Texto inédito de Pessoa mostra Fátima como lugar mítico de construção do nacionalismo católico

Fernando Pessoa encarava Fátima como o lugar mítico da construção do nacionalismo católico e monárquico que ele repudiava, segundo o historiador José Barreto, que revelou Quarta-feira um texto inédito do poeta. “É um texto irónico, a roçar a sátira anticlerical, em que Pessoa parece regressar ao seu radicalismo de juventude. A intenção não é propriamente anti-religiosa, mas anti-católica – uma ‘nuance’ que se deve sublinhar”, disse José Barreto numa conferência proferida na Casa Fernando Pessoa, no âmbito de um ciclo intitulado “O Guardador de Papéis”, que assinala os 120 anos do seu nascimento. Começa assim: “Fatima é o nome de uma taberna de Lisboa onde às vezes… eu bebia aguardente. Um momento… Não é nada d’isso… Fui levado pela emoção mais que pelo pensamento, e é com o pensamento que desejo escrever”, disse o poeta. Datado de 1935, o texto de cinco páginas manuscritas descoberto pelo investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa é apenas “o preâmbulo de um artigo maior que teria um carácter de estudo de caso, permitindo caracterizar aquilo a que Pessoa chama ‘esta religiosidade portuguesa, o catolicismo típico deste bom e mau povo'”, explicou, citando o poeta. “Fatima é o nome de um logar da provincia, não sei onde ao certo, perto de um outro logar do qual tenho a mesma ignorancia geographica mas que se chama Cova de qualquer santa”, escreveu Pessoa. “Nesse logar – esse ou o outro – ou perto de qualquer d’elles, ou de ambos, viram um dia umas crianças apparecer Nossa Senhora, o que é, como toda gente sabe, um dos privilégios (…) a que se não (…). Assim diz a voz do povo da provincia e a ‘A Voz’ (jornal católico e monárquico) sem povo de Lisboa”, prosseguiu. “Deve portanto ser verdade, visto que é sabido que a voz das aldeias e ‘A Voz’ da cidade de ha muito substituíram aquellas velharias democraticas que se chamam, ou chamavam, a demonstração scientifica e o pensamento raciocinado”, ironizou. A religião dos portugueses era vista por Pessoa com “o olhar cínico de quem achava que ela era socialmente útil: o povo precisava de religião e não podia dispensá-la ou deixaria de ser povo”, defendeu José Barreto. O artigo sobre Fátima – que teria sete páginas tipográficas, de acordo com o sumário que Pessoa deixou escrito – destinava-se a ser publicado no primeiro número da revista Norma, um dos três projectos editoriais de Pessoa no ano da sua morte, em 1935, um quinzenário sobre Literatura e Sociologia que não chegou a concretizar. Redacção/Lusa

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