Luís Manuel Pereira da Silva, Diocese de Aveiro
As nossas sociedades modernas assentam sobre a convicção de que a ‘progressiva autonomia’ é o maior desiderato das nossas vidas coletivas. E coincidimos nesse reconhecimento. Mas há muitos equívocos na conceptualização desse desiderato.
Antes de nos adentrarmos na discussão sobre esses equívocos, consideremos um pressuposto.
O desejo não se constitui, por si mesmo, em direito. Desejar e desejar muito pode emergir de uma mera insuficiência, de uma fragilidade momentânea ou, até, de uma obsessiva atração por um ‘objeto’ impossível, seja porque não nos pertence, de todo, seja porque é irreal.
Este reconhecimento não é, contudo, ponto assente, hoje. Muitos são os que fazem coincidir ‘desejo’ e ‘direito’, criando um curto-circuito com muitos custos, pois o desejo suportável pelo reconhecimento jurídico deve caber no que é justo, no que, como recorda Ulpiano, é devido atribuir. ‘Não ser devido’ torna o desejo uma mera miragem e uma ilusão se for envolvido pela convicção de poder ser reconhecido como direito, comportando custos elevados para o indivíduo e para os que com ele vivem.
Mas, paradoxalmente, as sociedades atuais pareceram esquecer-se disto…
Identificado este trágico curto-circuito, avancemos para a reflexão sobre a autonomia e a responsabilidade, conceitos basilares das nossas vidas modernas.
Quase poderíamos, pretendendo ir ao essencial da condição moderna, reconhecer nestas duas ideias o núcleo ‘genético’ do que é ser moderno.
Mas de que estamos, afinal, a falar?
Incidamos a nossa atenção na ‘responsabilidade’.
A história das palavras ajuda-nos a descobrir o seu sentido original e mais estruturante.
Tomemos por referência o que nos diz o dicionário de latim-português da Porto Editora (2.ª edição de 2001). Teremos de procurar o verbo respondeo,es, ere, sponsi, sponsum (que remete, por seu turno, para ‘spondeo’). ‘Respondere’ significa ‘comprometer-se, garantir por seu lado, assegurar, afiançar, responder. ‘Spondeo’ é definido como significando ‘tomar um compromisso solene, prometer, obrigar-se’.
Uma leitura em profundidade dos dois termos permite-nos reconhecer, imediatamente, que são verbos que implicam uma dialética. Há alguém que responde, supondo-se que o faz perante alguém.
‘Responsabilidade’: perante quem?
E é neste ponto que gostaria de incidir a atenção.
O conceito de responsabilidade, que poderemos definir como a condição de um sujeito capaz de responder pelos seus atos, remete para um diálogo, para um compromisso. Um compromisso em relação a algo (o que faço? O que fiz?) e perante alguém (porque o fazes? Porque o fizeste?).
Na sua raiz, a responsabilidade tem uma natureza implicitamente teológica, pois, se alguns alegam que a responsabilidade é perante os outros, caberá sempre perguntar perante quem responderá o último homem, quando já não houver outros homens perante quem possa responder.
A resposta de que se responde perante a própria consciência é insuficiente, pois parte de um pressuposto individualista que colide com o reconhecimento da intrínseca solidariedade humana. Não nascemos de nós, não nos fazemos a nós mesmos; não podemos, por isso, ser o interlocutor de nós mesmos. Seria patético (no seu sentido etimológico: ‘doentio’, ‘patológico’, ‘bipolar’). A responsabilidade remete e carece da admissão de um totalmente Outro perante quem se responde.
E essa parece-me ser, desde há muito, uma das causas da crise de uma certa leitura da modernidade. O sujeito moderno de algumas leituras, no seu solipsismo, esvaziou a responsabilidade, reduzindo-a a um mero ‘flatus vocis’ (‘sopro da voz’, uma coisa que se diz mas que a nada corresponde). A responsabilidade tantas vezes evocada parece ser um mero assumir que sabemos que fizemos.
Mas isso não é responsabilidade. É memória. Condição, certamente, para a responsabilidade, mas ainda não a sua definição. A responsabilidade é a memória perante aquele que nos interroga, dado que a responsabilidade, como mostrava a etimologia, é um ato de ‘resposta’, que supõe, obviamente, um ‘perguntar’.
É o mesmo sujeito que pergunta e responde?
Pode isto ser uma autêntica ‘responsabilidade’?
Identifico, aqui, parte da crise das sociedades modernas… Fecharam os sujeitos sobre si mesmos e estranham que eles já não queiram ser interrogados sobre o que fazem e porque o fazem…
Mas se os convencemos de que era isso ‘responsabilidade’, como poderemos esperar algo distinto?
‘Autonomia’: a alternativa é a anomia?
De modo parecido, o fenómeno repete-se no que respeita a ‘autonomia’.
Vamos, novamente, à etimologia.
A palavra ‘autonomia’ aglutina duas palavras gregas: ‘autós’ e ‘nómos’. Tomemos por referência o que nos diz o dicionário de Grego-Português e Português-grego, de Isidro Pereira, na sua 8.ªedição da Livraria A.I. de Braga. ‘Autós’ significa ‘mesmo’, ‘ele mesmo’, por si mesmo’, etc. ‘Nómos’ é definido como ‘uso’, ‘costume’, ‘opinião geral’, ‘máxima’, ‘lei’. Para a nossa reflexão, interessa reter a ideia de ‘lei’. Poderíamos considerar a ‘autonomia’ como ‘lei em si mesmo’.
Para descortinarmos o alcance efetivo da palavra ‘autonomia’ a etimologia precisará de a cruzar com o seu antónimo, o seu oposto, pois é aqui que, na minha opinião, se estrutura a base para o equívoco de algumas conceções modernas de ‘autonomia’.
Muitos são os que leem a ‘autonomia’ como a capacidade para cada um criar leis por si mesmo.
A base do equívoco está na convicção de que o antónimo de ‘autonomia’ seja a ‘anomia’, que poderíamos definir como a ‘ausência de lei’ (o prefixo privativo ‘a’ poderia ser traduzido como ‘ausência de’, ‘inexistência de’…). É esta a convicção de muitos. O sujeito é autónomo, pois, sem ele, não existiria lei, que, afinal, ele mesmo cria.
Há aqui, como venho dizendo, um equívoco, com enormes custos.
‘Autonomia’ não tem como antónimo ‘anomia’, mas sim ‘heteronomia’.
Definamos heteronomia…
Mais uma vez, a palavra compõe-se de duas partes de origem grega, sendo ‘nómos’ palavra já aqui definida, somada ao adjetivo ‘éteros’. ‘Éteros’ pode ser definitido como ‘outro’, um dos dois, o outro’, etc.
Poderíamos definir heteronomia, a esta luz, como ‘lei no outro’.
Este é o verdadeiro antónimo de ‘autonomia’. A questão poderá colocar-se assim: sabendo que existe lei (e não a anomia, como defendem os solipsistas), onde se encontra a razão pela qual a cumpro? Em mim ou no outro? Cumpro a lei porque o outro mo impõe ou porque a reconheço válida e me imponho o seu cumprimento?
A verdadeira autonomia, a esta luz, não é a capacidade de criar a lei, mas de me conformar a ela, por mim mesmo, sem precisar de que o outro mo imponha.
Percebemos, por isso, que a verdadeira autonomia seja o desejo mais autêntico, mas também mais difícil da humanidade. É que, logo ali, está a ribanceira do abismo da anomia… O desejo de que a lei seja interiorizada pode, facilmente, resvalar para a sua substituição por um outro desejo: o de que se desista de interiorizar a lei para se presumir ser o seu próprio criador.
Na conceção que aqui denuncio (que designei como solipsista), a verdade não existe e não se caminha para ela. O sujeito vive, solitariamente, e cria a sua própria lei. Resvala para o abismo de uma solidão ilusória em que, após se reconhecer criador da lei a percebe como só sua e, por isso, inválida para os demais… De que valeria uma lei assim? E donde lhe viria a sua força? Só do poder de quem a pudesse impor aos demais…
Na conceção que respeita a história do conceito, autonomia é, por oposição, um caminho decidido pelo sujeito que visa conformar-se à verdade, à lei que reconhece como sendo participada por si, mas não originada por si, antes assumida.
Nesta visão, autonomia e responsabilidade são dois termos que pressupõem a tensão entre o sujeito e o para além do sujeito. Este caminha para algo, encaminha-se, não rodopia sobre si. A sua vida é, então, como tão fecundamente pensaram os cristãos, ao longo da sua história, um ‘peregrinar’, caminha para algures, para uma meta. O seu caminhar é transcender-se.