Pe. Hugo Gonçalves, diocese de Beja
A Quaresma já leva alguns dias, mas ainda está nos seus inícios, nesse sentido é importante – se ainda não o fizemos – de fazermos alguns propósitos exequíveis, para uma verdadeira conversão, e se tivermos de os escrever para os revisitarmos ao longo deste percurso, pois que o façamos – até é aconselhável. Convém que não seja uma lista extensa, pois como diz o povo: ‘quem muitos burros toca, algum há-de ficar para trás’.
Na verdade – e não quero ser um espírito pessimista – sugere-me a experiência pastoral, que muitos são aqueles que vivem estes quarentas dias de travessia quaresmal, como se nada se passasse, como se a Quaresma fosse um tempo litúrgico e espiritual igual aos outros, apenas pontuado por alguns símbolos e ritos particulares deste tempo. Assim, o jejum, a penitência, a oração, são apenas palavras cujo eco fica retino no espaço da igreja, sem ter concretização na vida prática de cada um, pois até a memória dos avós que realizavam estas práticas quaresmais, se perdeu. O aparente culpado deste esquecimento, da impossibilidade de levar por diante estas práticas, que nos conduzem e ajudam a uma conversão pessoal, é a falta de tempo. Sim, as diversas ocupações, o horário apertado do dia, parecem ser os principais impedimentos à vivência da Quaresma. Mas será verdadeiramente assim? É o modo de vida hodierno que impossibilita grande parte dos cristão de ter uma Quaresma bem vivida e uma vida cada vez mais vazia de Deus? Julgo que não!
Na Ordem de S. Bento, além da regra, há uma máxima, que julgo que pode ser por nós todos aplicada: “Ora et Labora” (Reza e Trabalha). Talvez possa alguém dizer: ‘Pois bem, isso é tudo muito bonito, mas na verdade, quem vivia essa regra tinha um horário que tinha já em vista esses dois aspetos”. Talvez este seja o primeiro propósito a escrever e a reter para cumprirmos nesta Quaresma – ‘ordem de vida’. Aquilo que em particular São Bento de Núrisa nos recorda, com a sua ‘Regra’, é que necessitamos de ter ordem de vida ou regra de vida, para que possamos desenvolver bem todas as nossas atividades humanas, quer do trabalho, quer espirituais e, diria eu, quer familiares. Até aquelas atividades (trabalho, família, etc.) que são parte do nosso dia-a-dia e que parecem não estar conectadas com a vida espiritual, podem e devem ser ‘lugar’ de oração. Recordo um documentário que vi à cerca da vida de um mosteiro beneditino e surpreendi-me com um pequeno momento do dia dessa comunidade, em que parte dos monges foram ajudar na cozinha, a descascar batatas, e que no decorrer do cumprimento dessa tarefa, se dedicaram a rezar alguns ‘Pai-Nossos’ e ‘Ave Marias’. Na verdade o trabalho, as atividade familiares, bem como outras, podem e devem ser aproveitadas como oração, oferecimento a Deus, uma verdadeira oblação que configura aquilo que dizemos na celebração da Santa Missa: “bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo pão que recebemos da vossa bondade, fruto da terra e do trabalho do homem, que hoje Vos apresentamos”. Ainda neste sentido, recordo as palavras de São Josemaria Escrivá: “Trabalhemos, e trabalhemos muito e bem, sem esquecer que a nossa melhor arma é a oração. Por isso, não me canso de repetir que havemos de ser almas contemplativas no meio do mundo que procuram converter o seu trabalho em oração.” (Sulco 497).
Ser “contemplativos no do mundo” pode ser talvez o maior desafio que nos possamos propor como caminhada quaresmal, como propósito prioritário, que nos levará a compreender e, obviamente, a viver como verdadeiros filhos de Deus que, envolvidos nas realidades humanas da família, do trabalho, nunca deixam de nelas estar unidos ao Pai, Senhor das nossas vidas e a partir daqui teremos uma compreensão melhor da importância da oração na nossa vida, como espaço de encontro pessoal e comunitário com Deus; do jejum que nos leva a saborear as palavras – “nem só de pão vive o homem, mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus” (Mt. 4, 4) – como um convite a conformarmos as nossas vidas à vontade de Deus e abertura de coração aos irmãos; e a penitência como experiência da misericórdia e do amor de Deus, num coração contrito.
Dependente da forma como vivemos esta Quaresma de 2024 estará a celebração da Páscoa. Se a nossa caminhada pessoal, neste tempo, for de indiferença, de falta de conversão de vida, então a Páscoa será um vazio, a ‘Luz de Cristo’ não nos iluminará, não faremos encontro com o Ressuscitado; se a Quaresma nos levar a colocar em ordem a nossa vida, se espaço de oração, de jejum, de penitência, de oferecimento daquilo que somos, temos e fazemos, então a Páscoa acontecerá em nós.
Pe. Hugo Gonçalves