Rita Sacramento Monteiro faz parte do conselho editorial do Ponto SJ, o portal dos jesuítas que acaba de lançar a rubrica «Ponto de Cruz», para levar ao debate político o diálogo construtivo e positivo, quando persiste a crispação, a polarização e a falta de ética e de verdade nas propostas apresentadas
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Paulo Rocha (Agência Ecclesia)
Mais de 50% de abstenção nas eleições legislativas em Portugal, quase 70% nas europeias, é esta aparente desistência da democracia que está na origem do Ponto de Cruz?
É uma das razões, sim, esta ideia de um desinteresse, de um desencanto com a política e de uma sensação quase de descrédito nas pessoas que nos governam e podem desenhar as políticas para o nosso país e na relação do nosso país com o resto do mundo.
Portanto, acho que essa foi uma das nossas intenções, um dos pontos de partida. E depois esta ideia de, de facto, como católicos, somos chamados a envolvermos e a pensar a realidade atual e o momento que estamos a viver em Portugal, consideramos que é um momento sério e importante para além dessa sensação em relação à política e aumentada por um conjunto de casos que têm vindo, de facto, a fragilizar as nossas lideranças e a nossa perceção em relação a quem nos governa. Temos também um contexto económico muito desafiante de inflação elevada.
Já lá iremos, mas neste contexto de desconfiança das instituições democráticas, de que forma é que o Ponto de Cruz vai ajudar a restaurar a confiança?
Penso que nós, quando discutimos pela primeira vez esta rubrica no Conselho Editorial, a ideia que nos veio foi a de querer contribuir positivamente para a reflexão e para a discussão, nomeadamente através da dinamização de um sonho para Portugal, de congregar as pessoas à volta desta ideia do que é que nós desejamos para o nosso país, que país queremos ter. E, nessa medida, esta rubrica pretende promover a reflexão que ajuda, obviamente, ao momento eleitoral que vamos viver agora e depois ao momento eleitoral para as europeias, mas que vai além disso. Pretende, de facto, que as pessoas se impliquem e percebam que a política tem a ver com a nossa construção coletiva e com a forma como nós participamos e desenhamos aquilo que queremos ver e ser. Portanto, achamos que é um contributo positivo para essa mesma reflexão e participação.
E sentem que há espaço para esse debate, para esse sonho, que sem dúvida nenhuma que é um ótimo objetivo? O debate político não fica recorrentemente marcado pela crispação, pela polarização?
Sim, sentimos que sim. Por isso é que achamos que o Ponto de Cruz, mais do que até trazer pessoas de partidos, mais do que falar de programas eleitorais, podia-se fazer uma análise de programas eleitorais à luz do pensamento social da Igreja. Achámos que era interessante focar as pessoas, por um lado, em primeiro lugar, conhecer qual é o pensamento da Igreja para as realidades sociais e, portanto, que implica naturalmente a política e depois pensar, a partir desse quadro de valores e de princípios, a que sonho é que podemos ter.
De facto, o ambiente atual está marcado por crispação e polarização. Por isso, o Ponto SJ, que tem no seu estatuto editorial esta preocupação de habitar a tensão, sempre de uma forma construtiva, de uma forma geradora de diálogo, apesar das perspetivas diferentes de cada pessoa, dentro e fora da Igreja, acreditou que esta rubrica podia contribuir não para a crispação e polarização, mas para, de facto, um efetivo diálogo. Porque também, sem diálogo, não se gera um sonho comum e não se gera confiança. Porque não nos ouvimos e só intensificamos as diferenças.
Acreditam, portanto, que ainda é possível dialogar na política? Não é isso que vemos, infelizmente….
Sim, sim. Acreditamos que é fundamental fomentar o diálogo. E, portanto, desejamos muito que esta rubrica contribua para isso.
Falou da tensão e chegámos a estas eleições num contexto particularmente sensível por causa dos casos de justiça – e já falaremos também da situação social do país – que envolvem diretamente os responsáveis político. Como é que é possível restaurar a confiança na politica quando, mediaticamente, se discutem, essencialmente, este tipo de situações?
É um desafio muito grande. A primeira coisa que eu diria que é essencial é que os partidos e os políticos falem a verdade.
A realidade que nós vivemos é complexa. O Papa Francisco tem dito isso muitas, muitas vezes. A Companhia de Jesus está no terreno e vê muito isso. A realidade é muitíssimo complexa. Toda esta conjuntura económica e social traz grandes desafios para a vida concreta das pessoas. E, portanto, um primeiro contributo é, ao olharmos a realidade (e isto também favorece o diálogo no nosso entendimento), é preciso falar da realidade com essas complexidades e com as matizes. As coisas não são preto e branco. E penso que um contributo, não só que esta rubrica pretende dar, mas algo que pedimos, que achamos que é importante para os políticos e para os nossos líderes, é de facto falarem a verdade para restaurar essa confiança. E depois de facto haver um exercício, naquilo que é o exercício de poder, haver uma consciência, uma consciência muito séria e muito ética, porque sem ética não é possível favorecer a confiança. E, portanto, verdade, ética, são palavras absolutamente fundamentais para restaurarmos um olhar sobre o exercício público e político que seja positivo. Porque atualmente, infelizmente, tornou-se um olhar negativo, desacreditado. E isso não é construtor. Não é construtor do bem comum no nosso entendimento.
E essa também é uma situação que está em causa quando um cidadão pode decidir ou não por ser um ator político. Não é hoje mais difícil atrair talentos para a política, atrair… homens e mulheres que possam dar o seu contributo na política?
Provavelmente afeta. Afeta não só a forma como hoje se olha para a política, mas também como a pessoa, a partir do momento em que entra no espaço público e no espaço político, é altamente escrutinada. E a forma como nós falamos uns dos outros.
E aqui também chamava a atenção para a linguagem. Eu acho que a nossa perspetiva como cristãos, a perspetiva desta rubrica, a perspetiva da Companhia de Jesus, é que a linguagem seja construtora também. As palavras e a forma como falamos e a narrativa que usamos. E, portanto, hoje nós vemos falar das pessoas que entram neste espaço público de uma forma que faz a pessoa pensar “bom, eu não me quero meter ali…”
Diz-se por vezes, são todos iguais….
São todos iguais. Não… E nós se olharmos, se observarmos para a forma como falamos, às vezes saem-nos coisas sem querer que não refletem ou que não promovem a construção. Promovem este descrédito e este desânimo coletivo.
Portanto, acho que é importante cuidar disso. E acho que, para quem tem fé, e neste caso, em concreto, para os católicos, acho que há uma obrigatoriedade de olhar para a participação política com um olhar altamente positivo. Porque a nossa fé, a Doutrina Social da Igreja, olha para a política como um exercício fundamental para a construção da polis. Não no sentido de apenas de cidade fechada ou de cidade como única realidade, mas para a construção de uma comunidade que vive em conjunto, que vive bem, que partilha valores e que partilha princípios. Portanto, há aqui uma responsabilidade também do lado da Igreja de contribuir para esta discussão e para esta reflexão e para os católicos – apesar do momento ser difícil e das condições serem muito desafiantes – não deixarem de arriscar porque, na verdade, cada um de nós, se não se implicar, também o espaço político e o espaço público não se alteram, não se transforma.
Os níveis de inflação, a crise na habitação, as dificuldades no acesso aos serviços de saúde estão a motivar o crescimento de políticas populistas?
Sim! Eu penso que os desafios são muitos e é fácil agarrar numa bandeira e numa determinada questão e construir à volta dessa questão de uma forma populista, tentando, uma vez mais, como dizíamos há pouco, tornar a realidade como preto ou branco. E nós sabemos que isso não é assim. Pensemos no tema das migrações, até mesmo no tema da habitação. A realidade é muito complexa. Em primeiro lugar, é preciso observar a realidade, perceber o que é que nós observamos num determinado fenómeno, depois julgar essa mesma realidade – e aqui estou claramente a citar o método de ver, julgar e agir, que é da doutrina social da Igreja -, olhar para as causas-raiz. Eu acho que o que frustra as pessoas é sentirem que os políticos e a política não resolvem os problemas de forma estrutural. Quando nós ouvimos falarem narrativas de mudança e transformação para o país, não podemos querer políticas que fazem tábua rasa, acreditar em ideias populistas que agora vamos do zero aos cem, amanhã acordamos e o país é um país novo, tudo mudou, como se fosse um sonho, ou até um jogo. A aldeia acorda e agora o mundo é perfeito. Não!
Se calhar é um momento próprio para falarmos da responsabilidade, da importância que os partidos políticos têm na alteração desse tipo de raciocínio. Os bispos portugueses, na sua mensagem de Ano Novo, pediram aos partidos responsabilidade e propostas concretas para que os eleitores não votem por raiva. Ou seja, esta afirmação demonstra a tal preocupação com os extremismos?
Sem dúvida. Eu acrescento a isso, e penso que poderá estar detrás disto, esta ideia precisamente também dos partidos poderem expressar como é que olham a realidade. Porque as propostas que fazem têm de estar informadas no seu olhar para a realidade. Saber o que é que entendem sobre os desafios e o que é que nos trouxe até aqui. Os partidos têm de ter ações concretas e têm de ser responsáveis. A boa política, a confiança das pessoas nas instituições políticas e democráticas faz-se também da razoabilidade e do bom senso das propostas. Nós confiamos que as pessoas que estão a desenhar propostas estão de facto a perceber se é possível ou não, a um ano, a cinco anos, a dez anos, de facto implementar essas propostas e ver alteração.
O que vimos nas apresentações de propostas de alguns partidos contrariam essa boa intenção?
Sim, sim… E isso é problemático, porque as pessoas, numa gestão difícil de emoções, estão cansadas, estão frustradas. Os portugueses estão a viver mal, em tantas dimensões. Que triste e que difícil é dizer que em tantas dimensões estamos a viver com dificuldades, dos jovens aos mais velhos. Tantas vezes vemos até a dignidade da pessoa humana posta em causa. E isso dificulta que as pessoas possam ter sonhos, perspetivas para a sua vida, que possam desenvolver-se plenamente. Nós precisamos de propostas claras, fundamentadas e realistas. Nenhum português está à espera de que um problema grande como o da habitação e como o da inflação se resolvam do dia para a noite. Não é isso que se espera. Mas, de facto, os portugueses têm de sentir que podemos esperar gerar coletivamente algo de bom. E se a confiança é uma palavra-chave, eu diria que a esperança é outra palavra-chave. E quando desenhámos esta rubrica, também pensámos nisso.
Mas não se ganha confiança quando o debate político está a ser dominado ou contaminado mais do que pelas ideias, pela contagem de deputados que permitam a formação de um governo após as eleições, pois não?
Não. É difícil porque no exercício político, naturalmente, os partidos têm que…
Ou até pelas lutas internas nos partidos para ver quem é quem entra na lista de deputados, não é?
Naturalmente que a estratégia política pede essa estratégia, que é a mesma palavra de perceber os lugares, as pessoas, os perfis. Mas, se nós ficamos por aí, se os partidos ficam por aí e não põem o seu esforço principal nas políticas e na finalidade da sua política – que é construir, ou deveria ser construir um país melhor assente na justiça, na liberdade e na igualdade – não há transformação. E é uma irresponsabilidade fazer isso. Isso pode ser uma parte da estratégia, mas lá está. É um bocadinho o que o Papa Francisco tem dito: se o objetivo é ocupar espaços, se é ocupar lugares…
Composição parlamentar…
Exatamente. Se é só isso, nós sobrepomos o que não é essencial ao que é essencial. E o que é que é essencial? É iniciar processos que sejam geradores. Nós estamos hoje a semear o país que queremos ser sempre amanhã. É dessas políticas que precisamos. Políticas geradoras de esperança e que abram sentido às pessoas. Eu acho que nós hoje estamos a viver um tempo em que faz falta sentido, faz falta essa esperança.
Na apresentação do Ponto de Cruz, é rejeitada qualquer conotação política e partidária. Mas é possível o debate político sem debater as propostas concretas dos vários partidos?
Não. É preciso debater as propostas. Mas eu diria que aqui a nossa rubrica tem como intenção, por um lado, numa primeira fase… A montante de olhar para os programas eleitorais, a proposta é: através da lente da Doutrina Social da Igreja – que tantas vezes é desconhecida dos próprios católicos e haverá até alguns que acham: “mas a minha fé também diz agora a forma como eu voto ou como eu penso o mundo?”.
Ainda existe Doutrina Social da Igreja?
Sim… “Mas, ah, mas isso não tem mais de um século?”. É absolutamente extraordinário, mas este pensamento ainda hoje ilumina as realidades atuais e tem um sentido para a atualidade.
Numa primeira fase, o Ponto de Cruz pretende dar este quadro de “o que é a Doutrina Social da Igreja?”, explicando os seus quatro principais princípios. E depois, numa segunda fase, em que vamos promover conversas pelo país, em relação a quatro temas principais, a partir deste sonho para Portugal – o sonho que pensámos aqui é para um país digno e coeso, um país com futuro, um país a crescer e um país mobilizado.
Escolhemos aqui quatro temas, podiam ser outros, podiam ser mais, e aqui nestes temas discutem-se os desafios. E, aí sim, podem entrar perspetivas dos programas eleitorais, mas nós quisemos ir além disto, porque nós também achamos que esta rubrica serve o propósito de promover uma reflexão que vai além das eleições, vai além do voto. O voto é absolutamente fundamental, é um dever, para qualquer católico e diria que para qualquer pessoa, de participação. É um dever de participação pública, mas a ideia irá além disso. Aqui há quase que a ideia de nós termos que pôr uma cruz também em cada um de nós, na caixa de participação que diz respeito a cada um de nós. E é o papel que cada um de nós pode assumir na sua comunidade. Desde a comunidade eclesial, à comunidade local, à comunidade nacional.
O foco do Ponto de Cruz mais do que discutir propostas eleitorais – porque há muitos outros órgãos que o fazem, até se calhar com mais mandato e muito mais focados nisso-, é de promover a reflexão e o diálogo. Depois, as pessoas com este quadro de princípios e de valores, com os seus critérios e através do seu próprio discernimento, escolhem tomar uma decisão em relação a dia 10. Mas não termos ilusão de uma coisa: o que quer que aconteça no dia 10, o país atualmente o que pede é um envolvimento de todos. E se calhar este é o tempo, a partir da Igreja e da lente da Doutrina Social da Igreja, de afirmarmos isto. Nós somos chamados todos a participar.
Os leitores também são desafiados a participar e a contribuir para a reflexão. Já há alguns contributos. Quais são as principais preocupações, se é que já há alguma contribuição?
Vamos lançar essa fase em breve e vamos pedir aos nossos leitores. Estamos a receber comentários muito positivos em relação à rubrica. As pessoas dizem: “ah, parece-me importante”, “parecem-me claras as explicações”, “é bom saber mais sobre os princípios da Doutrina Social da Igreja”. Sentimos que também há aqui uma parte pedagógica ou de renovação do conhecimento de todos nós. Para além de uma catequese, queremos revisitar estes conceitos e em que é que eles se traduzem. Mas vamos pedir aos leitores que possam não só enviar questões, mas, quem sabe, até envolvê-los na construção do que gostávamos que fosse um manifesto no final desta rubrica. É um manifesto sem pretensões, mas simplesmente com o objetivo de contribuir para a construção de um sonho, que tem que ser coletivo, mas que possa ser pela positiva a apontar caminhos para o país.
Mas esse manifesto será depois enviado aos partidos? Tem a finalidade de provocar também a transformação no debate político?
Ainda não fechámos essa ideia, mas se calhar poderemos vir a enviá-lo para várias entidades, nomeadamente para os partidos políticos. Quem sabe. É um manifesto que não se esgota no próprio manifesto – porque para isso precisávamos de ouvir os 10 milhões de portugueses -, mas certamente queremos que seja um contributo e gostávamos muito que esta rubrica fosse além da Igreja Católica e pudesse chegar a outras comunidades religiosas. Gostávamos que saísse da esfera religiosa. A ideia do Ponto Cruz é que claramente as tradições religiosas tenham um contributo a dar para o diálogo e para a discussão, mas o diálogo e a discussão fazem-se com todos. Por isso, gostávamos que a rubrica também saísse das fronteiras da Igreja e do partilhar de uma religião para todas as pessoas que possam ver estes princípios, porque são bastante abrangentes.
Os princípios da Doutrina Social da Igreja?
Sim, os princípios da doutrina social da Igreja. Quando pensamos na dignidade da pessoa humana, no bem comum, na solidariedade, na subsidiariedade, que significa este auxílio, esta rede de entreajuda, toda a gente pode identificar-se com os princípios. Vão para além de partilhar ou não de uma mesma fé.
E, se calhar, este manifesto pode ter um horizonte temporal até mais longo porque, perante o quadro que se prevê decorrente do resultado das eleições, já há quem admita que haverá novo processo eleitoral a breve prazo.
Sim e, para além dessa possibilidade e risco – digo risco, porque acho que cria mais instabilidade e o país precisa de ter também as suas lideranças estáveis para avançarem com o governo do país -, temos também as eleições europeias e temos um quadro internacional muito complexo com uma escalada de conflitos preocupante. Sem dúvida que este sonho e esta rubrica pode viver para além deste tempo e deste espaço. A tónica está sempre em cada um de nós ser agente de mudança. Cada um de nós tem uma palavra a dizer não só no dia 10, mas tem uma palavra a dizer todos os dias na forma como constrói o bem comum nas suas decisões, como agente económico, como agente político, como agente social. É importante relembrar-nos disso. O sonho é construído todos os dias. O Papa diz a dada altura, quando estive a fazer também estas leituras sobre a Doutrina Social da Igreja, que o bem comum, o amor, a solidariedade não são uma construção de um dia. São uma construção que se recomeça todos os dias.