O escândalo da Cruz

Porquê a morte? Porquê ir tão longe? – As respostas do Patriarca de Lisboa na Homilia da Paixão do Senhor “O escândalo da Cruz” Homilia na Paixão do Senhor Sé Patriarcal, 21 de Março de 2008 1. Nesta solene liturgia de Sexta-Feira Santa, somos convidados a mergulhar no sentido misterioso da morte de Cristo na Cruz, agradecendo a Deus, em adoração, a nossa redenção. Santo Anselmo, nos seus escritos teológicos, interroga-se: porque é que Deus teve de se fazer Homem? Mas esta pergunta adquire dimensão dramática nesta outra: porque é que Deus sujeitou à morte o Seu Filho Jesus Cristo? Não tinha Deus declarado no Tabor: “Este é o Meu Filho muito amado”? Porque é que lhe aprouve, como diz o Profeta Isaías, “esmagar o seu Servo pelo sofrimento”? Porque não atendeu a prece dramática do Seu Filho, no Getsémani: “Meu Pai, se é possível, afasta de Mim este cálice” (Mt. 26,39)? São Paulo, que na primeira Carta aos Coríntios tinha reconhecido que a morte de Cristo na Cruz era um escândalo para os judeus e uma loucura para os gentios, mas que se tornou, para nós que fomos chamados a seguir Jesus Cristo, em potência e sabedoria de Deus (cf. 1Co. 1,23-24), verga-se, em contemplação, perante esta insondável sabedoria de Deus: “Oh abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como os Seus decretos são insondáveis e os Seus caminhos incompreensíveis” (Rom. 11,33). De facto só de joelhos, na humildade da nossa fé, podemos contemplar a Cruz de Cristo e impedir que ela não seja para nós um escândalo, algo de tão violento e incompreensível que nos leve a duvidar da bondade e da justiça de Deus. 2. O caminho mais seguro para penetrarmos no sentido da morte de Cristo, querida por Deus para o Seu próprio Filho, é acompanhar Jesus na maneira como Ele a vive e aceita. Na conversa com Nicodemos, Jesus afirma: “Deus amou tanto o mundo que deu o Seu Filho Unigénito, para que todo aquele que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo. 3,16). É, portanto, uma loucura do amor de Deus pelo mundo que criou. Deus não pode aceitar que o mundo pereça e perca a vida eterna. Trata-se de vencer o mal na sua raiz, o que só pode ser realizado pelo amor de Deus, o mesmo com que criou o mundo. E esse amor de Deus só pode resgatar a humanidade desviada, se puder exprimir a profundidade do Seu amor de Pai pelo Seu Filho, num coração humano, o coração de Cristo, Verbo encarnado. No Calvário, Deus, para amar o mundo, não deixa de amar o Seu Filho, que na Sua humanidade, assumiu todo o mal do mundo. Na Cruz, o amor entre o Pai e o Filho é o mesmo amor eterno que criou o mundo, porque só assim o pode recriar. Jesus tem, desde sempre, uma consciência viva do modo como se concluirá a missão que o Pai lhe deu. A aceitação da vontade do Pai é expressão de obediência filial, na densidade do amor trinitário: “Meu Pai, se este cálice não pode passar sem que Eu o beba, faça-se a Tua vontade” (Mt. 26,42). “Apesar de ser Filho, aprendeu a obediência no sofrimento” (He. 5,8). A Pedro que tenta reagir à prisão de Jesus com a espada, Jesus diz: “mete a tua espada na bainha. Não hei-de beber o cálice que Meu Pai me deu?” (Jo. 18,11). Na Paixão, Jesus homem exprime o Seu amor ao Pai na aceitação do sofrimento e da morte. A Sua última palavra “tudo está consumado” (Jo. 19,30) é o reconhecimento consciente de que a vontade do Pai se cumpriu até ao fim. Amar no sofrimento e na obediência é a atitude nova que a morte de Cristo lega à humanidade, caminho para a redenção do sofrimento inevitável. 3. A Cruz é um acto de amor de Deus Pai pela humanidade que criou; é um acto de amor de Jesus por Deus, Seu pai, concretizado na obediência à vontade divina. Mas porquê a morte? Porquê ir tão longe? Trata-se de vencer radicalmente o mal e exorcizar a morte, inserindo-a no dinamismo da vida e da esperança. A relação entre o pecado e o sofrimento e a morte, é continuamente expressa na Sagrada Escritura. São Paulo resume toda essa tradição na Carta aos Romanos: “Assim como por um só homem o pecado entrou no mundo e pelo pecado a morte, assim a morte atingiu todos os homens, porque todos pecaram” (Rom. 5,18). Só fazendo da morte uma expressão do amor supremo, do amor criador, o sentido da morte humana pode ser redimido. Ligado à experiência da morte está a realidade do sofrimento humano, universal e inevitável, vivido como experiência de morte. Sem cair no exagero de algumas correntes do Antigo Testamento, que consideravam os pecados pessoais causa do sofrimento, é um facto que a maneira como ele se situa na experiência da humanidade está relacionada com o mal radical, a que São João chama o pecado do mundo. Exorcizar a morte é também mudar radicalmente o sentido do sofrimento, o que só é possível redimindo o pecado. Essa era a situação dramática da humanidade que exigiu a solução radical da morte de Cristo, que tomou sobre Si o pecado, todos os pecados, restituindo ao homem a possibilidade de fazer da morte e do sofrimento expressões de vida e de esperança. Como diz João Paulo II, “o contrário da salvação não é somente o sofrimento temporal, mas o sofrimento definitivo: a perda da vida eterna, o ser repelido por Deus, a condenação. O Filho unigénito foi dado à humanidade para proteger o homem, antes de mais nada, deste mal definitivo e do sofrimento definitivo” (João Paulo II, Salvifici Doloris, nº 14). E acrescenta: “Aquele que, com a Sua Paixão e morte na Cruz, opera a Redenção é o Filho unigénito que Deus nos «deu». Ao mesmo tempo, este Filho da mesma natureza que o Pai sofre como homem. O Seu sofrimento tem dimensões humanas, e tem igualmente – únicas na história da humanidade – uma profundidade e intensidade que, embora sendo humanas, podem ser também uma profundidade e intensidade de sofrimento incomparáveis, pelo facto de o Homem que sofre ser o próprio Filho unigénito em pessoa: «Deus de Deus». Portanto, somente Ele – o Filho unigénito – é capaz de abarcar a extensão do mal contida no pecado do homem: em cada um dos pecados e no pecado «total», segundo as dimensões da existência histórica da humanidade na terra” (Ibidem, nº 18). 4. A morte de Cristo como expressão do amor eterno restitui ao sofrimento humano a possibilidade de ser expressão do amor. O homem toca a sua plenitude quando na sua vida, na sua liberdade, Deus, que quer a comunhão com ele, pode ser completamente Deus; a plenitude do Seu amor absoluto não é toldada pelas atitudes da liberdade humana, impedindo, assim, a total comunhão com Deus. Ora em Cristo o amor de Deus pelo homem exprime-se na comunhão com o coração humano, e que exige deste o apagamento (kenose) perante a divindade, a obediência sem limites, dando prioridade absoluta ao amor de Deus. Na obediência de Cristo até à morte na Cruz, Deus é completamente Deus numa liberdade humana. A Redenção consiste na restituição ao homem de permitir, pela sua obediência, que Deus seja Deus na sua vida, como escreve Paulo aos Filipenses: “Tende entre vós os mesmos sentimentos de Jesus Cristo: Ele, de condição divina, não guardou ciosamente essa situação que o igualava a Deus, aniquilou-se a Si Mesmo, tomando a condição de escravo, tornando-Se semelhante aos homens. E comportando-se como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte, e à morte na Cruz”. Esta humilhação do Filho, permitiu a Deus exercer todo o Seu poder, “exaltando-O e dando-Lhe o nome que está acima de todos os nomes” (Fil. 2,5-9). Isto leva Paulo a afirmar de si mesmo, referindo-se às suas provações, que traz sempre gravadas em si as marcas da Paixão de Cristo. Para que a Igreja permita a Deus manifestar todo o poder do Seu amor, tem de seguir o caminho do apagamento e da obediência, e essa é uma revolução contínua no comportamento da humanidade, tão marcada pelo orgulho do homem e por sofrimentos incalculáveis que não consegue evitar e que suporta como experiência de morte. E que, como exprime claramente o cântico do Servo, em Isaías, esta mudança radical da vivência do sofrimento e da morte, vivida pessoalmente por Cristo, é para ser assumida por todo o Povo de Deus, na sua mediação redentora em relação a toda a humanidade. E isso só a Igreja, o novo Povo de Deus, o pode fazer, porque brotou do acto supremo de amor de Deus pelo mundo, que foi a morte de Cristo. Ao contemplar a Cruz, descubramos o mistério e a missão da Igreja de ser no mundo, fermento de Redenção. Ela continua a ser chamada a viver no sofrimento o que falta à Cruz de Cristo. Mas faltou alguma coisa à Cruz de Cristo? Falta a nossa parte, a vivência da obediência do Filho pelo Seu corpo, que é a Igreja e que, no desígnio de Deus, faz parte do sacrifício total para a redenção do mundo. Adorando a Cruz, assumamos a nossa missão de co-redentores. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca Foto: LUSA

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