Luís Silva, Diocese de Aveiro
A pergunta… Para que se acerte na resposta!
O eterno desafia o tempo e isso coloca o tempo em estado de permanente ‘crise’. Emergirá, sempre, fruto desse desafio constante, uma condição de identificação e diferença, insanável e sempre marcada por uma (quase) essencial tensão. É sedutor, aliás, concluir que a morte será o findar dessa tensão, pela resolução que a visão crente considera que será de vitória do eterno mas que, na visão descrente, findará com a vitória do tempo.
A esta luz, decidi caminhar com os muitos que se têm interrogado sobre como ler o estado do ‘(des)encontro’ do cristianismo com a contemporaneidade.
Têm-se multiplicado as interrogações sobre como deverá o cristianismo proceder para se adequar aos tempos e mudar o que deve mudar. (A imutabilidade é uma impossibilidade, pois é um facto: o objeto parado, ‘pretensamente imutável’ sofre a erosão própria do tempo; a questão não é essa. A questão está em saber que lugar tem o que se muda no efetivo processo de encontro com o outro perante quem se muda e quanto da mudança deve ser essencial ou, sequer, se a mudança é o fim pretendido…)
O desafio não é negligenciável, mas, arrisco dizer, como premissa da minha reflexão, que é o do cristianismo com todas as suas contemporaneidades. A de agora é a contemporaneidade que nos cabe viver, distinta das contemporaneidades com que se cruzaram S. Paulo, ou S. Agostinho, ou S. Tomás ou Chesterton, ou… ou…
Todas foram distintas, na sua conjuntura, mas comuns, na sua condição de ‘críticas’, de estado de ‘crise’.
Temo – confesso-o! – que se pretenda, pela primeira vez na história, resolver o desafio pelo lado que distinguiria a nossa contemporaneidade das demais: pela via do ‘encerramento’ da condição crítica, de ‘crise’.
Como, acima, aludi, a condição tensional é intrínseca a este ‘encontro’, feito de ‘identidade e diferença’, identidade e distinção.
A resolução tem passado, sempre, pela garantia da tensão sem desequilibrar para um dos lados: nem afirmando exclusivamente a diferença (tornando-a opaca, como pretenderam resolver os cátaros e albigenses e tantos outros), nem em exclusivo a identidade (como pretendiam, por exemplo, os arianos ou os pelagianistas).
Encontrar este equilíbrio tensional é o maior desafio cristão, mas também um dos seus traços mais sedutores e cativantes.
Procurar a resposta ao desafio só se pode fazer se a pergunta for a adequada. Não há diagnóstico adequado sem perguntas adequadas que nos coloquem na busca da intervenção mais adequada possível.
Sente-se, em muitas das interrogações com que é enfrentado este desafio, um certo ‘errar o alvo’.
Se a pergunta for, insistentemente, ‘o que deve o cristianismo mudar para poder permitir o encontro com o mundo contemporâneo?’, o ponto estará centrado, fundamentalmente, no lado que respeita à ‘identidade’ entre cristianismo e contemporaneidade, negligenciando o lado da ‘diferença’. Não bastará, também, perguntar sobre ‘como’ pode o cristianismo garantir a sua diferença. Perguntar sobre ‘como’ já é estar na segunda etapa das interrogações sem se ter formulado a primeira.
E, nessa primeira ordem, a pergunta, pressupondo que se está certo de que deve haver um ‘encontro’, um ‘diálogo’, é a que deve incidir sobre ‘o que deve permanecer quando ocorrer a mudança?’. A pergunta não estará centrada no que muda (é volátil, é mutável, é efémero…), mas no que permanece perante o que muda. Sem permanência consciente e conscientemente preservada, a identidade perder-se-á com a mudança.
A pergunta deverá, assim, não ser ‘o que deve mudar o cristianismo para se encontrar com o mundo?’ (pressupondo que o ‘mundo’ está à espera dessa mudança, permanecendo igual; ilusão, pois, quando o encontro ‘acontecesse’, já a realidade não era a inicial!), mas antes ‘o que há no cristianismo que permanece (e deve permanecer) para além de toda a mudança?’. Esta interrogação obriga a realizar a operação de que fala o Vaticano II, no decreto Unitatis Redintegratio, no seu número 11, isto é, a proceder à identificação de uma ‘«hierarquia» das verdades da doutrina católica’, o que, por um lado, exige saber o que tem o cristianismo a ‘comunicar’ (a tornar comum) ao ‘mundo’, mas também, cria a condição para o verdadeiro aggiornamento de que falava João XXIII, alicerçado na segurança que vem de se saber o que não pode perder-se no encontro de identificação por se saber, com clareza, onde reside a diferença.
E, clarificado o método, que já não assenta na pergunta sobre ‘o que deve mudar?’ (criando uma epidérmica e insegura relação com o ‘outro’), o encontro é já possível, de forma autêntica e ‘destemida’, pela confiança no tesouro identificado como a marca única e distintiva.
E esta tem sido a pergunta mais ausente de toda esta discussão. É, no fundo, a pergunta sobre o que ‘espera’, autenticamente, a contemporaneidade do cristianismo e que só dele pode vir.
É que a contemporaneidade não é um simples ‘zeitgeist’, um vago espírito de época, mas o sentir de homens e mulheres reais (reunidos, contemporânea e co-topicamente – no mesmo espaço) com as dúvidas e angústias que moram no coração de todo o humano.
Nesse encontro entre o cristianismo (que também não é uma teoria ou uma vaga reflexão sobre…, mas uma resposta feita experiência concreta na vida de homens e mulheres) e o seu tempo (o de hoje, para nós!), o cristianismo constituir-se-á como ‘resposta’ no encontro com as interrogações.
Mas, vale a pena perguntar, interrogam-se os homens e mulheres de hoje? Como se suscitam neles essas interrogações? Que interrogações os habitam? O que se ‘oculta’ nas interrogações explícitas? Serão sempre explícitas as interrogações? Quão patentes e quão latentes são as autênticas interrogações? E que resposta emerge do cristianismo para essas (latentes e patentes) interrogações?
Se o cristianismo for, apenas, o vago ocupar do tempo, ajustado ao que todo o tempo já oferece, o que terá de novo a dar?
Interrogar… Interrogar… Interrogar é, certamente, hoje, um dos lugares mais ‘intersticiais’ pelos quais se poderá fazer emergir a resposta que faz a diferença cristã.
Haverá coragem para perguntar?