Compositor e antropólogo político revisita 16 composições musicais que desde 1945 até à atualidade, mostram «polos de irradiação cultural» e «semânticas cristãs e biblicas» comuns na canção de intervenção
Lisboa, 24 abr 2024 (Ecclesia) – Alfredo Teixeira, compositor e antropólogo político, disse à Agência ECCLESIA que a revolução de 1974 aconteceu “musicalmente” em 1971, quando uma “revolução cultural se antecipa à revolução militar”.
“Esse ano poderia ser dito como o ano da revolução das canções, uma revolução cultural que antecipa a revolução do golpe militar. Estamos num período com uma enorme desenvolvimento discográfico e a produção cultural tem dificuldade em ser controlada pelo exame prévio”, esclarece à Agência ECCLESIA.
O mestre em Teologia recorda nomes como José Mário Branco, Sérgio Godinho, Francisco Fanhais que dão corpo, com as suas composições, numa altura em que o Estado Novo já mostrava dificuldade de controlo.
‘Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades’, a partir de um poema de Luís Camões, é uma música escrita por Jean Sommer, que José Mário Branco recria, torna-se uma “forte canção da mudança”; também ‘Que força é essa’, que integra o disco «Sobreviventes», de Sérgio Godinho, mostra o trabalho como “lugar de enunciação principal”.
“As canções são coletivas, não estamos numa dinâmica que hoje celebram a intimidade ou subjetividade. Aqui potencia-se a canção e a sua capacidade de solidarizar as pessoas em torno de uma causa. A proximidade que alguns movimentos católicos em Portugal vão ter nesta dinâmica social passa pelo mundo do trabalho, lugar de encontro, lugar onde as pessoas vivem a pobreza e a injustiça. Falar deste mundo como capacidade de transformação é assinalar também uma ferida na sociedade portuguesa”, traduz.
Através de 16 músicas, Alfredo Teixeira percorre décadas de canções para apresentar uma «Casa comum para a memória da Revolução dos Cravos», com início em 1945, no final da II Guerra Mundial, onde destaca o lugar da ‘canção de intervenção’.
“A canção de intervenção tem uma forte relação com a experiência de resistência com o Estado Novo. Ela mobiliza um sentimento de esperança muito acentuado. Estas canções têm uma construção direta, de fácil apreensão. Não se trata de uma música onde nos sentamos a escutar, é uma música para nos envolver e para participar”, apresenta.
O compositor dá como exemplo, ‘Jornada’, de Fernando Lopes Graça, hino do MUD (Movimento de Unidade Democrática), que estabelece uma relação com o meio rural e o mundo do trabalho e também ‘Acordai’, com letra de José Gomes Ferreira e música de Fernando Lopes Graça
Há uma semântica bíblica e cristã que encontramos neste contexto, sem batizar aos músicos ou reportórios. A semântica da libertação, a ideia de despertar onde se tem uma expetativa messiânica que encontramos na Bíblia e que o cristianismo vai interpretar, torna estas canções e a sua linguagem, uma casa comum onde podemos partilhar horizontes e mundividências distintas”.
Alfredo Teixeira revisita através das músicas, as origens do movimento cultural em 1945, encontra em Coimbra um “polo de irradicação com a cultura universitária estudantil” nos anos 60.
“O poema de Manuel Alegre, ‘Trova do vento que passa’, que se torna “emblemática, por um lado pela sua criação poética que fala de um Portugal que escuta notícias do seu país a partir do vento silencioso que cala a desgraça, um Portugal silencioso, tornou-se uma das baladas mais influentes neste polo de intervenção que será Coimbra”, refere.
‘Sou barco’, de 1966, de Luís Cília e António Borges Coelho, serve de exemplo para as composições que querem “mostrar a saudade e a emigração e o exílio”, sendo que o barco “uma identidade que está longe da pátria e que sonha com a sua transformação”, indicado pelo antropólogo político como um polo de resistência ao regime de então.
Alfredo Teixeira propõe ainda revisitar a noite de 29 de março de 1974, quando o Coliseu dos Recreio recebe um concerto, onde Zeca Afonso e o público ali presente, cantam no término do espetáculo, a música ‘Grândola’.
“A ‘Grândola’ integra o disco «Cantigas do maio», de 1971, e esta canção escrita em homenagem à sociedade fraternidade operária grandolense, respira um espirito utópico, uma vez que ele encontra aqui um modo de organização onde o povo é quem mais ordena, uma estrutura de vida comunitária que contrasta com o regime de dominação onde vivíamos. Esta canção ganha uma dimensão particular nessa noite de 29 de março, quando realizava-se o primeiro encontro da canção portuguesa, que viu muitos textos parcial ou integralmente censurados, mas reuniu nomes como Adriano correia de Oliveira, Zeca Afonso, José Carlos Ary dos santos, José Barata Moura, Carlos Paredes, Fernando Tordo, José Jorge Letria, Fausto, Vitorino”, recorda.
“O espetáculo surge como uma vigília do golpe que vai acontecer em abril. A revolução estava no seu ponto culminante do ponto de vista cultural, porque apesar das censuras e limitações, o reportório de intervenção toma corpo das vozes, que estavam no palco, e das pessoas que ali se reuniram, e que as vão cantar para além de qualquer limitação, integrando uma cultura que não pode ser contida. A revolução de abril acontece musicalmente nesta noite de canções”.
A conversa com Alfredo Teixeira que propõe «A canção, uma ‘casa comum’ para a memória da Revolução dos Cravos» pode ser acompanhada esta noite no programa Ecclesia na Antena 1, ficando depois disponível no portal de informação e na sua versão original no podcast «Alarga a tua tenda».
LS