Nota de D. Joaquim Gonçalves sobre o Ano paulino

«O Ano Paulino: a força do autógrafo» 1 – Quase todas as semanas somos informados da apresentação de livros ou de pinturas de artistas desta região de Trás-os-Montes e Alto Douro aos amigos dos autores e à sociedade em geral. Haverá nesse gesto a legítima promoção das obras apresentadas, mas há também o sentimento de «dar um rosto» à obra apresentada. A presença física do autor e o autógrafo gravado a quente em cada obra humanizam a obra, dão-lhe calor, ajudam o público a senti-la por dentro, retirando-a do anonimato da prateleira ou da frieza de uma exposição. A obra artística perde o tom frio de um objecto comercial igual a tantos outros e passa a ser um ser vivo, saído do «coração» do autor ali presente. 2 – Isto pode ajudar-nos a perceber a originalidade e o mistério da Bíblia. O seu autor está sempre presente junto do leitor. De uma edição da Bíblia pode alguém fazer a sua apresentação por causa da sua antiguidade, do luxo da encadernação ou das iluminuras do texto, mas não da mensagem nela contida. O melhor da Bíblia não é a expressão artística, mas a mensagem de Deus que nos fala através dos textos e dos recursos artísticos. É o que se quer dizer ao chamar-lhe «livro inspirado»: o autor da Bíblia é o próprio Deus e só Ele pode «dar autógrafos», imprimir «dedadas» no coração do leitor. Isto não quer dizer que o texto da Bíblia haja sido ditado letra a letra ou frase a frase pelo próprio Deus, como dela pensavam os antigos rabinos e pensam os muçulmanos acerca do seu livro «O Corão». O texto bíblico foi redigido por homens que lhe imprimiram o seu cunho pessoal, utilizando os elementos históricos e literários de que eram possuidores, podendo chamar-se por isso verdadeiros «autores» dos textos. É possível aproveitar os muitos e belos recursos artísticos presentes na Bíblia, como fez Camões nos «Lusíadas» para evocar a batalha de Aljubarrota, mas ficar aí seria um empobrecimento do texto bíblico, uma espécie de laicismo. Outro dos elementos usados pelos escritores para a revelação da mensagem de Deus é a história dos antigos Hebreus. Trata-se dos antigos Hebreus enquanto «Povo de Deus». Não se faz, contudo, um tratado rigoroso da história hebraica, pois não é essa a finalidade da Bíblia, mas somente na medida em que isso interessa à finalidade reveladora. Por esse motivo, falar de «inspiração» da Bíblia é diferente de falar de «inerrância» histórica da Bíblia ou ausência de erro: a Bíblia não tem erros acerca da mensagem religiosa a transmitir, mas pode conter inexactidões históricas, geográficas, de astronomia ou de ciências naturais. Os textos do Antigo Testamento foram escritos durante os últimos nove séculos da vida desse povo, antes de Jesus. Após a vinda de Jesus, o Messias prometido a esse Povo, a história posterior de Israel deixa de ser considerada como portadora de qualquer mensagem especial, sem que isso justifique sentimentos de anti-semitismo. Da comunidade nascida dos seguidores de Jesus, a que Paulo chama o novo Israel, nascerão outros textos portadores de mensagem de Deus e que formam a segunda parte da Bíblia ou Novo Testamento, a acrescentar aos que já vinham dos antigos Hebreus. 3 – Ao ler a Bíblia é, portanto, indispensável ter consciência de que Deus quer falar ao leitor por meio daquele texto: pela história e por parábolas, por exemplos edificantes e pelo fracasso, por linguagem comum e por números. A Bíblia dirige-se à inteligência e ao coração do homem religioso, ensina e faz sentir. Escreveu o célebre jesuíta Luís Alonso Schokel, professor do Instituto Bíblico de Roma, que «a Bíblia contém doutrina e contém força; no contexto do Logos ensina, no contexto do Espírito dá força». Há obras clássicas justamente célebres pela sua mensagem e beleza, como a Odisseia e a Ilíada de Homero, a Eneida de Virgílio, o Hamlet de Shakespeare, os Lusíadas de Camões ou o D. Quixote de Cervantes. Essas obras podem ser exemplares de comportamentos humanos e éticos, e de beleza artística, mas não são portadoras oficiais da mensagem de Deus. A Bíblia é o único caso histórico em que isso acontece. É, pois, muito delicado falar dos textos bíblicos como «as mais maravilhosas histórias do mundo» ou da «magia das histórias da Bíblia», como se ouve dizer na promoção de edições e de filmes, colocando a Bíblia ao nível dos contos exemplares da literatura mundial. Compreende-se a boa intenção, mas alerta-se para a ambiguidade da expressão. 4 – Na fidelidade à proposta do Papa, faça o leitor a revisão da sua vida pessoal e do seu grupo. Os livros litúrgicos usados na Missa (Leccionários e Evangeliários) contêm os extractos mais significativos da Bíblia, dispostos de maneira a fazer compreender o seu dinamismo interno e a mensagem nela revelada. A leitura desses textos pode constituir mesmo uma iniciação à leitura da Bíblia. Compreende o leitor por que motivo se organizam as leituras litúrgicas de modo que a primeira, extraída do Antigo Testamento, seja o anúncio do que depois se realiz ou em plenitude no Evangelho, a terceira leitura? O Antigo Testamento é como que a semente, a raiz da árvore que desabrocha no Novo. Compreende por que razão se leva em cortejo o livro dos Evangelhos, e, na altura própria, todos se colocam de pé, incluindo o Bispo e o Papa, e se incensa e beija o livro dos Evangelhos? A palavra proclamada é inseparável de Jesus Ressuscitado, presente pelo Espírito Santo. Acha «excessivo e cerimonioso» o tempo dedicado à liturgia da Palavra na Missa (leituras, cântico do salmo, reflexão, silêncio)? É que não se trata de dar uma breve informação jornalística, satisfazer uma curiosidade, mas de interiorizar a mensagem religiosa e essa entra pelos olhos, pelos ouvidos, pelo ritmo, pelo olfacto. Nas celebrações, quando é chamado a fazer as leituras, coloca o leitor brio e sensibilidade afectiva na dicção, na divisão e paragem das frases? Sente que essa arte da proclamação ajuda o ouvinte, prolongando o trabalho dos escritores que escolheram linguagem apropriada para transmitir o mistério de Deus? D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real

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