Corpo de Deus – como comunhão de vida com os necessitados

Homilia do Senhor Arcebispo na Solenidade do Corpo de Deus Na história da Igreja primitiva a Eucaristia congregava os cristãos dispersos e a viver a fé, em contextos difíceis. Não se tratava do mero cumprimento dum preceito. Era uma necessidade interior, vivida em participação alegre e activa, que se tornava coragem para encarar as adversidades oriundas de todos os lados. Nem sempre eram compreendidos pelos familiares mas preservavam o tesouro da fé em fidelidade quotidiana; as autoridades constituídas alternavam momentos de tranquilidade com perseguições generalizadas. Não comparamos as épocas. Importa, porém, readquirir o amor que os cristãos da Igreja Primitiva nutriam pela Eucaristia. Não conseguiam passar sem respeitar o domingo e, neste, a Eucaristia como alicerce da fé e força para encarar as variadas hostilidades. Continuamos a viver um momento de tranquilidade e a fé não nos incomoda porque a esquecemos no mundo das convicções íntimas. Quando a colocarmos no âmago da vida, verificaremos como provocará reacções da mais variada ordem. Com opções de coerência provocaremos hostilidades mas estaremos a crescer criando as condições para marcar a história com um contributo positivo. Quando a Eucaristia não é um momento mas encerra a vida e motiva para uma vida de compromisso com a sociedade, não conseguiremos passar sem ela. Ainda continuamos no rito frio da assistência, na rotina dos hábitos adquiridos. Necessitamos dum urgente trabalho sobre o essencial da Eucaristia nunca esquecendo que, se durante este ano procuramos interpretar a família como dom e compromisso, a Eucaristia é dom a acolher, mas desenvolve-se ao ritmo do compromisso permitindo que provoque frutos na vida. Duma maneira sintética podemos dizer que a comunhão Eucaristica deve provocar dois frutos: – pela Eucaristia teremos de nos unir mais a Cristo (“Quem como a minha Carne e bebe o meu Sangue permanece em Mim e Eu nele… Eu vivo pelo Pai, também o que me come viverá por mim” Jo 6, 56-57); – em simultâneo, crescer na fraternidade eclesial enquanto desejo de celebrar a Eucaristia com todos os cristãos e com vontade de imitar Cristo na sua entrega pelos outros, particularmente em favor dos pobres (“Uma vez que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo” 1 Cor 10, 17). Quero fixar-me nestas duas atitudes. 1 – O desejo de celebrar a Eucaristia com todos. No quotidiano das comunidades verificamos que muitos abandonam a frequência dominical ou deixam a Eucaristia por qualquer motivo. Uns só ocasionalmente participam e outros abandonam continuando a considerar-se cristãos. O desejo de celebrar dá uma responsabilidade particular àqueles que são fieis a este preceito da Igreja. Com efeito, o modo de participar e viver cria um ambiente de comunidade que contagia e faz com que não se consiga viver sem este encontro com os irmãos. Aí se saboreiam a paz e a serenidade e não meramente o rito sem beleza e encanto. Com este empenho de todos, os mais ou menos indiferentes a isto que deveria ser obrigação intima, começarão a ver que vale a pena. Isto é fundamental e desafiante, ou seja, as Eucaristias devem ter elas próprias uma fisionomia atractiva e nunca de instintiva repulsa como quem entra num local gerador de indiferença, de “tanto faz”. Cristo atraía multidões e estas com Ele não O queriam abandonar. Sentiam-se bem. Que faltará às nossas celebrações para que provoquem desejo de estar? Que dizem ou oferecem? Não será que já nos resignamos ao facto de muitos não participarem? Onde está a índole missionária das nossas celebrações? Continuaremos a assistir à debandada? 2 – Imitar Cristo na entrega A Eucaristia tem um tempo de duração mas projecta para toda a vida, dando-lhe um estilo e uma característica peculiar. Só é “acção de graças” a Deus quando se torna “missa”, ou seja, acção de enviar para viver. A sociedade moderna protagoniza um continuo alhear-se à vida dos outros. A individualização crescente não provoca relação nem intercâmbio de dons. O cristão, vivendo neste mundo, deve operar em sentido totalmente diverso. Daí o imperativo da paternidade eclesial e humana. A comunhão Eucaristica completa-se na comunhão com o mundo e seus problemas e dramas. Ninguém se deveria sentir digno da comunhão de Cristo, que não vê numa hóstia, sem a experiência permanente de comungar a vida daqueles com quem se encontra. As ocupações e trabalhos não desculpam o não ver certas situações. A comungar a vida toda e de todos, teremos, nos tempos que correm, de tomar consciência do cenário de pobreza que convive connosco. Só a entrega da nossa solicitude e a partilha dos dons recebidos nos coloca na dinâmica da Eucaristia. Como comunidade, teremos de regressar ao espírito da Igreja primitiva onde a comunidade conhecia com verdade, os nomes e a situação dos carenciados. As comunidades inscreviam os seus pobres que consideravam “matriculados” no registo dos que têm direito a receber. Hoje as nossas comunidades devem conhecer a real situação das famílias e não partir do pressuposto de que nada lhes falta. Não basta falar de pobreza; urge descobrir o seu rosto e limpar esta página vergonhosa duma sociedade que se diz evoluída e permite que muitos vivam abaixo do nível duma vida digna. Se a comunidade deve acordar para esta comunhão efectiva com todos, as pessoas são as interpretes desta onda de solidariedade. Há coisas pequenas que não custam nada e carregam um valor incalculável que importa viver. A participação na Eucaristia coloca os cristãos em atitude de ver com olhos de Cristo e agir com coração solidário e comprometido. A verdadeira vivência da Eucaristia nota-se nas atitudes que solicitam muita atenção e dedicação. A Eucaristia deve ver-se no modo como falamos e agimos com e a favor dos outros. necessitamos de “mostrar” a Eucaristia. Só vendo muitos sentirão a necessidade dela. Daí que teremos de estar atentos a muitos que abandonaram a frequência. Mas, mais importante ainda, é que reconheçam por eles próprios o mal que fazem perante a maneira alegre e feliz, comprometida e solidária, daqueles que habitualmente participam nas celebrações. Concluindo, direi que a Eucaristia como comunhão terá de significar uma atenção nova aos novos problemas para que a Igreja percorra os caminhos da humanidade, realizando a opção preferencial pelos pobres através dum serviço organizado ou espontâneo. Sempre e Igreja esteve nesses terrenos onde a humanidade é desconsiderada; hoje o imperativo é mais acutilante. O anúncio do Amor de Deus ou de Deus como amor só tem esta hipótese. Tudo o resto são discursos desprovidos de conteúdo e que distraem do essencial cristão. Que a Eucaristia que celebramos nos faça descobrir esta presença de Cristo em tudo e, particularmente na pobreza. Sé Catedral, 22-05-08 † D. Jorge Ortiga, A.P.

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