Bispo de Vila Real lembra 40 anos da Humanae Vitae

«Para não ter de se lutar diariamente por um ideal, é mais fácil derrubar esse ideal, na ilusão de que se fica mais livre» Faz amanhã quarenta anos que o Papa Paulo VI publicou a encíclica Humanae vitae, sobre a paternidade responsável e a regulamentação dos nascimentos, um documento doutrinário que marcou o pontificado do Papa Montini, a vida da Igreja e a sociedade, na medida em que esse documento, mais do que mera disciplina pontual, inclui uma reflexão de fundo sobre a sexualidade humana e os anticonceptivos. É, pois, conveniente evocar esta data. A sexualidade humana foi sempre um tema delicado ao longo da história. Com a evolução científica e técnica, as perspectivas demográficas, as orientações psíquicas do séc.XX, o tema tornou-se ainda mais actual. Hoje vivemos numa sociedade profundamente erotizada. Não há edição jornalística de fim-de-semana ou obra de escritor, pintura mural ou exposição artística, festival de música e de cinema, estação de televisão ou número publicitário, que não incluam algum elemento erótico a servir de condimento julgado indispensável na cozinha da arte. É um traço típico na nossa civilização, frequentemente artigo de comércio. Voltamos à Antiguidade pagã mas sem chamar retrógrado a esse regresso. Por outro lado, continua o drama social da descida da natalidade e do aumento dos divórcios cada vez mais facilitados, a polémica sobre a legislação do casamento e uniões de facto, agressão física à mulher no casamento ou nas relações de noivado, o assédio sexual, a polémica sobre a desorientação dos jovens em matéria sexual. Dentro da Igreja, vinha de longe a preocupação por esta área que afecta toda a gente, sobretudo a vida matrimonial. Durante o Concílio tinha-se falado do grave problema da natalidade, do sentido da sexualidade humana, da vida íntima do casal, do aborto, da vulgarização dos anticonceptivos entre adultos e jovens, e do seu cruzamento com a liberdade da mulher e com as políticas mundiais. Desde João XXIII que o tema fora reservado ao Papa e Paulo VI manteve essa orientação com uma equipa especialmente constituída para uma reflexão sobre a matéria, criando-se necessariamente uma grande expectativa em redor dessa equipa e desse estudo. Entretanto, no mês de Maio desse ano de 68, tinha ocorrido em França o «Maio 68», uma explosão de todas as liberdades que deu o tom da mentalidade difundida na Europa acerca da disciplina de costumes, do conceito de esforço pessoal, da aceitação de normas em matéria sexual. Divulgara-se por toda a parte que, entre os membros da equipa do Papa, se haviam formado dois partidos: um, mais reduzido, que fazia uma reflexão na linha doutrinária dos documentos anteriores da Igreja, e outro, mais alargado, que se orientava para uma reflexão mais aberta. Nessa altura, estava eu oficialmente responsabilizado na pastoral familiar e, nomeadamente, na pastoral do noivado, e, para minha orientação de base, procurei um respeitado professor de Ética filosófica e Teologia para saber que ventos sopravam no mundo da reflexão séria. Quando lhe disse o motivo da minha preocupação, ele fixou-me e disse nervoso: «aí está a serpente a lançar o veneno na rua para que, ao ver-se esmagada, deixe a impressão que ela é que é a libertadora». Foi isso que aconteceu: ao aparecer a encíclica Humanae vitae, foi logo taxada de obra de uma minoria, em oposição à maioria libertadora! O Papa sofreu horrores, incluindo caricaturas sórdidas, sobretudo na Alemanha. E o clima não se dissipou totalmente. Não é aqui o lugar para fazer qualquer exposição, ainda que breve, daquela encíclica. Lembro somente que ainda hoje vale a pena lê-la, que «ela tem consistência, ainda que as suas motivações e a visão antropológica devam ser submetidas a um exame maior», como disse há anos o cardeal Ratzinger, hoje Bento XVI. Sobre os grandes valores, obrigações e finalidades expostos na H.Vitae, não há qualquer divergência no seio da Igreja. Esses grandes valores são: «o carácter genuíno do amor conjugal como essencialmente oblativo e oposto ao egoísmo, a dignidade da pessoa dos cônjuges, a santidade e inviolabilidade da vida desde o começo da concepção com absoluta exclusão de toda a tentativa de justificar o aborto, o carácter de generosidade de toda a vocação da paternidade a maternidade, a dignidade do acto conjugal e seu valor para alimentar a união conjugal e familiar» (B.Haring) O mundo enveredou por outra filosofia da sexualidade. Para, de algum modo, medir o dilúvio erotizante e os problemas humanos e sociais nascidos dessa filosofia oposta à encíclica, basta citar os vários documentos que o João Paulo II, sucessor de Paulo VI, foi publicando para responder às chagas abertas, nomeadamente a Exortação Apostólica «Familiaris consortio» em 1982, a carta apostólica sobre a «Dignidade da Mulher» em 1988, a encíclica sobre «O Evangelho da Vida» em 1995; e outros editados pela «Congregação para a Doutrina da fé»: «Persona humana» em 1975, «Libertatis conscientia» em 1986, «Cuidado pastoral das pessoas homossexuais» em 1986, «Donun vitae» em 1987, «Considerações concernentes à não discriminação das pessoas homossexuais» em 1992, «Considerações sobre Projectos de Reconhecimento Legal das Uniões entre Pessoas Homossexuais» em 2003. Seja por influência freudiana, seja por psicologias behavioristas, seja por romantismos rousseaunos, seja por fantasias culturais e seduções de militâncias políticas ditas progressistas, gerou-se a ideia de que o prazer sexual faz parte da vida da pessoa, comparável aos outros prazeres, e estabeleceu-se como norma o direito geral a esse prazer. A partir daí, nunca mais parou a derrapagem da sexualidade humana entre jovens e adultos, solteiros e casados, entre homens e entre mulheres. Só param legalmente diante das crianças. Para suporte desse suposto direito, carreou-se tudo o que a indústria farmacêutica, uma certa medicina sem antropologia e as organizações políticas possam angariar, incluindo a invenção do «direito à saúde reprodutiva» e a «liberdade sexual da mulher grávida», acima da vida do filho. Os inimigos desta liberdade sexual são dois: os filhos (tendencialmente indesejáveis), e as doenças derivadas da liberdade sexual e a sida. No dia em que fosse possível afastar esses perigos, teríamos na terra um novo humanismo, o paraíso muçulmano. A permanência desta mentalidade nos esquemas oficias das governações políticas ressalta em certos discursos e proclamações partidárias e impede de tomar atitudes que toda agente vê serem necessárias mas que constituem os novos tabus culturais. Entretanto, o n.29 da encíclica alerta: «Não diminuir em nada a sã doutrina de Cristo é uma forma eminente de caridade para as almas. E isso deve ir sempre acompanhado da paciência e da bondade de que o mesmo Senhor deu exemplo no contacto com as pessoas na sua vida terrena. Foi intransigente com o mal, mas misericordioso com as pessoas». Para não ter de se lutar diariamente por um ideal, é mais fácil derrubar esse ideal, na ilusão de que se fica mais livre e que tudo fica resolvido. D. Joaquim Gonçalves/A Voz de Trás-os-Montes Dossier AE • «Humanae Vitae»

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