Psiquiatra, eleita em abril para a presidência da Associação de Médicos Católicos, é a convidada desta semana da Renascença e da Agência Ecclesia
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Aquando da eleição, a Associação sublinhou o seu compromisso assente em três vertentes: a Medicina, a Igreja e a Comunidade. Qual a importância destes pilares na formação e apoio aos médicos?
A Associação é uma associação profissional católica, que se fundou em 1915, portanto já tem mais de 100 anos. O seu objetivo é congregar os médicos que, sendo católicos, gostam de se associar. Obviamente não representa todos os médicos católicos, mas representa aqueles que gostam de se associar e pertencer a uma associação que tem os princípios da Doutrina Social da Igreja e da medicina. Também o seu código deontológico, código ético. Estando juntos, somos uma companhia uns para os outros, e cada vez mais, porque o mundo da medicina não está fácil e o mundo dos valores católicos, cristãos, não está fácil. Precisamos muito de nos sentirmos acompanhados uns pelos outros, espiritualmente e dentro do trabalho do dia-a-dia.
A formação mantém-se em torno do que é medicina hoje, qual o nosso papel na medicina, os nossos valores cristãos e os nossos valores como profissionais.
Também em diálogo com a sociedade…
Sempre em diálogo com a sociedade. Isso tem sido uma característica da nossa associação.
Acha que a formação médica em Portugal ainda está muito centrada na doença e pouco centrada na relação com o doente?
Eu, não sendo estudante de medicina, sei responder. Acho eu… Nós temos uma formação médica científica muito boa, todos os médicos que vão trabalhar lá para fora são reconhecidos por isso, mas também acho que falta o relacional. Isso está estudado e é bom trabalhá-lo.
Pode ser uma dimensão que as pessoas associam mais facilmente, digamos assim, a uma dimensão mais católica…
Não, não. A relação médico-doente é a relação médico-doente.
Mas é uma preocupação de associação…
É uma preocupação enorme, porque se nos transformamos em apenas cientistas que usam muita tecnologia, a inteligência artificial e por aí, perdemos aquilo que é, diria, a base da medicina, que é a relação médico-doente. Onde está o respeito pelo doente é onde está o sentido humano.
Eu, sendo psiquiatra, para mim isto é claríssimo. Tenho a sorte de ter uma especialidade em que não há outra conversa que não seja esta. Com certeza, com muita aprendizagem sobre o cérebro e sobre os neurotransmissores e sobre a forma como tudo isto se traduz intracerebralmente, as emoções, tudo isso. E é curioso que quanto mais tenho experiência clínica, eu já sou médica há 35 anos, mais valorizo a relação médico-doente, porque muitas coisas são melhoradas para além da técnica e para além da medicação que damos. Eu tinha um colega que dizia, e para mim é uma coisa muito importante, “a mão que dá o remédio ao doente também trata”.
Um doente que não confia, por exemplo com o antidepressivo. Um doente que não confia, “agora medicamentos para quê? Para tratar a minha tristeza, eu preciso de outras coisas”… se não confiar, aquilo não tem efeito nenhum. Esta transmissão da confiança é aqui na psiquiatria como em qualquer outra coisa, como a importância do médico de família, que há de ser o médico por excelência da relação com o doente e no seu contexto familiar.
Falemos um pouco do programa de ação para os próximos três anos. Quais são as principais prioridades da associação?
Acho que a principal, esta palavra compromisso não vem ao acaso, não é? É mesmo um compromisso com a medicina. Nós, em primeiro lugar, somos médicos e somos médicos competentes, com esta preocupação de humanidade e por vermos em Jesus Cristo o médico, o médico cura e o médico que salva. Um compromisso com a Igreja, porque temos sido ao longo destes mais de cem anos também uma ajuda à Igreja, ou a Igreja conta connosco para ser a sua presença nacional.
É fácil assumir-se como católico no meio hospitalar?
Não, não é fácil. Eu pessoalmente não tenho dificuldade, porque trabalho num hospital católico, não é? Mas às vezes, ainda assim…
O respeito pela vida humana, desde a conceção até à morte natural, que agora mais estamos aqui em fratura, é absolutamente essencial para um médico. Como é o respeito pela vida do doente, pelo consentimento do doente em relação àquilo que fazemos com ele, isto não são só valores católicos. O sagrado da vida será, tudo o resto do que eu disse… o médico católico não é um médico extraterrestre, é um médico supercompetente, tecnicamente e cientificamente, para ter a ousadia de dizer e de relembrar tudo o que é ético, tudo o que é deontológico, tudo o que é humano.
Há uma questão que já aflorou, que é a legalização da eutanásia em Portugal. É uma preocupação que a associação tem tido ao longo dos últimos anos, há uma lei que está aprovada no Parlamento, que ainda guarda por regulamentação. Espera que o Parlamento revisite este dossiê e haja a possibilidade de recuar?
Em relação à lei da eutanásia, obviamente que nos opomos. Mas não nos opomos porque somos católicos, opomo-nos porque somos médicos, isso está no nosso código deontológico: é vedado ao médico a prática da eutanásia, do suicídio assistido e da distanásia. Isto é para todos nós.
Qual é a diferença com o médico católico? É que tem bem dentro dele o sobressalto que é pensar que um médico possa terminar a vida de um doente. Esta souplesse de inquietação, de sobressalto, de saber o que está ali em jogo, é aquilo que motiva para ser contra, pelo menos para mim é assim, e para ser militante destas causas da vida, desde o nascimento até a morte natural.
Portanto, o que é que nós esperamos? A lei está aprovada, por uma maioria diferente desta. Mas ainda falta fazer coisas com a lei. O ponto, neste momento, é que há dois pedidos de fiscalização sucessiva da lei, em relação à constitucionalidade. O presidente da República desta vez não enviou para o Tribunal Constitucional, mas houve quem enviasse por ele. Um grupo grande de deputados do PSD e a provedora de Justiça. O segundo pedido muitas vezes não é lembrado. São dois pedidos que hão de fazer o seu caminho…
Por outro lado, a lei não está regulamentada. Não estando regulamentada, pode haver a lei aprovada, mas não há uma lei que se exerça. Ora, o problema da regulamentação da lei pode levantar, em si mesmo, problemas constitucionais e pode levantar problemas de aprovação. Temos uma maioria diferente e, portanto, temos aqui ainda um ponto de interrogação.
Vê alguma iniciativa a breve prazo, no Parlamento?
Não vejo, não vejo. Acho que têm outras coisas para se preocupar. Francamente, no mundo da saúde e da medicina têm, certamente, muito mais coisas para se preocuparem do que pensar em como fazer a morte de um doente, provocar a morte de um doente, ou assistir ao suicídio premeditado e assistido de um doente, que é uma coisa que me provoca imensa inquietação como psiquiatra. Não vejo nenhuma iniciativa e, francamente, até desejo que essa situação se mantenha, porque não há lei de eutanásia, neste momento.
Então, não esperamos também da Associação qualquer iniciativa? Deixar como está?
Eu não gosto dessa coisa de deixar como está. Podemos perguntar, no espaço público, quando é que o Tribunal Constitucional responde à fiscalização sucessiva da lei. Essa era uma boa pergunta, não é? Nós sabemos que isso demora muito tempo. Portanto, temos aqui duas frentes: uma do Tribunal Constitucional, que não está de fora, e a da regulamentação da lei. E depois temos ainda muitos campos de luta: na regulamentação de uma lei, também temos perguntas a fazer ou lutas também por fazer, quer de constitucionalidade, mas até de como é que isto se faz na prática. Depois, a relação com a Ordem dos Médicos, uma outra associação que faz por salvaguardar o seu código deontológico.
E que tem estado sempre contra…
Sempre. E, portanto, ela há de ser chamada, se houver lei, a pertencer à comissão de verificação. Aqui levantam-se problemas e se a Ordem não sentir esses problemas, nós estaremos cá para questionar isso. Não parece que vá haver problema sobre isso, porque, realmente, quer a Ordem dos Médicos, quer nós, pensamos da mesma forma. É uma questão de como lutar, como lembrar que um médico não pode fazer isto.
Não é ainda mais preocupante, esta questão da legalização da eutanásia, quanto é cada vez mais evidente que a resposta da rede de cuidados paliativos é insuficiente em Portugal?
É evidente. Embora não seja a resposta para a eutanásia. Não se pode dizer, pelo menos nós não dizemos que somos contra a eutanásia porque não há cuidados paliativos.
Bom, mas não há cuidados paliativos… não há cuidados paliativos, portanto só 20, 30% das pessoas a necessitar de cuidados paliativos é que os têm. Há aqui uma enorme diferença entre ricos e pobres, ou aqueles que podem pagar privadamente uma situação, e outros que não cabem na rede. Isto é uma coisa absolutamente indigna, indigna da própria medicina e de quem a gere. Julgo que a Ministra da Saúde terá isto em consideração.
Em primeiro lugar, é dado à pessoa o conforto que é necessário, não vou dizer bem-estar, mas o conforto e a dignidade necessária na última etapa da vida, e à família também. A questão dos cuidados paliativos é, de facto, uma área da medicina, que além de ser necessária, é difícil, é muito difícil. Têm de ser colegas muito especiais e uma equipa grande de enfermeiros, de assistentes sociais, de acompanhamento espiritual e de médicos especialistas.
Implica um grande investimento?
Sim, um grande investimento.
Eu queria detalhar a pergunta até para que se perceba melhor: morre-se mal em Portugal?
Morre-se. Morre-se mal. Morre-se sozinho. E não é difícil perceber que os idosos têm imensa dificuldade, que vivem sozinhos, sem família, ou a família não dá o apoio suficiente e estas pessoas não têm médicos de família e, portanto, vão agravando o seu problema de saúde. E alguns são encontrados mortos tempos mais tarde…
Também se morre na rua, atenção. Porque os sem-abrigo são uma situação que nos deveria inquietar como sociedade e eu não vejo isso. Vejo planos, eu também sou deputada municipal, há agora um novo plano no qual temos bastante esperança. O problema é que há uma avalanche de sem-abrigo e depois é muito difícil. O que me preocupa são os doentes que estão em situação de sem-abrigo. E essa é a área da medicina, não é? A outra área da imigração é difícil, mas não ia para aí.
A quantidade de pessoas em condição de sem-abrigo, sem teto, que são doentes mentais, é enorme. Eu, no outro dia, fui fazer uma ronda com a equipa de psiquiatria de saúde mental da Câmara [de Lisboa] e verifiquei isso. Já sabíamos, mas é diferente saber pelos livros e é diferente encontrar o alcoólico, o toxicodependente, sobretudo o álcool e a doença mental generalizada, psicótica e por aí.
Estas pessoas não têm lugar nos hospitais psiquiátricos, são também enxotadas. chegam à urgência e, não tendo condições de habitabilidade, as pessoas – eu tenho noção do que é que eu estou a dizer – podem não ser internadas com essa facilidade. Porque depois é difícil sair dos hospitais psiquiátricos, que são poucos também.
A Unidade de Alcoologia de Lisboa está fechada há três anos. A unidade que internava muitas destas pessoas está fechada. Portanto, eles acumulam-se. Se não são tratados, muitas vezes internados, um doente alcoólico o que quer é beber. A motivação para o tratamento é muito difícil. Tudo isto requer tempo, vocação, paciência e meios.
Recentemente o Parlamento Europeu aprovou uma resolução que pede que o direito ao aborto seja consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Caso a decisão seja aprovada no Conselho Europeu, estamos perante uma situação que coloca em causa valores fundamentais na defesa da vida, não é?
Aquilo que foi aprovado não é vinculativo, tem de haver unanimidade. Isto é um problema de saúde e espero, com esta esperança que os cristãos têm, que tal coisa não seja aprovada. Foi mais fácil aprovar em França, por razões grandes ou outras, mas o aborto nunca, mas nunca é um direito humano. Equivaler isso ao direito à saúde, ao direito à dignidade, à habitação, à paz, a todos os direitos; não está correto. O aborto não é um direito, porque nele está a morte de um outro ser que tem direito a viver, direito à vida. E esse sim é um direito que se tem de defender; não é o direito ao aborto. É uma coisa absolutamente inadmissível, impensável. Agora vou só lembrar isto: quando foi o primeiro referendo do aborto em Portugal [1998], todos diziam, todos dizíamos que o aborto era um mal. O aborto era uma coisa que tinha de ser segura e rara. Vejam como, em poucos anos, se transformou algo que era para ser despenalizado, mas que devia ser seguro e raro, para um direito europeu. É uma viagem absolutamente inadmissível. De resto, deixe-me lembrar que nem é preciso isto: a maior parte dos países na Europa têm leis favoráveis ao aborto. Em Portugal, o aborto não é um direito, c continua a ser criminalizado. É despenalizado até às 10 semanas, naquelas circunstâncias que sabemos. Portanto, não é um direito. Em circunstância nenhuma é um direito.
Este percurso, que acabou de referir, pode vir a limitar ou até mesmo impedir o direito à objeção de consciência dos profissionais de saúde?
É uma coisa a que estamos bastante atentos, porque há um caminho que se faz. Reparem como na última campanha eleitoral para a Europa, a ideia que foi matraqueada foi de que estávamos a caminhar… em vez de discutir outras coisas, discutiu-se muito o voltar atrás nos direitos reprodutivos das mulheres. Isto não é verdade, isto não é assim. É importante saber isto, havia nas legislativas de abril pelo menos dois partidos que propunham – um deles com grande responsabilidade, o Partido Socialista – a limitação da objeção de consciência. Ora, a objeção de consciência é a objeção de consciência, não é para ser limitada. A minha consciência não está limitada. Aliás, tenho a certeza de que a Ordem dos Médicos também está preocupada com isto, e nós preocupadíssimos. Em termos de associação, só dizer que a Ordem reconhece na Associação dos Médicos Católicos valores com que ela própria conta, e, portanto, somos convidados para refletir em conjunto. No próximo dia de São Lucas, 18 de outubro, vai ser celebrado com o senhor patriarca e com um jantar na Ordem dos Médicos. Isto é muito importante. Eu tenho muito alegria, também tenho orgulho, mas sobretudo alegria em podermos participar nesta ajuda também à Ordem.
Vamos terminar com um minuto de reflexão sobre a realidade do setor da saúde em Portugal. O SNS vive momentos de grande dificuldade, não vamos agora aqui elencá-los. Encontra sinais positivos, sinais de esperança?
Quando os médicos lutam por melhores condições, concordo com isso. Trabalhar com dignidade é um direito e uma necessidade e uma salvaguarda para tratar bem dos doentes também. Não se pode é pôr o meu interesse à frente dos doentes. Isso é diferente.
Agora, quando falamos em SNS já estamos a limitar. Estamos a ver uma parte da saúde. Se falarmos em Sistema Nacional de Saúde estamos a incluir todos e para mim era assim que deveríamos trabalhar. O SNS tem menos gente, menos recursos; a solução, ou uma das soluções, é fazer uma parceria verdadeira, uma rede verdadeira entre público, privado e o setor social, que é enorme e que faz um trabalho absolutamente extraordinário. O que seria deste país sem o setor social? E pergunto eu, isso é valorizado? É valorizado nas diárias que se pagam? Tudo isto também tem a ver com esta situação do SNS. Eu acho que não devemos falar só do SNS. Ele tem aspetos particulares. Devemos falar do Sistema Nacional de Saúde em Portugal, em que todos têm de colaborar com todos.
Antecipa um verão difícil?
Antecipo, porque esta questão das horas extraordinárias – os médicos já começaram a anunciar que não as farão – vai aumentar a dificuldade nas urgências, pelo menos, e nos serviços.