particular. O caminho da Arte de Purificar o Coração.
Em 1999, o Cardeal Špidlík publica um pequeno, simples e acutilante livro sobre a Arte de Purificar o Coração. Não é uma ideia, mas profundamente enraizada nos passos a dar para fazer caminho nessa experiência. Esta Arte possui diversos elementos, mas um passo em particular desse caminho que Špidlík chama a nossa atenção é o método físico que encontramos no monge Nicéforo quando reflecte sobre a sobriedade e o cuidado do coração. Um método que usa o corpo para atingir a concentração mental que pode unir-nos a Deus pela oração em qualquer lugar e circunstância. Não um método que nos aliena daquilo que se passa à nossa volta. Pelo contrário, como diz a monja beneditina Joan Chittister no seu livro de meditações “O Sopro da Vida Interior” sobre a oração — «Quando estamos verdadeiramente embrenhados na consciência da presença de Deus em nós, compreendemos que é próprio da natureza de Deus – que é omnipresente – estar em todos como está em nós.» O método físico de Nicéforo do século XIII em que usamos o corpo para cuidar do coração é —
«Sabes perfeitamente que o ar que respiramos, uma vez inalado, sai pelas nossas narinas sobre a forma de sopro. Ora bem, ao respirá-lo respiramo-lo tendo em vista o coração. Efetivamente, o coração é a fonte da vida e do calor do corpo. O coração chama, pois, assim o sopro, a fim de, através da expiração, exalar o seu próprio calor e manter para si mesmo uma boa temperatura. (…) Deste modo o coração, ao chamar a si o ar frio pela aspiração, e ao expelir o ar quente, está a cumprir, sem nunca a transgredir, a ordem para que foi estabelecido, e dominar desse modo a natureza do vivente.
Tu, portanto, sentado na calma da tua cela, recolhe a tua mente, fala entrar pelas narinas, lá por onde o sopro penetra no coração. Empurra-a, forçando-a a juntar-se ao sopro inspirado no coração. E uma vez ela aí, bafejada pela alegria que é um dom da graça divina, acontecer-te-á uma coisa extraordinária: viverás com júbilo inefável o prazer indizível da união da mente com a alma!»
O desafio será fazer da simples e quotidiana respiração, um caminho de oração, para uma maior união do nosso coração ao Coração de Jesus.
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