Catequese do Cardeal-Patriarca no Domingo de Ramos

Escutar a Palavra é escutar Jesus Cristo 1. Como vimos nas catequeses anteriores, a Palavra revelada, Escritura ou Tradição viva da Igreja, insere-se no conjunto do dinamismo de encarnação, através do qual Deus se comunica na realidade humana, a palavra profética e os acontecimentos que Deus realiza a favor do Seu Povo. Sabemos e acreditamos que este caminho de encarnação encontrou a sua plenitude em Nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, Ele que é a Palavra eterna de Deus. Esse é o grande anúncio cristão com que São João começa o seu Evangelho: “E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós e nós vimos a Sua glória, glória que Ele tem em Seu Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade” (Jo. 1,14). São João anuncia também o poder transformador dessa Palavra eterna feita carne e o que realiza naqueles que a escutam: “A todos os que O receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, àqueles que acreditaram no Seu nome, gerados não pelo sangue, pelo poder da carne ou pelo querer do homem, mas por Deus” (Jo. 1,12). Esta Palavra eterna encarnada exprime nos que a escutam o mesmo poder criador que exprimiu na Criação, em que “tudo foi feito por Ele e sem Ele nada existiu” (Jo. 1,3). Ele é a expressão definitiva da Palavra de Deus em linguagem humana. Basta escutá-l’O, a Ele, que nos fala, não só pelas Suas palavras, mas por toda a Sua vida, sobretudo quando a entregou por nosso amor. Para que não restassem dúvidas, o próprio Pai revela misteriosamente, no momento da transfiguração, que Jesus é o Seu Filho muito amado e que basta escutá-l’O. E para os discípulos não houve dúvidas de que era a voz de Deus, pois, como no tempo do Êxodo, Ele falou-lhes de dentro da nuvem: “Enquanto Pedro ainda falava, eis que uma nuvem luminosa os envolveu na sua sombra, e uma voz dizia de dentro da nuvem: Este é o Meu Filho muito amado, que tem todo o Meu enlevo; escutai-O” (Mt. 17,5). Esse é o grande desejo de Deus, que escutemos a Sua Palavra e agora, no Filho feito homem, podemos escutá-la sempre e totalmente, sobretudo porque ao sermos unidos a Ele, fazermos um só com Ele, numa intimidade de vida e de amor. Só a partir desta relação viva com Jesus Cristo, podemos escutar a Palavra de Deus comunicada nas Escrituras. Cristo é a chave e encerra o segredo da escuta da Escritura. Plenitude do processo de encarnação da Palavra 2. A encarnação, que significa a revelação de Deus ao homem em linguagem humana, foi o caminho escolhido por Deus para nos comunicar a Sua Palavra eterna. É um processo progressivo, cujo ritmo só Deus conhece, faz parte do seu desígnio, isto é, do segredo de Deus. Desde Abraão, que ouviu a Palavra do Senhor, confiou e obedeceu, passando por todos os profetas, até Jesus Cristo, há um “crescendo” na encarnação da Palavra. Em Cristo, a Palavra eterna que, em Deus é uma Pessoa, o Filho torna-Se homem, ou seja, exprime a totalidade da Sua Pessoa na natureza humana. Não são duas Pessoas, é a mesma Pessoa divina completamente expressa na natureza humana. Esta plenitude da Encarnação do Verbo eterno constitui a plenitude do tempo salvífico, isto é, da comunicação de Deus com o homem. Tudo o que foi dito pelos profetas e comunicado na palavra humana inspirada, é plenamente redito em Jesus Cristo. Já referimos, noutra catequese, o início da Carta aos Hebreus: “Depois de ter, muitas vezes e de muitos modos, falado outrora aos Pais pelos Profetas, Deus, nestes tempos que são os últimos, falou-nos por meio do Filho” (Heb. 1,1-2). O que Deus nos diz definitivamente em Jesus Cristo, Seu Filho, já tinha começado a dizê-lo através dos Profetas e de todos os autores inspirados. Por isso a plenitude da encarnação da Palavra em Jesus Cristo é, necessariamente, a chave da interpretação da Palavra da Escritura, que encontra, toda ela, a plenitude de sentido em Jesus Cristo. São Cipriano exprime, assim, a unidade de sentido entre Cristo e toda a Escritura: “Outrora quis Deus falar e fazer-Se ouvir de muitas maneiras, pelos Profetas, seus servos. Mas muito mais sublime é o que nos diz o Filho, a Palavra de Deus, que já estava presente nos Profetas e agora dá testemunho pela Sua própria voz”[1]. O próprio Jesus ressuscitado, na aparição aos discípulos de Emaús, afirma que os profetas e todas as Escrituras se referiam a Ele: “Então disse-lhes: espíritos sem inteligência, lentos em acreditar tudo o que anunciaram os profetas. Não era preciso que Cristo suportasse estes sofrimentos para entrar na Sua glória? E, começando por Moisés e percorrendo todos os Profetas, interpretou-lhes o que em toda a Escritura Lhe dizia respeito” (Lc. 24,26-27). Cristo não anula a Escritura, mas Ele é a sua plenitude de sentido, da Palavra dita e escrita e dos acontecimentos salvíficos. É que Deus revelou-Se de muitos modos, sobretudo através da Palavra inspirada e de acontecimentos que podiam ser interpretados como intervenções de Deus na história do Seu Povo, manifestações da Sua solicitude amorosa. Em Cristo, toda a Sua Pessoa, é Palavra e acontecimento; n’Ele podemos perceber a Palavra e captar o sentido salvífico dos acontecimentos, dos sinais, como lhe chama São João, entre os quais sobressai como acontecimento decisivo a Sua morte na Cruz e a Sua ressurreição dos mortos. A relação viva com Jesus Cristo, o mergulhar com Ele no acontecimento pascal é a forma de escutar definitivamente a Palavra do Senhor. Podemos ler um profeta, rezar um Salmo ou meditar a história das “mirabilia Dei”, os acontecimentos de salvação. Em todos eles escutamos a Palavra do Filho. Cristo é a plenitude das palavras de Deus 3. Cristo, Palavra encarnada, exprime a unidade de toda a revelação de Deus. N’Ele descobrimos a coerência da mensagem de Deus aos homens. N’Ele, plenitude da revelação descobrimos que esta foi progressiva: Deus disse em cada momento o que o homem podia escutar; vai dizendo sempre mais, até dizer tudo no Seu Filho Jesus Cristo. O progresso da revelação não surpreende, pois em cada momento novo o homem escuta o que já tinha escutado, na alegria da profundidade. A surpresa é o encantamento do mistério que nos é revelado. Escutar plenamente Deus em Jesus Cristo só é possível na comunhão de vida e de amor com Ele. Temos então a alegria de tocar a plenitude de sentido das palavras de Deus, daquelas que foram dirigidas ao homem desde a criação do mundo e que eram, desde sempre, expressões do Verbo eterno de Deus. Vejamos alguns exemplos: Eu sou o teu Criador 4. É a primeira palavra que Deus dirige ao homem, na qual Se revela a Si Mesmo e revela o mais profundo mistério do próprio homem. Eu criei-te do nada, sem Mim não existirias, só em Mim podes subsistir. Criei-te semelhante a Mim, à minha Imagem e semelhança; criei-te porque amo, porque o Meu amor é infinito e deseja ser partilhado; criei-te para a intimidade do amor e para a plenitude da vida. Criei-te livre, porque não há amor sem liberdade. Criei todo o Universo para ti, enriqueci-o com a imensidão das criaturas, todas participação da vida que está em Mim. Podes conhecer-Me e louvar-Me, descobrindo a maravilhosa beleza que imprimi nelas. Partilhei contigo o Meu poder e fiz-te rei do Universo. Esta primeira e fundamental Palavra de Deus ao homem é plenamente redita em Jesus Cristo. Ele junta em Si o poder do criador, porque por Ele todas as coisas foram criadas, assim como a beleza da criatura, porque Ele é a plenitude da criação. N’Ele, como em Sua Mãe Maria Santíssima, a imaculada e cheia de graça, brilha toda a beleza da criação enquanto participação da beleza divina. Jesus ensina os discípulos a contemplar a beleza de Deus na beleza da criação: nos lírios do campo, nas aves do Céu, mas sobretudo, no coração do homem que Deus cuida com particular solicitude e providência. Filho eterno do Pai, Jesus é, na encarnação, o primogénito de toda a criatura. Eu sou o teu Redentor 5. É a segunda palavra depois do Verbo criador. O homem pecou porque sucumbiu à tentação e escolheu um caminho diferente do insondável desígnio de Deus. Ele que podia escolher espontaneamente o bem, quis poder escolher o mal. O que é bem e o que é mal definem-se a partir da vontade de Deus e do que é bom para a plena realização do homem. O homem perdeu a feliz harmonia do Jardim onde tinha sido criado, a sua vida será uma árdua luta, o sofrimento e a morte serão a sua sorte. Mas Deus não o abandonou: o descendente da mulher, Jesus Cristo, esmagará a cabeça da serpente tentadora e libertá-lo-á do pecado. A partir daí o amor de Deus criador torna-se em amor redentor. Deus não quer a morte do pecador mas que se converta e viva. Um dia o Seu Servo, a tal descendência da mulher, assumirá sobre os Seus ombros todos os pecados da humanidade e, como manso cordeiro, anúncio do verdadeiro Cordeiro Pascal, deixar-Se-á imolar em sacrifício. Toda a história de Deus com o Seu Povo, no Antigo Testamento, é uma história de redenção. Este amor redentor realiza-se e exprime-se em plenitude em Jesus Cristo, o Cordeiro Pascal imolado. Redentor, Ele recria a humanidade e faz dos homens transviados filhos de Deus, de novo acolhidos na intimidade do Pai. As parábolas da misericórdia e a oblação da Cruz são a linguagem expressiva do amor redentor de Deus. Em Cristo, não apenas o homem, mas a criação inteira, escravizada ao poder da morte pelo pecado do homem, é liberta para a glória de Deus. Vós sereis o Meu Povo e Eu serei o vosso Deus 6. Esta é a palavra constitutiva do Povo que o Senhor escolheu. A redenção é a acção de Deus para restituir ao homem a capacidade de comunhão com Ele. Mas Deus é comunidade de Pessoas, unidas no amor. Só a dimensão comunitária restitui ao homem a possibilidade de participar na comunhão divina. Por isso escolhe e forma um Povo, gérmen e anúncio do futuro definitivo de toda a humanidade, reunida em Deus como grande experiência de comunhão. Por isso, na Palavra que Deus lhe dirige e nas intervenções históricas, o Povo tem sempre a primazia, porque Deus só pode salvar os homens, inserindo-os na experiência de comunhão de um Povo. Com ele faz Aliança, pacto de fidelidade mútua, revela-lhe o Seu amor de esposo, com toda a força da ternura criadora. Os cânticos de amor de Deus pelo Seu Povo, constituem as mais belas expressões poéticas da Sagrada Escritura. Cristo toma a sério o ser membro deste Povo. Alarga-lhe as fronteiras, pois a raça e o sangue deixam de ser os critérios de pertença, mas apenas a fé em Cristo. N’Ele, o Povo de Deus está mais próximo do Povo que Deus quer. É um novo Povo que surge, o novo Povo de Deus, numa continuidade de desígnio que só o amor salvífico de Deus, plenamente manifestado em Jesus Cristo, garante. Cristo identifica-se totalmente com esse novo Povo: a Igreja é o Seu corpo. Condu-la à plenitude da comunhão, comunicando-lhe o Seu Espírito de amor. Ama-a como um esposo ama uma esposa. O amor esponsal de Cristo pela Igreja, anuncia a eternidade como uma festa nupcial. É a terra prometida ao primeiro Povo, a terra onde correm o leite e o mel. Concluirei com a Casa de Israel uma nova Aliança (Jer. 31,31) 7. A Aliança é um pacto de fidelidade mútua entre Deus e o Seu Povo. Este não é sempre fiel, quebra a Aliança; Deus é sempre fiel e a manifestação dessa fidelidade é o não desistir da Aliança, apesar da não fidelidade do Povo. Apesar do pecado de Israel, Deus renova essa Aliança. A Aliança nova exprime-se, não nas leis e nas estruturas exteriores, mas na renovação do coração. Deus dará ao Povo um coração novo, capaz de O conhecer e de O amar. A renovação do coração é o grande desafio de Jesus Cristo. O Seu coração humano, o coração do Filho de Deus é verdadeiramente esse coração novo anunciado pelo Profeta Jeremias, capaz de conhecer e de amar a Deus, Seu Pai. N’Ele Deus sela a Aliança, não apenas nova, mas definitiva, na Sua Paixão: Este é o cálice do Meu sangue, da nova e definitiva Aliança. Participar na Páscoa de Jesus é, para cada comunidade de discípulos, a maneira de ratificar, sempre de novo, essa Aliança de Deus com o Seu Povo, válida “até que Ele venha”. Eu quero a misericórdia e não o sacrifício 8. O amor fiel de Deus à Aliança com o Seu Povo é um amor misericordioso, que perdoa e recupera, porque Ele não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva. Numa oração do Missal dizemos a Deus que é quando perdoa que Ele manifesta o Seu poder. Mais do que a solenidade exterior dos sacrifícios rituais, Ele quer a verdade dos corações convertidos ao amor. Há um sacrifício que Deus pode aceitar, o do Seu Filho Jesus Cristo, que é o sacrifício que o novo Povo de Deus, a Igreja, pode oferecer até ao fim, e que supõe a conversão para o amor. O mandamento novo de Jesus, amai-vos uns aos outros como Eu vos amei, é a expressão definitiva da misericórdia, agora vivida pela Igreja, Povo de redimidos. São Paulo chamará à Igreja “o mistério de misericórdia”. O amor cristão realiza todas as palavras de Deus acerca da justiça e faz parte do autêntico culto cristão como sacrifício de louvor. Deus dissera que o culto que Lhe dá glória é o quebrar das injustiças, resgatar os cativos, aliviar os oprimidos. O sacrifício novo deste Povo novo é uma força transformadora da sociedade. Eu sou Aquele que é 9. Deus não depende do homem, não existe ou deixa de existir segundo a vontade do homem. Ele é o que existe por Si Mesmo, é subsistente e transcendente. É o Ser e a fonte de todo o ser. Inventar Deus e reduzi-lo à dimensão humana foi sempre a tentação do homem, desde a desobediência de Adão. Esta plenitude de Ser manifestou-se, na proximidade acessível de um rosto humano, em Jesus Cristo. “Eu e o Pai somos um só”. Esta é a dimensão mais estimulante do mistério de Cristo para nós: igual a nós em tudo, mesmo na humilhação e no sofrimento, igual a nós excepto no pecado, Ele é encarnação do Ser absoluto de Deus. N’Ele e por Ele temos acesso a Deus, reconhecemo-nos em Deus; n’Ele encontramos a nossa verdade profunda. Também Jesus Cristo não depende dos homens; Ele é tudo e apenas o que Deus quis que Ele fosse: a presença do Deus vivo. Cristo, modelo de escuta da Palavra de Deus 10. Plenitude de sentido de todas as palavras que Deus dirigiu ao Seu Povo, Cristo é, para nós, modelo de escuta da Palavra de Deus. Eu só vos digo o que ouvi de Meu Pai; as palavras que vos digo não são minhas, ouvi-as ao Pai que Me enviou. Cristo escuta perfeitamente a Palavra de Deus; ela dá-lhe força para vencer as tentações no deserto, e abraçar a Paixão, no Jardim das Oliveiras; alimenta a Sua esperança na ressurreição e é fonte de oração e de louvor: Pai nosso, seja santificado o Teu nome, venha o Teu Reino, que a Tua vontade seja feita na terra como o é no Céu. Ao dizer nosso, reza já em nome daqueles que, com Ele, hão-de aprender a escutar a Palavra, a Sua Palavra, que Ele escutou de Seu Pai. Esta Semana Santa, celebração da paixão, morte e ressurreição de Jesus, é para a Igreja um momento solene de escuta da Palavra eterna de Deus. Cristo, na Sua fidelidade, é a Palavra definitiva de Deus. Escutá-l’O é mergulhar, com Ele, no desafio da fidelidade e no segredo do desígnio de Deus. Sé Patriarcal, 16 de Março de 2008 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – [1] Ofício de Leitura de 3ª feira da 1ª Semana da Quaresma

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