O Bispo que dispensava a farda

Cultiva a proximidade com as pessoas, também como Bispo. Um ano após a sua ordenação episcopal, D. António Couto revela o que o deslumbra e o gosto por «devorar livros» AE- Quando soube da sua nomeação, há um ano atrás, estava num retiro. Foi inesperado? Como reagiu a esta notícia? AC – Quando o Núncio Apostólico chegou, eu pensava que seria uma conversa como muitas outras que habitualmente tínhamos sobre assuntos da Sociedade da Boa Nova. Mas disse-me que eu tinha sido nomeado para titular da diocese de Azura e auxiliar da diocese de Braga. «Aceita?» Eu ouvi isto, ele calou-se e estivemos em silêncio uns bons cinco minutos a olhar um para o outro. AE – Estiveram cinco minutos em silêncio? AC – Sim. Ele não disse nada e eu nada disse. Durante cinco minutos fiquei calado. AE – O que se passava na sua cabeça nesse tempo? AC – Eu estava a perguntar-me porque não consegui dizer nada. Não se tratava de pensar o que ia responder sobre aquela matéria. Fiquei paralisado. E foi ele que interrompeu o silêncio, dizendo que este era um sinal exterior, não meu, que vinha de outro lado. Nessa altura eu disse «se vem de Deus, então não posso dizer que não». AE – Aceitou na hora? AC – Ele também não me perguntou se eu precisa de tempo para pensar. Deve ter visto a minha atitude naquele silêncio gritante e, deve ter presumido que não era assunto para me dar tempo. Quando ele me disse que vinha de Deus eu respondi que «nunca tinha dito não a Deus», que me lembre. E disse «seja o que Deus quiser». AE – É sempre pronto nas respostas? AC – Nesta não fui muito pronto. Demorei cinco minutos. AE – Foram cinco minutos para decidir uma vida…. AC – Lembrei algumas passagens da Bíblia, em que Moisés ou Jeremias são chamados e dizem «mas eu não sei falar». Foi isto que eu senti. Não se trata de ficar a pensar no assunto, mas a incapacidade de dizer fosse o que fosse. Penso que é esta a atitude bíblica. Com coisas desta natureza, quando Deus entra «ao barulho» e temos que assumir coisas directas entre nós e Deus, a atitude é ficar em silêncio e, depois, num segundo momento, acabamos por dizer que sim. E neste sentido, se é de Deus, então que seja o que Deus quiser. AE – Quais foram as palavras que D. Jorge Ortiga lhe dirigiu após ter aceite a nomeação? AC – Foram coisas muito práticas. Já tínhamos falado pelo telefone, onde D. Jorge manifestou o seu contentamento, dizendo que esperava que eu ajudasse a dar um novo ritmo à diocese. Mas quando nos encontrámos no retiro, foi para tratar da data da ordenação episcopal. Ele queria que fosse o quanto antes. Batalhas perdidas AE – Disse na sua ordenação episcopal que as batalhas que travava com Deus têm sido ganhas por Deus de mil a zero. Continua a ser assim? AC – (risos) É verdade. Sinto isso e espero que continue a ser assim. Desde que me conheço a minha vida sempre foi assim. Desde que comecei a querer ir para o Seminário, tinha nove anos… AE – Como é que surgiu a vocação aos nove anos? AC – Eu sempre gostei muito da igreja da minha paróquia. É uma igreja antiga, românica de origem, e muito bonita ao ponto de ficarmos esmagados pelo seu esplendor. E para uma criança que andava no mundo dos adultos, isso fascinava-me. Lembro-me de entrar na igreja e sentir que aquilo era outra coisa. Em minha casa, era preciso uma candeia acesa para se ver alguma coisa. Na igreja tudo era grandioso. Os mosaicos, os dourados das talhas, um mundo fabuloso para uma criança. Muitas vezes, durante a semana, eu ia à missa porque gostava de estar no meio daquela sublimidade. Isso é que me levava a aproximar daquele lugar sagrado. E gostava de ser acólito. O nosso padre era muito idoso, estava na paróquia há mais de 50 anos e dizia, para estimular os rapazes, que quem chegasse primeiro ajudava no altar como acólito. E era quase sempre eu. A missa era às 6h30 mas eu ia mais cedo para chegar em primeiro lugar. AE – Foi influênciado pelo seu pároco? AC – Esse padre teve alguma influência em mim. Era idoso, mas um homem muito piedoso, uma pessoa muito dedicada, fazia o serviço com muita honestidade, mas algo ríspido e austero. Mas a vida dele era a Igreja e o povo. Eu admirava-o, ainda que fosse difícil lidar com ele. Quase tínhamos medo de falar com ele, pela distância e pelo respeito. Mas para lidar com as crianças ele tinha um certo carinho. E começou ai. Ele, pessoalmente, nunca me disse que eu podia ir para o seminário, nem eu tinha pensado nisso. AE – O fascínio era no sagrado… AC – Sim, fascinava-me o sagrado e a igreja, aquele mundo, mas não tinha colocado a hipótese do sacerdócio. Entretanto passou um padre pela minha escola, como era habitual naquela altura e perguntou quem gostaria de ser padre. Houve uns três ou quatro que levantaram a mão. E eu fui um deles. Aquele padre era claretiano dos Carvalhos e como eu dei o nome, ele passou a enviar-me livros, santinhos, bibliografia e, inclusivamente, passou por minha casa. E foi ai que comecei a pensar no assunto sozinho. Em termos claros, nunca disse nada. O meu pai apercebia-se porque o padre envia-me coisas e de vez em quando passava lá em casa. Mas, naquele tempo, havia muita gente no seminário. Pouca gente estudava. Na minha turma da primária deviam ser uns 30 e apenas saíram três para estudar em diferentes seminários. Mas não foi o padre dos Carvalhos que me puxou para a congregação. Foram outros colegas das freguesia que andavam em Tomar, no Seminário das Missões. E nessa altura, quando é para decidir, o que me puxou foi haver nove ou dez da minha freguesia em Tomar. Quando decidi, fui para onde andavam os outros. AE – Como reagiram quando disse que queria ir para o Seminário? AC – Em minha casa ninguém gostou. Houve um silêncio sepulcral. Tanto que fui sozinho de autocarro até Marco de Canaveses e depois de comboio para Tomar. E era longe. Foi um dia e uma noite a viajar de comboio, uma coisa impressionante para um miúdo de 10 anos… AE – Nessa idade já tinha uma ideia cheia de certeza… AC – É curioso que sim. Decidi sozinho. Passava horas a pensar no assunto, mesmo de noite eu pensava. E decidi de facto que ia, porque percebi uma presença de Deus muito perto de mim. E pensei que tinha de responder a este Deus de uma maneira concreta. Tinha dito em casa e percebi que não tinha receptividade, que a ideia dos meu pais era que não fosse. AE – Apesar de ser de uma família muito religiosa… AC – Sim. Eu vivia com a minha avó e a minha mãe e, essencialmente elas, eram pessoas muito religiosas. Sempre me puxaram para ir para a igreja. A minha avó era muito religiosa… AE – Foi um marco para si? AC – Isso sim, foi importante. A forma como a minha avó e a minha mãe viam o mundo e a vida. Qualquer coisa que acontecia para elas era Deus que estava por trás, e todos os filhos notavam isso. Rezava-se sempre antes das refeições, à noite rezava-se o terço, uma trovoada para elas eram um sinal e lá acendiam todas as velas da casa. Era aliás a única vez em que se acendiam as velas que havia em casa. Era uma religiosidade que para as crianças era importante e despertadora de algo mais. Mas não interferiam em nada, porque tudo foi comigo. AE – A falta de acolhimento pôs em causa a sua decisão? AC – Não. O curioso é que quando eu disse pela primeira vez, percebi que ninguém estava para aí virado. Muito pelo contrário, nem me pagavam os estudos. Foi gente da paróquia que quando se apercebeu que eu queria ir para o seminário, se disponibilizou para pagar. Disse que ia para Tomar fazer o estágio, que eram oito dias e, informei a dizer que ia no tal dia. Fui sozinho para o autocarro e para o comboio. Fui e vim sozinho, numa viagem que fiz pela primeira vez de comboio. AE – E quando regressou vinha com mais certezas? AC – Sim. Quando regressei tinha a ideia que era mesmo para começar o curso quando chegasse Outubro. Perguntaram-me se eu ia mesmo para o seminário e eu disse que sim. Sempre houve um grande silêncio quando raramente se falava nisso. Esta luta foi comigo. Foi entre mim e Deus. Eles puseram-se de lado, não interferiram, não se pronunciavam. Percebia bem que da parte da minha mãe e da minha avó elas queriam que eu fosse para o seminário, mas não queriam que eu fosse para longe nem que saísse de casa. Esse era o maior problema. Mas eu fui e esse foi o primeiro combate a sós. AE – Em que Deus ganhou? AC – Em que Ele ganhou e em que eu senti, muito concretamente e por isso falo muitas vezes nisto, que Deus não era um Deus fechado, nas paredes douradas da sua eternidade, mas é um Deus que está aqui no meio de nós nas horas certas e, quando é importante nós sentirmos a sua presença, Ele está lá. AE – Tão cedo percebeu isso? AC – Com 10 anos percebi isso e essa continua a ser a ideia mais firme da minha vida que nunca passou. Tudo o resto nós compomos, pois é uma questão de interpretação. Esta ideia, aos 10 anos, era clara em mim e clara permaneceu até hoje em mim. Nem eu sei explicar muito bem, sei que foi assim. AE – As batalhas foram sendo ganhas por Deus… AC – Foram. Claro que depois temos mesmo que decidir. Para o seminário qualquer um vai, muitos não sabem o que vão fazer, mas eu sabia. Quando fui para o seminário, a minha ideia era situar-me naquele mundo, que para mim não era só de um imaginário, mas de teor deslumbrante que via na minha igreja. As coisas em latim que dizia o velho abade e eu ficava espantado, era isso que me fascinava. Não fui por qualquer coisa. Quando fui a minha ideia era ser padre, já nessa altura. E essa ideia nunca a tirei. Quando chegou a altura de tomar a decisão, nunca precisei de pensar, nem precisei de cinco minutos. (risos) Para mim era óbvio que era esse o caminho. Daí até ser padre não houve qualquer atropelo na vida. Estávamos na altura da revolução de 1974. Eu era estudante, mas isso não me afectou em nada. Comecei a pegar muito na Bíblia e a lê-la porque percebi que ali andava o mundo de Deus que eu gostaria de espremer e perceber melhor. O fascínio dos livros AE – Foi claro desde o início do caminho, a inclinação para o estudo sobre a Palavra de Deus? AC – Logo no princípio não. Mas desde cedo me dediquei a ler com rigor a Bíblia, com muita atenção. Houve um ou outro texto que começou a vacinar-me, um ou outro que eu ouvi na liturgia, alguns cantados em latim que mais ou menos conseguia traduzir e o estudo do latim para o português começou a mexer comigo. Primeiro o latim, depois o hebraico. Começou ai o gosto. Ouvia o texto em latim, ia tentar perceber como se dizia em português e comecei a entrar dentro desse mundo, que era de Deus, que quanto mais entrava, mais fascinado ficava. Nunca mais consegui deixar a Escritura. AE – E chegou a Roma para aprofundar os seus estudos… AC – Quando cheguei a Roma um dos primeiros cursos que fiz foi sobre o livro de Job. Eu ia às aulas mas nunca fiz nenhuma pergunta ao professor. Lembro-me que quando cheguei ao dia do exame oral, a primeira pergunta que o professor me fez foi perguntar «o senhor o que veio aqui fazer?». E eu disse que queria saber melhor a línguas originais em que a Bíblia está escrita. Porque ele também tinha percebido que o resto eu já sabia. E ele de facto fez a pergunta certa, porque eu não ia lá fazer nada. Eu já tinha lido, seguramente, uma centena de livros sobre Job. E sempre fui assim. Quando ia fazer um exame qualquer nas áreas de teologia, mesmo antes de chegar a Roma, eu não lia nada do que o professor recomendava, não lia as sebentas. Mas metia-me na biblioteca e o que havia sobre a matéria, eu lia tudo. AE – Mais do que um estudante aplicado era interessado… AC – Eu lia tudo a monte. Quando ia fazer um exame sobre determinado assunto tinha a convicção que sabia mais do que o professor. Eu pensava «pode perguntar à vontade que comigo não há problema». Sempre gostei muito das escrituras. Cedo entrei nelas e comecei a perceber melhor como se moviam as personagens, como Deus lidava com elas e comigo, e desse “vício” nunca mais me vi livre. Que equivale a dizer que nunca mais me consegui ver livre do vício de Deus. Em todas as horas eu sei, sinto e afirmo, sem problemas, que não estou só e que Deus está comigo. Os sinais de Deus AE – O seu lema episcopal é «Vejo um ramo de amendoeira», e na sua ordenação episcopal afirmou que enquanto bispos queria mostrar sinais positivos. Porquê que o escolheu? AC – Esse texto, numa época trágica de sangue, de guerra, de miséria no meio de uma cidade destroçada é um grito de uma imensa esperança de Jeremias. A amendoeira é, na Palestina tal como aqui, uma das poucas árvores que cresce em pleno Inverno. É uma imagem muito forte. E essa visão forte impressionou-me desde muito cedo. O ramo de amendoeira é o marcador do livro de Jeremias, que tem os olhos cravados na esperança e por isso, o resto passa à margem. Ele não se prende com os buracos, vai ao essencial. Desde cedo que essa expressão me cativou fortemente e ficou gravada em mim. Normalmente é escolhida uma passagem do Novo Testamento, dos Evangelhos, mas quando comecei a pensar, essa imagem era irresistível. Por força tinha de colocar isso no meu lema, não havia alternativa. AE – E tem indicado muitos ramos de amendoeira ao longo deste ano? AC – Sim. Tenho procurado indicar a pessoas, muitas vezes em condições difíceis na vida, outras não, com vidas habituais. É engraçado que esse lema ficou marcado. Todos me falam nisso e se lembram. Quando encontro pessoas em estado deplorável em que muitas vezes respondemos «bom, paciência» no discurso habitual, digo sempre à pessoa que veja as coisas pelo lado grande, da esperança. E seja qual for a situação, nada é tão dramático e inultrapassável, porque Deus é que comanda esta vida. A flor que desponta mesmo no meio da morte, anuncia a ressurreição dos mortos. Conseguimos encher a morte com uma palavra de esperança. Esta é uma mensagem forte e muito atraente que as pessoas procuram. As pessoas têm esperança mas é calculada. A esperança bíblica é um fio esticado em duas mãos. Na mão de Deus em primeiro lugar e depois na nossa mão. Se estiver seguro na mão de Deus basta então que eu me agarre que também fico seguro. Essa é a imagem que me tem conduzido pela vida fora. Foi daí que veio esse lema. Cultivar a proximidade AE – Enquanto bispo ganhou diferentes responsabilidades das que tinha enquanto superior geral. Sentia-se preparado para esta missão? AC – Nunca pus essa questão. Sempre me pareceu que fiz isto. É estranho mas é o que sinto. Nem estranhei a primeira vez que tive de fazer um Crisma. Entre ser padre e ser bispo não notei nada de especial. Já antes ia para o meio das pessoas falar do Evangelho e continuo a fazê-lo. Continuo a dedicar o tempo que posso ao estudo da Palavra de Deus, continuo à procura da melhor maneira de o dizer às pessoas. Procuro fazer chegar às pessoas esta imagem de Deus próximo, cheio de carinho, que as estima, as ama e que as chama. AE – Agora com menos tempo e mais solicitações? AC – Sim. Com mais solicitações. Já antes tinha muitas, dentro e fora de Portugal. Cursos, palestras, retiros e visitas às comunidades. Hoje tenho mais. Essas responsabilidades continuam e acrescentaram-se outras. Mas a minha atitude de fundo acho que é igual. Não deixei de me aproximar das pessoas pelo facto de ser bispo. Continuo a fazê-lo com a mesma naturalidade com que fazia antes, e continuo a tentar que, através do que digo e da minha postura na vida, passe esta imagem de Deus. Não a imagem de um Deus que as pessoas têm medo, um Deus perigoso, que castiga, mas este Deus que é bondoso, que chama, que ama e acaricia as pessoas. Pessoalmente não notei diferença. A única diferença é que agora uso muitas vezes a batina. Agora uso o cabeção que antes não usava. Mas são sinais exteriores. Sempre gostei de andar à vontade, agora uso. O que mais me custou foi habituar à farda (risos). AE – Gostava de estar mais à vontade no vestir? AC – Gostava de estar completamente à vontade. Sou dos que pensam que a farda pode indicar à pessoas que eu sou bispo, mas também pode criar distâncias. São problemas que a mim se colocam. Não tinha problema de estar no meio das pessoas completamente à vontade, como as pessoas andam. E acho que isso evitaria distâncias. Porque as pessoas vêem o bispo e ficam logo muito reservadas. AE – Mas percebe essa distância das pessoas consigo? AC – Não percebo, porque também não as alimento. Se vejo alguém que vem com muita reverência a aproximar-se de mim, corto logo essa atitude. AE – No início do seu episcopado manifestou vontade de continuar a manter a sua contribuição no sitio da Boa Nova. Tem conseguido fazer isso? AC – Não tenho conseguido contribuir com a regularidade que era habitual. O sítio da Boa Nova esteve parado e entretanto criei um outro para poder ser regular que é mesadepalavras.blogspot.com AE – Foi iniciado com o episcopado? AC – Um pouco depois. Quando percebi que o outro podia encerrar por motivos diversos e porque queria continuar nesse mundo, criei este. Vou estar nos dois, mas este fica assegurado e, em primeiro lugar. Descobrir as pessoas AE – Sente falta das missões? AC – O que me fascinava nas missões era o encontro com o diferente, com o diferente mais diferente. Aqui também se vai ao encontro das pessoas, mas fascina-me o diferente que vive num mundo diferente, neste caso no mundo africano, Moçambique ou Angola. No meio da pobreza e da miséria, encontrava uma pessoa feliz, um rosto feliz, as crianças que se riem, embora não tenham nada. Isto sempre me fascinou. Quando vejo algo assim sou capaz de estar horas, como uma criança, a olhar para aquilo. A ver como funciona. Gosto de ver o mundo que não estou habituado. AE – O que recorda das missões? AC – Perceber como uma família com 10 filhos, que tem uma barraquinha de zinco, apenas com uma divisão que serve de cozinha, de sala e de quarto. Tem apenas uma porta de entrada, as janelas são desenhadas a giz por fora pelas crianças, isso sempre me fascinou. Tive também o privilégio de andar pelo Médio Oriente, nos bairros palestinianos, onde ainda hoje ninguém pode entrar. O meu fascínio era andar lá, conhecer pessoas, falar com elas, ver como funcionava aquele mundo. Fui percebendo que se pode viver lá tão bem quanto se pode viver aqui. Ainda que a cultura, os hábitos e as regras sejam completamente diferentes. Sempre admirei estas pessoas que vivem sem nada. Uma pessoa entra hoje na Faixa de Gaza, a zona mais pobre e insegura do mundo, onde não há luz, água e só existe violência, mas as pessoas são felizes, as pessoas têm sonhos, as crianças fazem bonecos e brincam. Como é que no meio deste mundo os jovens casam e têm filhos, e não apenas um, têm sete ou oito filhos. Não têm nada, mas têm filhos que são felizes, que vivem com a sua alegria. AE – Quem se sente bem em bibliotecas e mergulha nos livros, lida menos bem com as pessoas. D. António Couto gosta de viver nos dois mundos? AC – Como sou capaz de entrar numa biblioteca, fechar a porta e estar lá dois ou três meses se me deram alguma coisa por baixo da porta para comer (risos), porque quero vasculhar tudo e é um deslumbramento para mim, sinto o mesmo ao entrar num mundo desconhecido e passar meses e anos a ver. No meio disto criam-se relações, passam imagens, passa Deus. E aprende-se muito mais do que se ensina. Vamos para lá com ideias sobre o que falar, mas depois não consigo dizer nada porque o mundo deles antecipa-se ao meu e eu é que sou levado a ouvir o que têm para me dizer. Para mim a vida conta enquanto descoberta. Quando entro numa biblioteca sou capaz de ler tudo a eito. (risos) Quando comecei a estudar a sério, pegava numa estante de biblioteca e lia tudo. Matemática, física, o que estivesse de seguida era o que ia ler. Não escolhia. A minha ideia era a novidade. Ver coisas novas, aprender. Isso também me acontece quando entro em mundos novos. Encontram-se sempre surpresas. AE – Não sente falta de tudo o que descreve e do que descobriu? AC – Sinto falta. Os livros continuo a ter, pessoas continuo a ter também. Mas pessoas diferentes tenho menos possibilidade de as encontrar. Tenho vários convites em carteira mas tenho-os adiado porque não tem sido possível. E isso sim, faz-me falta ver esses mundos. AE – E sobre o ano episcopal? Como o recorda? AC – Desde que assumi esta missão de ser bispo aproximo-me das pessoas nas visitas pastorais e estas são sempre oportunidades de deslumbramento. Durante as visitas eu paro muitas vezes onde ninguém pára. Quando saio é um perigo porque posso parar e descoordenar tudo o que estava programado. Querem conduzir-me e apetece-me ficar a ver coisas que me chamam a atenção. Quando vejo crianças a brincar, ou um cata-vento, ou simplesmente onde não se vê nada, eu descubro qualquer coisa para ver que me deslumbra. Sou uma criança deslumbrada. A primeira marca é de facto as pessoas. Estar no meio delas e descobrir a sua vida, traduzindo a ternura de Deus por elas. Continuo com muita actividade no campo de formação. Continuo com as aulas na universidade. De certo modo para não perder o contacto, mas também porque é necessário. Quando fui nomeado o ano estava já programado e não era possível deixar. Mas dar aulas para mim é também um deslumbramento. AE – Gosta do contacto com os alunos? AC – Muito. Gosto de ser estimulado para aprender. Aprendemos quando falamos e quando ouvimos os alunos. Sou deslumbrado e gosto de deslumbrar os outros. Mas não é de propósito. Isso está em mim e sai de mim. AE – Passou apenas um ano de episcopado. Muito feito, mas ainda com muito também para fazer. Tens ideias a concretizar? AC – Muitas com certeza. Muitas estão já programadas, as visitas pastorais, as aulas, as sessões de formação que vou ter muitas (sobre São Paulo vou ter seguramente umas 80), muitas formações com o clero de várias dioceses e também com leigos. Quero ir também a Moçambique, talvez em Abril, e isso seguramente vai ser surpreendente. É o vento e eu vivo disso. E a investigação. Eu faço tudo isto mas sou incapaz de deixar passar o dia sem ler pelo menos umas duas ou três horas. Muitas vezes pego num livro que me interessa e não largo enquanto não terminar. E também escrevo bastante. A investigação e a escrita são investimentos meus. A minha vida está sempre ocupada, mesmo que não haja nada programado para fazer, eu tenho sempre muita coisa para fazer.

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