As eleições legislativas registaram uma redução substancial da abstenção e um aumento significativo dos riscos de instabilidade política. Esta semana é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia o presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
As primeiras reações partidárias não apontam no sentido da convergência que era tida como necessária. Há mesmo o risco de ingovernabilidade?
Sim, o risco existe, não há dúvida. Não podemos ignorá-lo, mas eu penso que devemos fazer tudo para o evitar. Há que colocar o interesse nacional acima do interesse partidário, é o bem comum que o exige: fazer esforços no sentido de encontrar consensos, também compromissos, não podemos esquecer isso. Compreende-se que os partidos queiram ser fiéis às promessas que fizeram, aos seus programas eleitorais, mas quando não há um partido com maioria absoluta, também temos de considerar natural que não se cumpra inteiramente esse programa. Nem o partido que tem uma maioria relativa pode cumprir inteiramente o seu programa.
Pode dizer-se que isto não está muito nos nossos hábitos, mas noutros países é assim, quer dizer, os contextos são diferentes, mas há muitos anos que na Alemanha não há maiorias absolutas…
Que papel é que vê reservado para a Igreja Católica neste processo, até de educação da opinião pública? Sentiu, por parte de algumas forças políticas, a tendência ou a vontade de manipular a sensibilidade religiosa dos eleitores?
A posição da Conferência Episcopal foi no sentido de apelar à participação e também a reação dos bispos ao facto de a abstenção ter diminuído significativamente, vem de encontro a esse apelo que foi feito – não só pelos bispos, é curioso e significativo que da parte de organismos da igreja tenha havido vários apelos, também no sentido de promover o diálogo entre católicos, no sentido de refletir sobre aquilo que se espera dos novos deputados e do novo governo. Também a Comissão Nacional de Justiça e Paz faz este apelo a colocar o bem comum acima de tudo, acima destas divergências.
A questão que me colocou da eventual manipulação, devemos evitar aquilo que às vezes acontece, que é usar o santo nome de Deus em vão, portanto, invocar a eventual prática religiosa de algum candidato como um motivo para votar, independentemente das propostas concretas. Isso é que é verdadeiramente manipulação. É bom que se analisem as várias propostas à luz daquilo que é a Doutrina Social da Igreja, e se calhar alguns partidos deviam-se dessas propostas, quer num campo, quer no outro.
A Igreja está distante de todas as posições consideradas desumanas e antidemocráticas. Deve manifestar que está contra e manifestar o seu distanciamento?
Em relação a propostas, sim, o que não significa necessariamente em relação a partidos. É verdade que nós tivemos um exemplo da Alemanha, em que a Igreja Católica manifestou concretamente a desconformidade entre propostas de um partido de extrema-direita e a doutrina da Igreja, também assim a Igreja Luterana, mas é um contexto específico da Alemanha, que tem a ver também com todo o trauma histórico do racismo, que põe em evidência sempre essa experiência traumática, e ainda bem que assim é…
Mas transportando para Portugal, temos posições de alguns partidos que também nos fazem recordar aquilo que falou agora mesmo, da situação da Alemanha?
Pois não chega a esse ponto, mas por exemplo, quando se faz uma proposta de restringir os apoios sociais aos imigrantes, e exigir que só depois de 5 anos de contributos para a segurança social é que se pode aceder a esses benefícios, por parte dos imigrantes – numa situação de discriminação em relação aos cidadãos nacionais – há aqui uma proposta que é inconstitucional e desumana, portanto, acho que se deve rejeitar este tipo de propostas. Não significa que da parte desse partido todas as propostas sejam de rejeitar, só porque vêm desse partido: se esse partido se propõe a revogar a lei de eutanásia, é algo que quem esteve contra a aprovação dessa lei também aprova.
Depois há outras propostas que se podem discutir, também no âmbito da política criminal, em todo caso não devemos fugir ao debate, ao diálogo também em relação a essas propostas, porque parece-me contraproducente simplesmente fechar, nem sequer discutir estas questões e marginalizar as pessoas que as defendem, porque depois tem este efeito contrário, das pessoas que pensam de determinada maneira e não veem isso refletido na comunicação social mais influente, etc. Depois as pessoas ficam surpreendidas quando estas propostas acabam por obter apoio… Devemos pensar que nem sempre as pessoas ao votar em determinado partido são motivadas por este tipo de propostas, devemos ter isso em conta, a questão do voto de protesto deve ser tida em conta. Pode ser que exija também fazer algum estudo sobre a motivação que leva as pessoas a votar e, portanto, é importante não estigmatizar as pessoas que votaram neste partido e lhe deram uma votação significativa que não podemos ignorar – e isso já foi feito por várias pessoas de vários partidos.
O cenário mais provável, neste momento, aponta para um governo minoritário e já se começa a perceber o risco de novas eleições em pouco tempo. Que papel é que está reservado para o presidente da República, neste cenário?
O presidente da República já várias vezes salientou a importância da estabilidade política e fê-lo noutros contextos diferentes deste em que, se calhar, esse risco nem era tão acentuado como agora. Na altura havia também um governo minoritário, mas que tinha um apoio parlamentar, portanto, é de facto um papel importante aqui no sentido de tal magistratura de influência.
Uma magistratura discreta?
Mais ou menos discreta, às vezes é mais benéfica quando é mais discreta, mas indo a exemplos concretos talvez seja mais fácil exprimir aquilo que penso a este respeito. Um problema grave, talvez o mais grave no âmbito das políticas sociais, é a questão do acesso à habitação. Vemos e vimos que há também divergências entre as propostas dos vários partidos, mas se virmos a questão indo para além das ideologias, veremos que não é fácil, é um problema complexo que não se resolve com soluções mágicas: não é uma solução mágica acreditar que o mercado resolve tudo, é necessário que haja uma ação do Estado, também acho que se encontrou também algum consenso a este respeito, no sentido de reforçar a oferta pública da habitação; penso que há a consciência de que a oferta pública da habitação não resolve tudo e, portanto, também temos de encontrar formas de que aumente a oferta em geral, não só a oferta pública. O mercado também tem aqui algum papel e é importante ter em conta aquilo que são as regras do mercado, sem esperar dele a solução para tudo, mas também sem o ignorar e sem pensar que o Estado também resolve tudo.
Nestas questões, os principais partidos, se calhar, estão de acordo com aquilo que estou a dizer e esta é uma questão da maior importância que não pode ser adiada. Se não se encontrar algum consenso neste campo, o problema continuará a agravar-se, mas os próprios partidos podem, de facto, encontrar aqui algum consenso.
E um eventual impasse na questão da solução governativa ou da tal instabilidade de que falamos vai fatalmente agudizar a crise económica das famílias?
Sem dúvida, sem dúvida. Quer dizer, o crescimento económico, e muitas das propostas que foram feitas são sempre no pressuposto de que há crescimento económico, e, portanto, não se pode pensar em reduzir impostos sem haver crescimento económico. Não se pode pensar em aumentos salariais sem haver crescimento económico e a instabilidade pode-se refletir nesse campo da economia.
Eu gostaria de voltar à questão que falava de falta de hábito em Portugal, de olharmos para a possibilidade de governos minoritários. 50 anos depois do 25 de abril, a ideia de que estabilidade governativa é sinónimo de maioria absoluta é uma falta de maturidade democrática?
Eu acho que sim, embora, quer dizer, também a questão dos governos de maioria absoluta também depende um pouco, muitas vezes, do sistema eleitoral. Há sistemas eleitorais que facilitam mais a constituição de maiorias absolutas, mas também pode isso acontecer sem que a maioria dos deputados corresponda à maioria dos votos, o que também tem alguma injustiça ou sem que sejam representadas forças políticas que se situam no meio, entre dois polos. Portanto, a bipolarização nem sempre corresponde àquilo que é efetivamente a vontade das pessoas. Isto para dizer o que é que pode estar na origem destas maiorias absolutas ou da vontade de estabilidade através de maiorias absolutas. Mas, de facto, a democracia também é feita das negociações, dos compromissos, quando não há estas maiorias absolutas. Portanto, não tem que ser necessariamente um sucesso o facto de se obter uma maioria absoluta porque a composição do eleitorado também pode não ser exatamente essa. De facto, pode não haver esta bipolarização. Também há alguma vantagem que não haja esta bipolarização porque há situações que de facto não se resolvem através de medidas, sim ou não, ou medidas inteiramente alinhadas com uma determinada ideologia.
Há situações em que os compromissos são até talvez a situação mais sensata, como há pouco vos referi a esta questão da habitação, outros não será assim. Também há situações em que se tem de fazer uma escolha clara.
Durante a campanha eleitoral a Igreja fez consecutivos apelos ao exercício do direito de voto, já aqui falamos. A menor abstenção resulta em parte desses e de muitos outros apelos, de que falamos de outros organismos da Igreja, ou explica-se também pela manifestação nas urnas do descontentamento?
Não sei, isso se calhar tem de ser analisado de outra forma. Eu gostaria de responder positivamente a essa pergunta porque significava que as posições da Igreja – que não são só dos bispos – têm plena aceitação e encontram eco na sociedade portuguesa. Era bom que assim fosse, mas receio que não seja inteiramente assim. De qualquer modo isso sem dúvida contribuiu. Fizemos a nossa parte nesse sentido. Portanto é positiva esta alteração de tendência, porque de eleição para eleição a abstenção ia crescendo e sobretudo nas camadas jovens, o que também era preocupante, e essa tendência inverteu-se. Em todo o caso, ainda há um terço dos possíveis eleitores que não votam, o que é mais do que a votação de qualquer partido.
Ainda estamos longe daquela percentagem que fica sempre para recordar. As primeiras eleições depois do 25 de abril foram com uma participação de 90%, e na altura nem havia assim tantos apelos à votação, até havia algumas correntes que rejeitavam a democracia como era concebida. O que significa que às vezes se calhar só damos valor às coisas que temos quando as perdemos, não é? E acho que é bom pôr em relevo esse aspeto, precisamente nesta altura em que comemoram 50 anos do 25 de abril. Se calhar entre os legados do 25 de abril este é talvez o mais valioso.
Ainda olhando para este legado democrático, pergunto-lhe que papel é que os partidos e a sociedade no seu todo devem ter para o combate a ideias mais extremistas e mais radicais que vão começando a ganhar terreno?
É precisamente insistir nesta pedagogia de sublinhar o valor que temos e que não podemos desperdiçar. Precisamente porque ao longo da história nem sempre se verificou isso, nem sempre vigorou o regime democrático e também isso existe em muitos países, ainda hoje, vemos a perseguição que tem a oposição política, eu vi ainda recentemente um opositor político que faleceu na prisão, na sequência até da perseguição de outros opositores. Ora, nós estamos muito longe de uma situação dessas. Podemos dialogar mesmo com pessoas que têm visões extremistas e que não deixam de ter o seu lugar nos debates públicos. É importante pôr isso em relevo e precisamente o aniversário do 25 de abril deve servir para pôr em luz esse aspeto. A possibilidade de dialogar e também de desmascarar aquilo que consideramos que é injusto ou que é contrário aos direitos humanos, sem censuras, portanto, sem pura e simplesmente ostracizar as pessoas que o possam defender, mas sabendo que a verdade vem sempre ao de cima e, portanto, temos a possibilidade de argumentar no sentido de demonstrar que não tem fundamento esse tipo de propostas contrárias aos direitos humanos.
A provedora de justiça requereu a inconstitucionalidade da lei de eutanásia. Maria Lúcia Amaral, para além de afirmar que a lei é contrária ao que consagra a Constituição, lembra que uma grande parte dos doentes não têm acesso aos cuidados paliativos. Com o novo quadro parlamentar, está aberta à porta uma nova discussão sobre o tema para a eventual revogação da lei, que ainda não está regulamentada?
Eu acho que sim, não sei qual será o resultado de uma eventual proposta de revogação da lei. Lembro que também foi feito um pedido de fiscalização abstrata muito bem fundamentado, devo dizer, por parte de vários deputados da legislatura anterior e há agora este pedido da provedora de justiça. Portanto é significativo. A Constituição, é clara, no sentido de consagrar a inviolabilidade da vida humana. Ainda recentemente vimos a notícia de que em França foi consagrado na Constituição um direito a suprimir uma vida humana através do aborto, nunca se chegou a esse ponto de afirmar o aborto como direito fundamental, o que é absolutamente contrário a este princípio da inviolabilidade da vida humana, mas nós temos este princípio consagrado e mesmo quando o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre a questão do aborto nunca foi a ponto de colocar o aborto como um direito fundamental. Essa é uma questão, aqui estamos a debater uma outra, que é a eutanásia, que também envolve este princípio da inviolabilidade da vida humana. E, portanto, também este é um princípio daqueles, não reagimos com a mesma indignação como reagimos quando há outro tipo de violações dos direitos humanos que são propostas por estas correntes extremistas, mas em meu entender também esta é uma forma de extremismo, este que é contrário à vida humana, quer na fase inicial, quer na fase final. E, portanto, acho que também devemos rejeitá-lo com o mesmo vigor com que rejeitamos outras formas de atentar a vida humana. Não é só no início, não é só no fim, é durante toda a vida. E, portanto, também quando é posta em causa a vida das pessoas inocentes que são vítimas de guerra, quando se pretende salvar a vida dos imigrantes que atravessam o Mediterrâneo, deve haver uma coerência no sentido da proteção da vida desde o seu início até ao fim, incluindo todas as fases por que passa a vida humana.
E no novo cenário parlamentar é de esperar que a regulamentação desta lei seja diferente de quando ela foi aprovada?
Verdadeiramente a regulamentação não poderá ir contra aquilo que são princípios básicos da lei e, portanto, a regulamentação também pode ter alguma influência no sentido de facilitar ou de evitar abusos, etc. Mas eu penso que esse risco que existe mesmo com qualquer regulamentação se não for alterada a lei e por isso também compreendo que a provedora de justiça tenha feito este pedido de declaração de inconstitucionalidade. Mas são duas questões diferentes também estas, portanto o entendimento do Tribunal Constitucional e o entendimento da nova composição do Parlamento.
E com esta intervenção da senhora Provedora, tem a expectativa de que o novo quadro parlamentar volte a analisar então o tema e eventualmente revogue a lei?
Sim, eu tenho essa esperança, embora não conheça os deputados todos que foram eleitos e esta é uma matéria que realmente também aqui não funciona plenamente a democracia; devo dizer. Porque nós votamos numa composição parlamentar sem saber o que cada um dos deputados pensa sobre esta questão e acabará por ser, como tem sido em outras ocasiões, uma votação em que é dada a liberdade de voto aos deputados, o que eu não contesto. Agora o que eu contesto é que nós votemos nestes deputados sem saber o que os pensam sobre esta matéria que me parece essencial; tão essencial como são outras que foram objeto da campanha eleitoral.
Mas pensa que se estão criadas as condições para se voltar ao assunto no Parlamento?
Eu acho que sim.