Papa diplomático

Arcebispo Manuel Monteiro de Castro, actual Núncio Apostólico em Madrid, destaca clareza e frontalidade de Bento XVI como caminho de diálogo Diplomata experiente, o Arcebispo português D. Manuel Monteiro de Castro, actual Núncio do Papa em Madrid, fala com a Agência ECCLESIA sobre o actual pontificado, destacando a força da clareza do pensamento de Bento XVI, que considera essencial para um diálogo com frutos permanentes, que resistam à passagem das convenções do momento. Agência ECCLESIA (AE) – Que impressões guarda do actual pontificado? D. Manuel Monteiro de Castro (MMC) – Vejo o actual pontificado como uma continuação do Papa João Paulo II. Dos Papas que eu tive no meu percurso, servindo já no corpo diplomático, tive a honra de acompanhar o Papa Paulo VI, a Fátima em 1967, e depois João Paulo I, João Paulo II e actualmente este Papa. Cada Papa é diferente. Se os analisarmos cada um tem a sua característica. Este Papa começou com um discurso muito rico intelectualmente. AE – Onde é que isso se manifesta? MMC – A sua primeira encíclica foi sobre a caridade, onde faz ver já qual a linha que vai desenhar e qual a linha que ele apresenta na Deus Caritas Est: faz ver que há um problema no mundo de hoje que é um problema de violência, de ódio, de vingança, onde uma parte do mundo ignora Deus e outros procuram atacar o nome de Deus. Neste contexto, o Papa apresenta esta encíclica e faz-nos ver que Deus é amor. E faz ver também que há três elementos fundamentais na Igreja Católica que são o serviço da Palavra, o serviço dos sacramentos e o serviço da caridade. Apresenta estes pontos como notas fundacionais, notas que vêm desde o fundador. Que não podemos deixar de ter presentes. Seja o serviço da Palavra, o que temos nos Evangelhos, nas cartas dos Apóstolos ou na tradição da Igreja, esse serviço a que sobretudo os sacerdotes estão chamados, mas também todos os cristãos, proclamar a Palavra de Deus, porque estamos convencidos que é o melhor que podemos oferecer às pessoas, à sociedade e ao mundo. O serviço dos sacramentos é também posto em relevo, naturalmente porque alimentam a vida espiritual e depois o serviço da caridade, fazendo ver que isto é uma nota que encontramos em todos os livros da Igreja, em Jesus: estamos aqui para ajudar os outros, construir algo melhor. Esta dimensão foi continuada na sua segunda encíclica, dedicada à esperança. Nós somos chamados a levar estes valores ao mundo. E podemos perguntar-nos porque? O Papa apresenta uma meta que é a felicidade eterna, ou seja, habitar na casa do Pai, que equivale à esperança. Essa esperança que não obstante vivermos em condições difíceis, sentimo-nos felizes por corresponder ao projecto que Deus tem para nós. Neste dois documentos vemos as grandes linhas do Papa. Falar claro AE – A clareza não é sempre associada à diplomacia… MCC – Talvez seja um preconceito da parte do público em geral, que quando se fala em linguagem diplomática fala-se em ter muito cuidado e em não dizer coisas com clareza. A diplomacia para ser eficiente tem de apoiar-se na verdade e dizer as coisas com muita clareza. Não as vamos dizer muitas vezes em público porque isso é contraproducente. Dizemos às pessoas que têm o poder de decidir, seguindo as normas do direito internacional que dita a não ingerência em política interna. Mas a boa diplomacia é sempre aquela que se funda na verdade e é aquela que consegue resultados de valor. Quando não se funda na verdade, não dura, como vemos nos casos do Médio Oriente. Por exemplo, para a reunião a ter em Roma em Novembro, com os especialistas do mundo islâmico e os especialistas da Igreja Católica, os islâmicos propuseram o tema e Bento XVI manifestou-se de acordo, mas disse que era necessário esclarecer o sentido das palavras, pois isso é o que quer dizer a verdade. Temos que esclarecer o sentido da verdade e da palavra. Posso dizer que amo o próximo e a interpretação que dou não é a mesma que o meu interlocutor tem. Para chegarmos a conclusões positivas sem perder tempo, é fundamental definir bem o que entendemos pelas palavras de modo a chegar a uma conclusão partilhada por todos. AE – Começou por dizer que o discurso de Bento XVI era muito rico. Haverá algumas dificuldades de, em situações pontuais, em que esse discurso seja complexo e esteja na origem de mal-entendidos que marcaram estes três anos? MCC – Encontramos, naturalmente. Este Papa distingue-se por tocar os temas com muita clareza e sem estar preocupado se dizem bem ou mal dele. Foi o que fez em Ratisbona. O seu discurso aqui foi concebido só para professores universitários. Inclusivamente, o Cardeal de Madrid estava na Alemanha e ele e outros que queriam assistir ao discurso do Papa não puderam pois não lhe foi permitido. É um discurso intelectual, feito por um professor universitário que era o Cardeal Ratzinger, a colegas do mundo universitário. AE – Que impacto teve esse episódio no diálogo com o Islão? MCC – O Papa aí declara que há uma verdade e nós devemos expô-la como tal. O mundo está cheio de problemas e a religião nunca pode ser invocada para matar ou para causar dano ao próximo. Mencionou um episódio que se passou para enriquecer a ideia que estava a desenvolver. Isto criou muitos problemas mo mundo muçulmano, mas também deu bons resultados. Como sabe, o Rei da Arábia Saudita foi visitar o Papa. Isto seria incrível há meia dúzia de meses. Que o Papa tenha posto as cartas claras em cima da mesa e que tenha despertado a atenção dos intelectuais e os intelectuais também do mundo muçulmano para problemas reais e que causam desastres como conhecemos aqui em Madrid. Sucesso sem surpresa AE – Depreendo pelas suas palavras que não o surpreende a capacidade de Bento XVI de progredir com sucesso em campos delicados… MMC – Ele vai aos campos que são importantes no mundo de hoje, com a verdade na mão e sem outros interesses que não sejam de todas as partes implicadas. O mundo de hoje está com guerras terríveis. Outro ponto que o Papa tem tocado muito é a família, o aborto: em muitas partes do mundo acontecem barbaridades sobre a vida humana. Se aceitamos a vida como um direito humano, e se assim o é, significa que é anterior mesmo à lei e uma lei que não a respeite é uma lei injusta. Ele aborda esses temas que o nosso mundo começa a esquecer. Alguém tem de despertar a consciência do mundo ocidental para estes valores que não estamos a cuidar. AE – Precisamente nestas campos da bioética, alguns Estados lêem essas intervenções pontifícias e episcopais como uma ingerência na política interna, como já aconteceu em Espanha. MCC – Bem, se falam os bispos espanhóis, aí não tenho o direito de entrar, pois não sou espanhol e a minha situação é diferente. Mas os bispos espanhóis podem pronunciar-se. Eu creio que fazem bem porque despertam a consciência e têm tido resultado, embora muitas vezes alguns possam não ficar contentes, outros vão-se dando conta que algumas coisas eram autênticas barbaridades que se estavam a cometer. Houve correcção em alguns sectores. A acção da Igreja é muito útil. Alguém que está a trabalhar para o bem comum, economicamente não é recompensado, nem procura sê-lo. Procuramos trabalhar para o bem do povo e isso desperta a consciência de muita gente. E já temos resultados positivos, aqui na Espanha e noutros países da Europa. AE – Como se reage quando, fazendo esse esforço pelo bem comum, com uma mensagem de valores universais, acontece o que teve lugar com a ida não concretizada do Papa à Universidade La Sapienza? MMC – Temos pena, mas não perco muito tempo a pensar nisso. Muitas vezes as pessoas pensam que ficamos muito aflitos com coisas que saem ou não saem, mas dizemos o que pensamos e as pessoas são livres de criticar e dizer o que pensam. Pessoalmente, a mim preocupar-me-ia se eu fizesse alguma coisa que não agradasse a Deus. De resto, procuro estar dentro dos meus limites do corpo diplomático, ou seja, da não interferência em coisas que não devo, mas depois quando falo concretamente com os políticos, digo o que penso. AE – Passados três anos, está muito optimista em relação ao avanço do diálogo com a China e o Islão… MMC – Com a China vai bem. Por outro lado, com o Islão, nos últimos seis meses deu-se um progresso enorme. Muita gente quando foi o discurso de Ratisbona, estava aflitíssima, mas não temos que nos preocupar pois o que se disse é pura verdade e foi dita para intelectuais, não foi dita para pessoas que não entendem bem e acham que queremos ter mais ou menos adeptos. Não é esse o nosso interesse. AE – Nesse sentido, acha que não tinham razão as pessoas que acusavam Bento XVI de não ter capacidade diplomática. MMC – O Papa nunca diria nada para ofender alguém. Mesmo no célebre caso de Ratisbona, Bento XVI apenas utilizou uma citação que vinha ao tema e o que queria dizer é que em nome de Deus não se pode matar e causar dano ao próximo.

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