Homilia do Bispo do Porto na celebração da Paixão do Senhor

Amados irmãos e irmãs, todos reunidos no Gólgota deste dia: Depois de tudo quanto ouvimos, a atitude certa seria o silêncio, contemplativo e contrito. E nem alguma coisa que eu diga agora o quer perturbar, antes confirmar, para o tempo que se segue, hoje e amanhã, até à vigília pascal. Deixai-me concentrar a reflexão no momento definitivo, como o evangelista o narrou: “sabendo que tudo estava consumado […] Jesus disse: ‘Tenho sede’. Estava ali um vaso cheio de vinagre. Prenderam a uma vara uma esponja embebida em vinagre e levaram-Lha à boca. Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: ‘Tudo está consumado’. E, inclinando a cabeça, expirou”. Tudo aqui importa, sem excluir nenhum detalhe. A vida resumida numa inextinguível sede, um vinagre que não poderia aliviá-la, a morte como entrega do Espírito, em que Jesus se retribui ao Pai, e nos salva nessa mesma retribuição, porque nela nos inclui. Sequioso de nós, já Jesus se mostrara, surpreendendo a samaritana. Recordemos o episódio, em que todos os pormenores igualmente contam: “Tinha de atravessar a Samaria. […] Ficava ali o poço de Jacob. Então Jesus, cansado da caminhada, sentou-se, sem mais, na borda do poço. […] Entretanto, chegou certa mulher samaritana para tirar água. Disse-lhe Jesus: ‘Dá-me de beber’. […] Disse-lhe então a samaritana: ‘Como é que tu, sendo judeu, me pedes de beber a mim que sou samaritana?’. É que os judeus não se dão bem com os samaritanos. Respondeu-Lhe Jesus: ‘Se conhecesses o dom que Deus tem para te dar e quem é que te diz: ‘dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias, e Ele havia de dar-te água viva!” (Jo 4, 4 ss). Todo o trecho se realiza agora, no alto do Calvário. Cansativamente atravessada – sempre e só por Ele – a Samaria da nossa imensa distância de Deus, magnanimamente ultrapassadas longuíssimas histórias de dissenção e estranheza – sempre e só nossas -, Jesus resume-se na sede que tem de nós, na sede que Deus tem de cada um de nós. Diz-nos que quer trocar a água que lhe dermos, duma antiga e nunca saciada expectativa, na água viva que, recebida do Pai como eterna fonte, nos comunica a todos como vida nova do Espírito. Tudo se consuma assim: a sede que Deus tem de nós e a sede que nós temos de Deus. Tudo consumado em Deus humanado; e humanado para nos divinizar na água viva do Espírito, tornada a cruz em fonte. Mas, por enquanto, a sede… A sede de Jesus, que o leva a buscar-nos no mais longínquo de nós mesmos, na secura absoluta da própria morte, poço realmente sem fundo. Daqui a instantes, esta celebração concentra-se na cruz do Redentor. Iremos adorá-la, cantaremos cânticos a propósito. Mas será importante que continuemos a ouvir d’Ele o brado que nos salva: “Tenho sede!”. E que cada um de nós, abeirando-se da Cruz, o oiça na sua própria pessoa: “Tenho sede de ti!”. Entretanto, para sabermos mais da sede de Deus, da sede de Jesus na cruz, temos de aprender com quem a conheça muito. Aprendamos então, para que esta celebração tenha em nós o sentido obrigatório e salutar que deve ter. Saiu recentemente em edição portuguesa um extraordinário livro com escritos pessoais de Madre Teresa de Calcutá (Madre Teresa – Vem, sê minha luz. Os escritos privados da ‘Santa de Calcutá’. Lisboa: Alétheia, 2007). Suscitou alguma polémica, entre os que ainda não sabem o que a redenção custou a Cristo e necessariamente custa aos que estão com Ele na única redenção do mundo. A quem julga que há ressurreição sem cruz, ou saciedade sem sede. A nós mesmos, se ainda não despertámos do sono… A certa altura, Madre Teresa conta-nos como se radicalizou a sua vocação: “Foi neste dia [10 de Setembro1946] no comboio para Darjeeling que Deus me fez o ‘chamamento no interior do chamamento’ para saciar a sede de Jesus servindo-O nos mais pobres entre os pobres” (p. 58). E explica depois às Missionárias da Caridade: “ ‘Tenho sede’, disse Jesus na cruz, quando estava privado de todas as consolações, morrendo em Pobreza absoluta, abandonado, desprezado, vencido de corpo e alma. […] Jesus é Deus; portanto, o Seu amor, a Sua sede é infinita. O nosso objectivo é saciar esta sede infinita de um Deus encarnado. […] E [Jesus] não vos ama apenas, mais do que isso – anseia por vós. Sente a vossa falta quando não vos aproximais. Tem sede de vós” (p. 59). Uma vez que a sua sede é tanta, não se sacia enquanto não for totalmente reconhecida e correspondida. Quem conhece a sede que Deus tem de si, dedica-se necessariamente a saciá-la nos outros. Por isso, Teresa de Calcutá se transformou – a si e às suas seguidoras – em “Missionária da Caridade”. Explica-o desta maneira: “Minhas queridas filhas – sem o nosso sofrimento [a participação na sede de Cristo, afinal], o trabalho que fazemos mais não seria do que um trabalho social, muito bom e muito útil, mas não seria obra de Jesus Cristo, não faria parte da redenção. – Jesus quis ajudar-nos partilhando a nossa vida, a nossa solidão, a nossa agonia e a nossa morte. Tudo isso tomou Ele sobre Si, carregando-o na noite mais escura. Só pelo facto de estar unido a nós é que Ele nos redimiu. Nós podemos fazer a mesma coisa. A desolação dos pobres, não apenas a sua pobreza material, mas também a sua indigência espiritual, tudo isso tem de ser redimido e nós temos de partilhar isso. […] – Sim, minhas queridas filhas – partilhemos os sofrimentos dos nossos Pobres pois só se estivermos unidos a eles poderemos redimi-los, isto é, levar Deus à vida deles e levá-los a Deus” (p. 226). Contemplar a cruz do Redentor, absorver algo da sede divina que só a explica, é passar em definitivo para o lado de Deus e dos seus sentimentos, é viver de modo absolutamente cristão, para com Deus e para com os outros. E importa compreender que, para aí chegar, é preciso morrer para si, de modo igualmente absoluto e definitivo. O peso todo que estas palavras transportam traduz-se geralmente, nos místicos e nos santos, como trevas e dores, mas salutares as duas. Também para Madre Teresa se abriu um caminho de trevas, onde esteve muito com Cristo na cruz. Finalmente, compreendeu e disse: “Pela primeira vez ao longo destes 11 anos cheguei a amar a escuridão. Pois estou agora convencida de que é parte, uma parte muito, muito pequena da escuridão e da dor de Jesus neste mundo. […] Hoje senti realmente uma profunda alegria – que Jesus já não pode passar por aquela agonia mas que quer passar por ela em mim” (p. 221). “Hoje senti realmente uma profunda alegria…”, diz Teresa de Calcutá. Exactamente a alegria nova que só em Deus se pode ter, a de Cristo, como que desistindo de si para que os outros possam ser. Como fora a de Paulo, também plenamente identificado com a cruz redentora: “Agora, alegro-me nos sofrimentos que suporto por vós e completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja” (Cl 1, 24). É realmente outra vida, a que na cruz se revela e os verdadeiros discípulos aprendem. Assim foi sempre, quando se descobriu a Cristo. Exemplos repetidos dos santos, que são para continuar em nós, para que muitos outros renasçam da cruz. Alegria, alegria celeste, é partilhar a sede e os trabalhos de Jesus Cristo pastor, que transporta aos ombros – como à própria cruz – toda a “ovelha perdida”, sempre encontrada pelo seu amor. Trabalhosa alegria, que Cristo reparte com os seus verdadeiros amigos, contando-a em parábolas de sempre: “Qual é o homem dentre vós que, possuindo cem ovelhas e tendo perdido uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto e vai à procura da que se tinha perdido, até a encontrar? Ao encontrá-la, põe-na alegremente aos ombros e, ao chegar a casa, convoca os amigos e vizinhos e diz-lhes: ‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida’. Digo-vos Eu: ‘Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e novo justos que não necessitam de conversão’”. E podemos dizer ainda que, além da alegria na recuperação de cada um, que nos deve tocar evangelicamente a todos, há também alegria em participar na própria cruz, para nos encontrarmos e coincidirmos com o amor que aí mesmo nos salvou. Souberam-no sempre os verdadeiros penitentes, inteiramente rendidos ao amor de Deus, na cruz manifestado. Evoquemos, pela especial sugestão que tem, a crucificada alegria do humílimo e enorme Francisco de Assis, numa célebre página das suas Florinhas. Iam São Francisco e Frei Leão estrada fora, de Perúsia para Santa Maria dos Anjos. O frio era muito e Francisco dissertava sobre o que ainda não fosse a “perfeita alegria”, sempre muito além de qualquer satisfação corrente, mesmo em matéria espiritual. “E continuando a falar assim pelo espaço de duas milhas, perguntou frei Leão muito enleado: – ‘Padre, da parte de Deus te peço que me digas onde está a perfeita alegria’. E S. Francisco respondeu-lhe assim: – ‘Se quando nós chegarmos a Santa Maria dos Anjos, repassados de chuva, tiritando de frio, cobertos de lama e aflitos com fome, batermos à porta, e vier de lá o porteiro, todo irado e nos disser: ‘- Quem sois vós?’, e nós lhe respondermos: – ‘Somos dois dos vossos irmãos’; e ele replicar: ‘ – Não dizeis verdade: sois mas é dois vagabundos que andais enganando o mundo e roubando as esmolas dos pobres; ponde-vos daqui para fora!’; e não nos abrir, mas nos fizer passar a noite à neve, à chuva, com frio e com fome; e nós então suportarmos tanta injúria, tanta crueldade, tantos vitupérios, com paciência, sem perturbação nem murmurar, humilde e caritativamente pensando que, em verdade, aquele porteiro nos tinha conhecido e que Deus o movera a falar contra nós: ó frei Leão, escreve que nisto está a perfeita alegria’”. E, continuando a imaginar contrariedades que sofressem em tal transe, Francisco esclareceu o discípulo, como nos esclarecerá agora nós: “se tudo isto levássemos com paciência e satisfação, pensando nos trabalhos de Cristo bendito: e que por seu amor devíamos suportar estes trabalhos: ó frei Leão, escreve que está nisso a perfeita alegria. E agora ouve a conclusão. – Sobre todas as graças e dons do Espírito Santo que aos seus amigos Cristo concede, está o de se vencer cada um a si mesmo, e o de, voluntariamente e por seu amor, sofrer penas, injúrias, desprezos e opróbrios; e dos dons de Deus não nos podemos gloriar, porque nossos não são mas seus […]. Na cruz, porém, e na tribulação, nos podemos gloriar, que isto é nosso, e assim diz o Apóstolo: ‘Não me quero gloriar, senão na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo’” (São Francisco de Assis. Escritos – Biografias – Documentos. Fontes franciscanas. Braga: Editorial Franciscana, 1982, p. 1045-1046). Como se dissesse que só na tribulação poderemos oferecer algo de relativamente nosso, para a salvação do mundo no amor de Cristo. E a própria experiência nos vai mostrando que criação significa sempre superação de si mesmo, auto-doação e amor comprovado. Ainda mais quando se trata de recriação. Meditemos por fim – e não apenas no decurso desta celebração – que no centro da sociedade e do mundo, com as dilacerações que não lhes faltam e também lembraremos na grande oração universal que se segue, se ergue triunfadora a cruz de Cristo. Sendo o seu triunfo a caridade de Deus. Sendo a participação nela a nossa herança e encargo. Que gostosamente –mesmo quando custosamente – assumiremos decerto! Sé do Porto, 21 de Março de 2008 + Manuel Clemente, Bispo do Porto

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