Sínodo 2024: «É preciso encontrar caminhos comuns, o mais possível» – D. José Ornelas

O Vaticano acolhe, a partir de quarta-feira, a segunda sessão da 16ª Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, que desde 2021 tem vindo a mobilizar comunidades católicas de todo o mundo. Um dos participantes é D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, o convidado desta semana da entrevista conjunta Ecclesia/Renascença

Foto: Ricardo Perna

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Está de partida para Roma para participar nesta sessão, onde já teve a oportunidade também de trabalhar em 2023. Vamos viver um momento histórico? 

Já é histórico aquilo que vimos fazendo desde 2021, porque este Sínodo tem muito de novo, seja na forma de organizar, seja até pela novidade de um Sínodo sobre sinodalidade, que parece uma tautologia, mas não é. É refletir sobre a identidade própria da Igreja, o seu modo fundamental de estar à escuta de Deus, à escuta uns dos outros, programar, pensar e discernir em comum. Isto, numa época tão desafiadora como esta que nós vivemos, sem dúvida que é um caminho útil. A história faz-se depois. É útil para o presente e é fundamental.

 

O relatório da CEP sobre a segunda fase da consulta sinodal, lançada pelo Papa, apelava a um maior discernimento sobre as questões fraturantes e o papel das mulheres na Igreja. Espera que isso seja feito?

O documento fundamental que vai guiar os trabalhos do sínodo, o instrumentum laboris, esse documento de trabalho, já está aí. O tema não está ausente, mas também não é um dos temas, isso sempre foi dito, fundamentais do Sínodo. O Sínodo não foi convocado para tratar especificamente este problema. Agora, tratando-se de sinodalidade, o papel da mulher está lá e certamente que vai ser objeto de reflexão. Certamente com pontos que são mais partilhados a nível geral e outros que podem ter um carácter fraturante, mas isso não é um caminho que assuste ninguém. É importante que este Sínodo, sobretudo, crie um ambiente e uma metodologia de trabalho que nos permita enfrentar também esses problemas de um modo novo, de um modo que interpela o povo de Deus e que lhe dê possibilidade também de se manifestar e também à Igreja, na diversidade das suas culturas. Porque muitos destes temas fraturantes têm a ver muito com culturas e, portanto, não se pode encontrar simplesmente uma solução para uma parte daqueles que constituem a Igreja, mas é preciso encontrar caminhos o mais possível comuns. Ao mesmo tempo, reconhecendo a diversidade das culturas onde se exprime o Evangelho e que podem ter também carateres diferentes.

 

Entre a primeira sessão e a segunda, o Papa Francisco criou um conjunto de grupos de trabalho em que alguns destes temas, mais fraturantes, mais polémicos, foram remetidos para um estudo entre especialistas de todo mundo e responsáveis dos dicastérios da Cúria Romana. Isto pode ser visto como uma espécie de um passo atrás?

Não, acho que é um passo de olhar para a frente. Este Sínodo não é um Concílio que toma decisões autonomamente, tem um outro enquadramento também canónico e jurídico. Eu faço parte de um grupo desses, que tem a ver com a Vida Religiosa e a relação Igreja-religiosos no contexto de uma Igreja sinodal e missionária, e foi-nos dado até junho de 2025 para uma resposta. Isto significa que estes temas, muito provavelmente, podem não ter uma solução imediata agora, em termos de uma proposta concreta, mas não ficam esquecidos, e isso é que é importante. O que o Papa diz é que a igreja deve estar numa atitude sinodal, isto não é um evento, um acontecimento que tem um princípio e um fim. A ideia deste Sínodo sobre sinodalidade é criar uma Igreja que seja sinodal na sua maneira de pensar, de discernir, mas também de agir.

 

Vai integrar uma Assembleia que tem 368 membros com direito a voto, são 272 bispos. Pensa que será possível aprovar conclusões que promovam mudanças ou iremos ficar por declarações de intenções. O que é que realmente podemos esperar?

Isto não é bem comparar coisas que não têm o mesmo valor, mas resultados só no fim do jogo. O que me interessa é que nós estejamos realmente na situação e no clima que esteve bem presente na primeira sessão da Assembleia Sinodal, mas que agora precisa de dar passos mais concretos. Penso que nalguns setores pode haver soluções mais concretas, mas que exigem depois mais tempo.

 

Esta sessão sinodal começa simbolicamente com uma vigília penitencial, o dia 1 de outubro, evocando os sofrimentos da humanidade e também pedindo perdão pelos abusos da Igreja, abusos de poder, abusos sexuais. Como é que vê esta proposta, que simbolismo é que ela tem?

Nós começamos sempre, e num dos atos fundamentais da Igreja, que é a Eucaristia, nós começamos sempre com uma celebração penitencial. Penitencial, isto não é acentuar sentimentos, ou complexos de culpa. É reconhecer que somos uma Igreja em caminho, que temos, se não olharmos para nós próprios com espírito crítico, não avançamos. Isso significa que temos também de reconhecer que a Igreja é peregrina e quer superar dificuldades. Tendo presente esta realidade, que é pessoal, é de cada comunidade e é da Igreja no seu conjunto, isto acho que é um ato não só simbólico, é real, de assumir-se como Igreja em caminho. E isso é importante, porque isso cria também espírito para nos despirmos de preconceitos e de autocentralizações que nos impedem de ver e de escutar aquilo que Deus vai dizendo, e vai dizendo também através da Igreja. E um dos males da Igreja tantas vezes tem sido esse de não escutar.

 

Levando na bagagem a experiência do que foram os últimos anos em Portugal, relativamente à crise dos abusos sexuais especificamente, como é que olha para o caminho que foi percorrido nos últimos meses, em especial depois deste trabalho que tem sido feito para a questão das indeminizações?

Esse é um caso concreto e dramático, com as consequências que conhecemos na Igreja, mas as consequências da Igreja são sobretudo consequências que são dramáticas pelo dramatismo que têm na vida das pessoas. Este é um caminho que estamos a fazer humildemente e que não é perfeito. Neste percurso há certamente pontos a melhorar, mas aquilo que pretendemos são, no essencial, duas coisas: nestas reparações, mais do que simplesmente uma questão de dinheiro, é uma questão sobretudo de reconhecer o mal que foi feito às pessoas – o tal ato penitencial de reconhecer. Houve coisas muito más, por parte de pessoas, mas também tantas vezes instituições que não tiveram a atitude que deviam ter.

Em segundo lugar, criar também possibilidade de fornecer a estas pessoas elementos, para já, de reconhecimento, mas depois também de ajuda.

 

Mas há pessoas, há vítimas que já admitem desistir do processo de indemnizações, de reparação, por causa de terem novamente de passar por aquilo que chamam o calvário de recordar tudo o que aconteceu. Houve aqui algum momento em que algo não foi bem feito para chegarmos a este ponto? 

É lamentável sempre o ter de repetir coisas, e sabemos tudo o que isso significa para uma pessoa que foi vítima de abusos. Agora, temos também de ter em conta que isso se refere, sobretudo, às pessoas que deram o seu testemunho à Comissão Independente e que depois não têm os seus dados registados. Não é que a Comissão Independente procedeu mal ou não teve métodos adequados. Teve métodos adequados à sua finalidade, e a sua finalidade tinha de ser, para publicar um relatório, forçosamente anónima, não só pela anonimidade das pessoas que nessa condição responderam, mas também aquelas que se declararam com nomes, etc.

Não se pode dar esses dados, não podem ser passados a outra entidade. Alguns foram com autorização das próprias pessoas em causa e isso foi passado, outras não foram. Nenhum material foi destruído, mas foi destituído de tudo aquilo que pudesse levar à identificação de pessoas.

Com o Grupo Vita, não se trata de códigos referenciais, trata-se de pessoas. Fez-se tudo o possível, até pondo as pessoas que contactaram com as comissões diocesanas, que esteja lá sempre alguém nessa comissão diocesana, para não repetir, para evitar a revitimização, mas pelo menos oferecer uma descrição geral das coisas. Tem-se insistido para que as pessoas sejam o mais possível respeitadas, que não se vá além daquilo que é minimamente necessário para enquadrar as coisas. O que queria dizer a todas as pessoas é que isto vai ser feito o mais possível dentro da proximidade que é necessária para todos estes casos.

 

Projetando os trabalhos propriamente ditos, como é que vê a presença reforçada de Portugal nesta Assembleia Sinodal?

Sim, eu não gosto de ver isto em termos nacionais, porque depois um outro país que pode ter mais significado do que o nosso, em termos numéricos, de cristãos, etc… eu não gosto de ver nestes termos. Há uma necessária representatividade, e isso foi garantido, mas depois há outros fatores. É natural que a Cúria Romana e o papel, por exemplo, do cardeal Tolentino seja determinante para este Sínodo. O papel que o cardeal D. Américo teve nas Jornadas Mundiais da Juventude, para mim é bem compreensível que o Papa o tenha chamado, precisamente neste contexto.

OPapa tem dito, cuidado que isto não é uma questão de representatividade numérica das Igrejas, é uma questão de toda a gente ter a ocasião de apresentar e de dar o seu contributo para um bom discernimento. E é isso, são escolhas que se fazem, o Papa e os seus conselheiros, e acho que eu não tenho nada, não só não tenho contra, gosto muito também, evidente, de sentir-me mais acompanhado neste grupo português.

 

O inquérito lançado em 2021 gerou um grande interesse e uma grande participação, que está documentada. Como é que avalia a participação neste espaço entre as sessões? Ficou a ideia de que houve um abrandamento do entusiasmo…

Houve, é natural. O que se fez no primeiro não era possível repetir agora, nos mesmos termos, porque isso leva muito tempo e isso seria repetir todas as coisas. Agora, o que se fez, também aqui em Portugal, foi com um grupo. Noutros continentes houve uma metodologia mais, digamos, a nível continental, sobretudo, houve continentes que se reuniram duas e três vezes, representantes, mas não ao mesmo nível de antes e com a representatividade de quem já consultou as bases, mas de um grupo que se julgou adequado.

Em causa estavam duas coisas: uma era ter um eco, de novo, das Igrejas locais sobre o trabalho da primeira parte do Sínodo e isto para completá-lo também com um parecer de pessoas de várias áreas, não para fazer um outro documento, mas uma reação a esta primeira parte que ajudasse aos trabalhos. Estamos numa fase de transição e esse tempo também entre as duas partes da Assembleia Sinodal foi discutido, precisamente para encontrar caminhos; a primeira parte deu indicações de que era bom estudar certos temas e o próprio Papa já o foi fazendo, também enumerando questões para fazer avançar agora o discernimento desta segunda parte. E esses contributos que chegaram agora e continuam a chegar até há pouco tempo, também a nível continental, evidentemente estarão à disposição dos padres sinodais para a discussão.

 

Os trabalhos dos últimos anos têm sublinhado a necessidade dessa cultura de discernimento, de que ainda há instantes falava, acompanhada por uma reflexão sobre a articulação dos processos de decisão. Por onde pensa que se deve caminhar nesse sentido? Há medo de partilhar o poder, digamos assim?

A questão da autoridade e do poder é fundamental. Eu estudei especificamente o Evangelho de Marcos e há um livro muito curioso que apresenta o texto de Marcos como uma reestruturação do poder, e é realmente o Evangelho que reestrutura o papel do poder. O facto de Jesus pôr uma criança no meio do grupo e dizer que este tem de ser o vosso centro de atenção, não é para pôr a criança a mandar, porque o problema não é mandar, o problema é acudir, é cuidar, é servir. Portanto, esta criança não tem poder em si, mas quando uma criança nasce numa família, desarranja tudo aquilo que está estabelecido. Portanto, se a Igreja se preocupar com a missão, e a sua missão é, antes de mais, ir ao encontro dos que mais sofrem, dos mais pequenos, dos mais frágeis, isso muda a feição da Igreja. E é isso que é importante que se gere desde a Cúria Romana até À última das comunidades e das células da Igreja. Isto é muito importante. Há alguma coisa que já está a acontecer, e penso que na própria reflexão dos programas pastorais que estão a fazer na Igreja, e agora nós aqui na Diocese de Leiria-Fátima, por exemplo, estamos num processo de reconversão pastoral. Nem sequer entrava na equação dedicar horas e horas e horas de reunião com as comunidades paroquiais, vicariais, etc., antes de tomar decisões. E isto tem de ser um processo, um processo em que as pessoas sintam aquela alegria que muitos exprimiram, ao dizer “foi a primeira vez que me pediram opinião sobre isto”, deve ser um continuum. Por outro lado, isto não é uma questão de contar votos, é uma questão de discernir, através deste processo, o que é que Deus está a dizer à Igreja.

 

O documento de trabalho que o processo de escuta de todos, que foi promovido pela Igreja Católica, é um exemplo para contrariar modelos de concentração de poder e dinheiro. Isto é também uma provocação para o resto da sociedade?

Evidentemente, deve ser para todos. Toda a gente entende a necessidade de tudo isto. Agora, quando nós pomos a comunidade, as comunidades a discutirem verdadeiramente isto, nós encontramos caminhos novos. Por exemplo, mesmo para a Igreja, o grande desafio é o poder… já agora, a talho de foice, quando fui fazer uma visita a uma comunidade virada para os jovens, em Setúbal, cheguei à sede do município e tinha-me chamado a atenção uma assembleia municipal de jovens, um conselho de jovens, e a ideia era precisamente pôr os jovens a terem um conselho em cada comunidade. Não para dizer que agora invertemos uma pirâmide, porque o problema é não ter pirâmide, mas ter uma outra maneira de dialogar e de tomar decisões. Mas era importante também que grupos, e concretamente os jovens, fossem ouvidos em cada comunidade. E quem diz os jovens, o Papa diz para consultar os mais pobres, que não sejam simplesmente objeto da nossa generosidade e solidariedade, mas que sejam também pessoas que são chamadas a intervir diretamente naquilo que lhes diz respeito. Isto é muito interessante, mas tem de entrar na sociedade, de uma forma que seja efetiva e que dê resultado, não um “faz de conta”, de fazer um parlamento de crianças e um parlamento de jovens – até pode ser pedagogicamente necessário e útil, mas o que é preciso é que verdadeiramente todas estas dimensões sejam integradas no processo de decisão.

A concentração do poder é constante e na Igreja nós fomos concentrando demasiado sobre a figura do presbítero e do bispo questões que não têm a ver com o seu ministério, têm a ver com a administração. Quando se fala de uma Igreja ministerial que está ligada à sinodalidade, é precisamente para isso, sinodalidade e ministérios são iguais, mas o ministério é um serviço, corresponsável – e corresponsável não significa simplesmente que alguém toma uma decisão para os outros executarem, mas significa que este processo de decisão se incorpora à própria execução e à natureza do próprio serviço.

 

Admite que algumas pessoas se sintam de alguma forma desiludidas face às expectativas da consulta de 2021 e que, eventualmente, seja agora mais difícil de superar esse afastamento?

Toda a gente tem o seu percurso e também admito que haja visões diferentes segundo a própria maneira de ser de cada pessoa, a sua experiência eclesial e humana, de grupos e culturas, e a Igreja tem de sempre fazer contas, não é balançar para não chegar a decisões e querer agradar a todos, mas é encontrar soluções novas. Eu penso que em grande parte desta forma organizativa da Igreja se pode chegar também a questões diferentes, mesmo em questões de importância. Dou só um exemplo, a Igreja Greco-Católica tem padres casados, alguns também aqui em Portugal, e um padre sinodal lá ao meu lado dizia “não percebo porque a Igreja latina faz tanto problema com a questão dos padres casados. No entanto, não pensem que isto é a solução para tudo, e a nossa experiência di-lo muito claramente”. Mas dizem que não entendem. E são católicos como nós, em comunhão connosco, com o Papa, etc. Portanto, em muitas questões destas, é possível: não é preciso criar ritos novos, mas dizer que em diversas perspetivas, em diversos contextos culturais e sociais, hão de surgir formas novas de realizar a mesma missão, isso significa a lógica do Pentecostes, para que cada um possa ouvir o Evangelho e vivê-lo na sua própria língua.

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