Padre Manuel Ribeiro, Diocese de Bragança-Miranda
«A identidade nacional constrói-se numa dinâmica de confronto»
“Eu sou tu quando eu sou eu” (Paul Celan)
A identidade nacional (a portuguesa, em particular) resulta, inevitavelmente, dum processo de comparação com outras identidades e, em algumas circunstâncias, resulta numa reação de cariz mais bélica, quase numa tentativa última de afirmação da sua pertinência enquanto povo e nação.
A este propósito é muito interessante ver todo o processo de definição de uma identidade e marca. Podemos constatar na literatura antiga portuguesa uma procura por sinais divinos que atestem e/ou sustentem a ideia de Portugal como nação e como povo desejado por Deus para um propósito e para uma missão única e intransmissível. Esta procura de sentido, gerou, de forma mais ou menos evidente, a fabricação de narrativas algo mitolizadas, com toques epopeicos, podendo observar isso nas Crónicas de Fernão Lopes, passando pelos Os Lusíadas de Luís de Camões e, acabando, com A Mensagem de Fernando Pessoa.
Portugal, dada a sua situação e condição geográfica, encontra-se, particularmente durante a baixa Idade Média e, mais tarde, no período dos Filipes, numa procura de consolidar a sua independência e identidade numa luta com a sua (única) vizinha Espanha.
Volvidos aos tempos hodiernos, a inquietação que resulta do processo de globalização é da preservação de uma identidade local em detrimento de uma identidade global. Convém reforçar que estas não deverão ser vistas como contrárias, mas como complementares, procurando cada uma ser e dar o melhor de si para que ascenda uma identidade mais inclusiva e agregante.
Maalouf relembra o perigo para a procrastinação em chegar a uma definição, mais ou menos contundente e transversal, de uma (nova ou renovada) identidade que responda, assertivamente, aos anseios, aos sonhos e aos desejos de uma sociedade que se quer mais altruísta, mais inclusiva, mais solidária, mais edificante e mais humanizada. Diz ele:
“Na era da globalização, com esta mistura acelerada, vertiginosa, que nos envolve a todos, impõe-se uma nova conceção de identidade – urgentemente! Não podemos contentar-nos em impor aos milhares de milhões de humanos desamparados a escolha entre a afirmação descomedida da sua identidade e a perda de toda a identidade, entre integrismo e desintegração. Ora, é isso que implica a conceção que ainda prevalece neste domínio. Se os nossos contemporâneos não forem encorajados a assumir as suas múltiplas pertenças, se não conseguirem conciliar a sua necessidade de identidade com uma abertura franca e descomplexada às diferentes culturas, sentir-se-ão obrigados a escolher entre a negação de si mesmos e a negação do outro, estaremos a formar legiões de loucos sanguinários, legiões de alucinados” (MAALOUF, 2023, p. 39).
A sociedade moderna padece, como profeticamente Lipovetsky anunciou, de problema de individualismo e egoísmo únicos na história. Os indivíduos estão cada vez mais “absorvidos neles próprios” (LIPOVETSKY, 1989, p. 20) e a procura por uma identidade pessoal apresenta-se como um problema premente, indissociável das profundas modificações culturais em curso.
A este propósito, o Papa Francisco assevera que:
“Identidade e alteridade existem juntas e podem coexistir apenas num contexto de coragem, liberdade e oração. A alteridade é vital para a identidade. «Nunca sem o outro», o título de um belo ensaio de Michael De Certeau, é um belo «lema» que pode distinguir a existência humana, que encontra no relacionamento a sua plenitude e o seu sentido último. Um coração dobrado sobre si mesmo fica doente e «incrustado» com escórias que impedem a sua pulsação saudável e vivificante. O relacionamento tem a sua própria «respiração», que precisa de ritmo e oxigénio limpo, condições garantidas apenas pela presença do outro. A minha identidade é um ponto de partida, mas, sem alteridade, ela cai em ouvidos surdos, murcha e corre o risco de morrer. Sem o reconhecimento da alteridade, não apenas o outro morre, mas também eu morro. O aspeto importante, no entanto, é que, para ser «completo», esse reconhecimento deve abrir-se ao reconhecimento da liberdade do outro. Este ponto é crucial. Aqui, vamos mais uma vez ao coração do Cristianismo” (FRANCISCO, 2020, pp. 128-129).
O medo pelo outro sempre acompanhou a história da humanidade. Mas é a assunção da alteridade que define e marca a identidade pessoal e colectiva. O Padre Anselmo Borges afirma que “a identidade só se dá na e pela alteridade. Só há ser humano com outros seres humanos. Ser e ser-em-relação identificam-se. A alteridade não é adjacente, acrescentada. O Homem só existe no encontro com o Outro/outros. Sem tu, não há eu, e nós somos nós, na presença e no encontro com os outros” (BORGES, 2009, p. 8). Por isso, Beyung-Chul Han reitera que “um sistema que rejeita a negatividade do diferente desenvolve traços autodestrutivos” (HAN, 2018, p. 9).
Nesta mudança de horizonte e de perspectiva, o Papa Francisco lembra que “estamos todos no mesmo barco e somos chamados a empenhar-nos para que não existam mais muros que nos separam, nem existam mais os outros, mas só um nós, do tamanho da humanidade inteira” (FRANCISCO, 2021). Aliás, já na Carta Encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco expressa o seu desejo para que já “não existam os outros, mas apenas um nós” (FRANCISCO, 2020, nº. 35). Eis o caminho e o roteiro para a nossa hodiernidade.