Documento sublinha importância da relação humana, perante desenvolvimento tecnológico
Cidade do Vaticano, 24 out 2024 (Ecclesia) – O Papa publicou hoje a quarta encíclica do pontificado, ‘Dilexit nos’ (amou-nos), em que alerta para um mundo sem “coração”, preso ao consumo e à violência.
“Hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a distrairmo-nos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas”, escreve Francisco, num texto dedicado à devoção ao Coração de Jesus.
O Papa sublinha que o amor de Cristo está “fora desta engrenagem perversa”, abrindo lugar para o “amor gratuito” e contrariando a lógica da violência.
“Assistindo a sucessivas novas guerras, com a cumplicidade, a tolerância ou a indiferença de outros países, ou com simples lutas de poder em torno de interesses de parte, podemos pensar que a sociedade mundial está a perder o seu coração”, adverte.
“Ver as avós a chorar sem que isso se torne intolerável é sinal de um mundo sem coração”, acrescenta o Papa.
Além dos ensinamentos de vários pontífices, a encíclica cita Homero ou Dostoievski, reflexões de teólogos, místicos e filósofos, além de pensadores contemporâneos como Han Byung-Chul.
“O algoritmo que atua no mundo digital mostra que os nossos pensamentos e as decisões da nossa vontade são muito mais padronizados do que pensávamos. São facilmente previsíveis e manipuláveis. Não é o caso do coração”, indica a encíclica.
Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o humano”.
Num texto com 220 pontos, divididos por cinco capítulos, uma introdução e uma conclusão, Francisco aponta o dedo a “uma sociedade cada vez mais dominada pelo narcisismo e pela autorreferencialidade”, falando numa “sociedade anticoração”, sem capacidade para “relações saudáveis”.
O Papa recorda que, na piedade católica, se recorre ao símbolo do coração para “exprimir o amor de Jesus Cristo”.
“Há quem se interrogue se isto tem atualmente um significado válido. Porém, é necessário recuperar a importância do coração quando nos assalta a tentação da superficialidade, de viver apressadamente sem saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência”, observa.
O nome da encíclica vem de uma passagem da carta de São Paulo aos Romanos (Rm 8, 37), sobre o amor de Cristo.
O coração, recorda Francisco, é apresentado, desde a antiguidade, como “centro unificador” do ser humano, nas suas várias dimensões.
“Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração”, indica.
A encíclica aponta à “verdade íntima de cada pessoa”, muitas vezes “escondida debaixo de muita superficialidade”, impedindo que se coloquem as “perguntas decisivas” da existência.
Movemo-nos em sociedades de consumidores em série, preocupados só com o agora e dominados pelos ritmos e ruídos da tecnologia, sem muita paciência para os processos que a interioridade exige”.
O Papa pede espaço para o diálogo, nas comunidades, com um coração “capaz de compaixão” para promover gestos de fraternidade e solidariedade.
A encíclica encerra-se com uma oração do Papa, para que o mundo, “que sobrevive entre guerras, desequilíbrios socioeconómicos, consumismo e o uso anti-humano da tecnologia, recupere o que é mais importante e necessário: o coração”.
OC
‘Dilexit nos’ surge depois das encíclicas ‘Lumen fidei’ (2013), que recolhe reflexões sobre a fé iniciadas por Bento XVI; ‘Laudato si’ (2015), documento que propõe uma ecologia integral, abordando questões sociais e ligadas ao meio ambiente; e ‘Fratelli tutti’ (2020), que recolher as reflexões de Francisco sobre a fraternidade e a amizade social.
A palavra ‘encíclica’ vem do grego e significa ‘circular’, carta que o Papa enviava às Igrejas em comunhão com Roma, com um âmbito universal, onde empenha a sua autoridade primeiro responsável pela Igreja Católica. O Papa mais prolífico neste tipo de cartas é Leão XIII, com 86 encíclicas – embora muitos desses textos fossem, nos nossos dias, classificados como cartas apostólicas ou mensagens; São João Paulo II escreveu 14 encíclicas e Bento XVI três. A encíclica é uma forma muito antiga de correspondência eclesiástica, dado que na Igreja os bispos enviavam frequentemente cartas a outros bispos, para assegurar a unidade entre a doutrina e a vida eclesial. Bento XIV (1740-1758) reavivou o costume, enviando “cartas circulares” a outros bispos, abordando temas de doutrina, moral ou disciplina que diziam respeito a toda a Igreja; com Gregório XVI (1831-1846), o termo encíclica tornou-se de uso geral. |
«Dilexit nos»: Papa sublinha importância e atualidade da devoção ao Coração de Jesus
«Dilexit nos»: Papa adverte para «forte avanço da secularização»