Igreja e Estado têm de passar ao terreno pela defesa do património

Director do Secretariado Nacional dos Bens Culturais aponta prioridades e necessidades mais urgentes Existe em Portugal uma herança incomparável no domínio do Património Religioso, rico na diversidade regional e na pluralidade de referências religiosas, do longo período que antecede a ocupação romana do que viria a ser o território continental português aos dias de hoje. João Soalheiro, director do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja, aponta prioridades e necessidades mais urgentes, neste campo. Agência ECCLESIA – Nos próximos dias 18 e 19 deste mês, realizar-se-á o Conselho Nacional para os Bens Culturais da Igreja. É um ponto de chegada ou partida? João Soalheiro – Confesso que não sei se é ponto de chegada ou de partida. Espero que seja um ponto de outra natureza. É a primeira vez que se reúne um Conselho Nacional. Tem um formato profundamente institucionalizado e não é um encontro de amigos. AE – Mas são amigos do Património? JS –– Amigos das pessoas a quem o Património se destina. Em relação ao Conselho Nacional gostaria de frisar que à volta da mesma mesa estarão representantes de todas as dioceses, nomeados pelos bispos, e representantes nomeados por instituições eclesiais com um forte empenho e actuação na área do Património Cultural. Nem todas são detentoras deste Património. AE – O que se pretende com esta iniciativa? JS –Avaliar os adquiridos na área do Património Cultural ao longo destes últimos anos. Com a consciência muito fresca e muito viva do que foi bem feito e do que foi mal feito tentaremos partir para estratégias de actuação futura. AE – Actualmente, os arquivos eclesiais são «a menina dos olhos» do Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja? JS –Não diria «menina dos olhos», mas direi uma efectiva prioridade de actuação na área do património cultural. Nas mais variadas expressões, este património é material e imaterial e passa pela produção documental, arquitectura, bibliotecas, inventário, tradições e criação artística. Há uma diversidade muito grande nas áreas de actuação e não podemos acudir a tudo ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. Temos de eleger prioridades e, neste momento, este secretariado elegeu como prioridade de actuação animar a dinâmica dos arquivos. Neste trabalho temos em vista objectivos muito concretos: não se trata de discutir conceitos e de teorizar os problemas da arquivística, mas pretendemos operacionalizar uma rede de arquivos da Igreja que permita disponibilizar ao público os acervos históricos e documentais da Igreja Católica. AE – O termo público é muito lato? JS –Quando digo público não me refiro apenas para consumo interno das comunidades eclesiais. Trata-se de tornar acessível à sociedade portuguesa o conjunto monumental dos fundos documentais produzidos ao longo de séculos. 500 quilómetros AE – Quando se fala de arquivos referimo-nos a quilómetros e quilómetros de papeis «amarelados» com dados históricos do povo português. Pode-se quantificar o material existente? JS – Avançar com um número é uma actividade de risco. No entanto, segundo as sondagens que temos feito, tendo em vista operacionalizar esta dinâmica, a Igreja Católica se conseguir estabelecer essa rede de arquivos – com tudo o que é necessário do ponto de vista tecnológico, competências, tratamento da documentação – estará em condições de disponibilizar ao público, a médio prazo, mais de 500 quilómetros lineares de documentação. Estamos a falar de mais de 500 mil metros lineares de documentação AE – A Igreja tem noção deste número ao nível do património arquivístico? JS – A Igreja tem noção que os seus fundos documentais são valiosos e relevantes. Não apenas para a memória do Cristianismo em Portugal, mas para a sociedade portuguesa em geral. Todavia, talvez não tenha consciência da monumentalidade que estes fundos documentais patenteiam. Quando digo que não terá consciência é no sentido de que os fundos documentais se encontram dispersos pelas mais variadas instituições eclesiais, canonicamente erectas, e, por isso, não há uma visibilidade ou memória fotográfica que traduza o impacto desta documentação. Quando os arquivos históricos diocesanos estiverem operacionalizados, esse impacto será visível: no ponto de vista matérico e, não apenas, na vertente teórica. Apesar de todas as vicissitudes históricas que distraíram da tutela da Igreja católica muita da sua documentação própria, neste momento temos ainda espalhada muita documentação pelas instituições. AE – Operacionalizar é a palavra de ordem. Está bem vincada na sua linha programática. JS – Temos conseguido operacionalizar, um tanto, a nossa intervenção na área do património cultural. É manifesto, nas várias dioceses portuguesas, alguma organização estruturada na área dos bens culturais. No entanto, infelizmente, ainda não foi possível estender este rumo a todas as dioceses. Para lá caminhamos. É esse o sentir e empenho dos bispos, padres, leigos e serviços diocesanos. Todavia, falta concretizar, de uma forma segura e mais eficaz, serviços estruturados e empenhados. É fundamental dar continuidade ao trabalho, que esses serviços vocacionados não façam uma iniciativa óptima este ano e que depois estejam parados dois ou três anos. AE – Existe esse perigo… Acontece isso com frequência? JS – Há esse perigo na Igreja Católica como há esse perigo nas estruturas do Estado. Vivemos momentos de dificuldades financeiras. Não é fácil mobilizar recursos para intervenções de fôlego nesta área. Vivemos um problema de fundo que passa pela garantia da sustentabilidade das competências – não das iniciativas – na área do Património Cultural. É muito simples e fácil ter ideias – temos ideias todos os dias -, mas é muito difícil operacionalizar com competência essas ideias. Actualmente, posso propor a realização de uma iniciativa magnífica, mas, depois, confronto-me com a dificuldade de não ter dinheiro suficiente para contratar técnicos competentes para colocarem de pé o projecto. Recursos financeiros e operacionalização AE – Para a concretização destes projectos, a Igreja Católica tem disponibilidade financeira? JS – Sem hesitação, a resposta é negativa. Não há capacidade financeira para intervir, de forma adequada, na área patrimonial. Neste momento, nenhuma diocese está em condições financeiras de intervir no seu património com a qualidade e a competência desejadas. Mas não é uma situação exclusiva da Igreja Católica porque, neste momento, também o Estado Português tem as maiores dificuldades em financiar as intervenções na área do Património Cultural. AE – Existem parcerias entre a Igreja Católica e o Estado Português nesta área? JS – Há parcerias que vão sendo realizadas «Ad hoc». No entanto, gostaria de ver definidas prioridades de actuação e uma maior contratualização dessa actuação. Vivemos um tempo marcado pela síndrome dos protocolos, sobretudo protocolos de intenções. Esta situação tem um lado positivo. Significa que há um entendimento base que une as entidades e as instituições em prol de objectivos comuns. No entanto, estes protocolos não operacionalizam de forma estruturante as intervenções. Como temos relações cordiais, é chegada a hora de operacionalizar. De dizer «preto no branco», em papel, o que compete a quem, como repartir os encargos da intervenção, calendarizar as operações, mas tendo sempre como ponto de partida a clarividência dos objectivos. O pano de fundo deve situar-se num serviço de qualidade à sociedade portuguesa. Não podemos perder este aspecto do horizonte. Mantendo, evidentemente, aquilo que é próprio da identidade das instituições. Não se pedindo, por exemplo, à Igreja Católica que desvirtue a sua natureza e a sua missão por causa de intervenções arregimentadas a propósito de ideários momentâneos ou de agenda política. AE – Como passar dessa carta de intenções para um documento operacional? JS – Não há receitas que possam ser aplicadas de forma universal de Norte a Sul do país. AE – Se o erro está identificado… JS – Não é erro. As pessoas têm de discutir objectivos. Ver o que podem fazer juntas. Repartir os custos dessa intervenção. É muito diferente gastar um milhão de Euros numa intervenção de cosmética num monumento emblemático do que gastar um milhão de Euros numa intervenção que não tem tanta visibilidade, mas que, ao fim de dois ou três anos, nos garante uma rede operacionalizada de bens culturais ao serviço da sociedade. AE – O que significa esta rede de arquivos? JS – A questão é profunda. Não se resolve com a colocação de documentos na Internet que as pessoas consultam conforme a sua disponibilidade. Uma rede de arquivos não pode ser, e não é, o somatório de arquivos institucionalizados. Uma rede de arquivos é, sobretudo, o resultado de instituições que partilham as mesmas preocupações, as mesmas metodologias e os mesmos instrumentos de trabalho. A comunhão dos mesmos objectivos. Isto sim, é uma rede de arquivos. Seria muito bom que, independentemente das derivas regionais próprias de cada diocese, os arquivos da Igreja pudessem partilhar – dentro de meia dúzia de anos – sistemas informáticos, quadros de qualificação e instrumentos de descrição documental. Quanto mais partilhados forem estes instrumentos e metodologias, mais rede – no sentido específico do termo – de arquivos da Igreja nós teremos. AE – Nesta era de globalização e das novas tecnologias, faz sentido tanto empenho nos papéis «amarelados» dos arquivos? JS – – Basta ver a Wikipédia. Muitas vezes, quando consultamos artigos sobre personalidades ou acontecimentos neste site da Internet, informa-nos que «não dispomos de informação sobre… ». As novas tecnologias são fantásticas, mas se o trabalho prévio da recolha e do tratamento da informação não for feito não há novas tecnologias que possam partilhar informação. As novas tecnologias ainda não provaram capacidade de gerar informação. Até ao momento, só potenciaram a divulgação da informação. Estamos a falar do trabalho prévio, a própria produção da informação, que não pode ser feita sem os testemunhos históricos. Temos de trabalhar para salvaguardar os documentos e proporcionar esses documentos a quem tem as competências para os ler e tratar, do ponto de vista da informação. AE – A Igreja tem pessoas capacitadas para tratar esse acervo documental? JS – A Igreja não precisa de «ter» pessoas capacitadas para fazer o que quer que seja. A igreja necessita é de saber onde vai encontrar essas pessoas com competências próprias para as envolver nesse trabalho. Não estamos num tempo em que actuar, no âmbito do património cultural, se compadeça com a simples boa vontade. Não basta a boa vontade, mas é preciso ir buscar competências. Estas encontram-se nas universidades e no mercado de trabalho. Do meu ponto de vista, é um erro querer ter presbíteros a responder com competências próprias a todos os problemas na área patrimonial. O envolvimento dos leigos é precioso. No entanto, não quero dizer que não seja importante ter presbíteros especializados – através de estudos universitários – em diferentes áreas e também no património. Radiografia às Dioceses AE – Recentemente, fez um périplo pelas dioceses portuguesas para se inteirar e mobilizar os agentes desta área. Resultados positivos ou negativos? JS – Enquadro este périplo que estou a terminar de uma forma algo diferente. Primeiro, mais do que sensibilizar pretendi auscultar os bispos e agentes dos bens culturais da Igreja. Sensibilizar é uma palavra bonita, mas não está no horizonte da minha actuação. AE – No entanto, é fundamental incentivar… JS – Neste momento não vivemos num quadro que seja necessário sensibilizar as pessoas para o património cultural. Sensibilizar para estas questões foi um problema sério vivido nos anos 80 e 90. Estamos noutra fase. Pretendemos operacionalizar a actuação. AE – Se compararmos este ideário a uma maratona podemos dizer que há atletas que estão à frente de outros? JS – A experiência das dioceses nesta área é muito diversa. A experiência de algumas é exemplar e motivo de vontade para outras caminharem no mesmo sentido. Há cada vez mais um sentimento de entreajuda e de procura de partilha dos objectivos, da resolução dos problemas e dos próprios meios. Todavia, necessitamos de passar a uma fase de concretização mais intensa. AE – Uma corrida com lebres e tartarugas? JS – Todos caminhamos a passos diferentes porque a medida das nossas pernas também é diferente. Noto, isso sim, um empenho muito grande em transformar a área dos Bens Culturais da Igreja num lugar pastoral. Trazer e devolver o Património Cultural à vida das comunidades eclesiais. AE – A Igreja está a acordar para o valor estético do Evangelho? JS – A Igreja sempre teve uma consciência muito nítida da beleza do Evangelho e da capacidade criadora que as gerações conseguiram demonstrar ao longo dos tempos. Sem chorar o passado AE – Há muitos documentos que se perderam… Uns vandalizados e outros que foram parar a mãos indevidas. Não são lamentáveis estes acontecimentos? JS – Apesar de causar escândalo, costumo dizer que não compete à geração dos vivos chorar as certidões de óbito do património que, todos os dias, temos de assinar. Com esta afirmação, não pretendo desresponsabilizar incúrias, nem iludir os problemas que estão associados à perda de património; mas é preciso ter a consciência viva de que não há capacidade – humana e eclesial – de conservar tudo aquilo que a vida pulsante das comunidades eclesiais consegue produzir. É lamentável que se percam documentos – mais antigos, ou mais recentes – em condições de incúria. No entanto, mais importante do que lamentar as perdas é ter consciência do que podemos fazer para as evitar. E fazê-lo efectivamente. AE – O que fazer para alterar esta situação? JS – A sensibilização das pessoas para estes problemas está feita. Não necessitamos de gastar mais energias a sensibilizar para estas questões e para as soluções. Chegámos à hora do pragmatismo: é preciso operacionalizar as soluções teorizadas. Quando faço referência à operacionalização, refiro-me ao desenhar projectos, orçamentá-los, contratualizá-los e executá-los num prazo calendarizado. É chegada a hora de sermos eficazes. Não podemos continuar a teorizar. Mais do que gastar energias a lamentar as perdas, é fundamental fazer algo de positivo e estruturante para evitar mais perdas. Todavia, evitar perdas não pode ser o objectivo da nossa intervenção na área patrimonial e, concretamente, na área documental. O objectivo fundante e fundamental da Igreja Católica, na área do património, é servir a sociedade portuguesa. E fazê-lo à luz da sua missão evangélica.

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