Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Quem se conecta digitalmente, isola-se. Um paradoxo cibercultural que faz confusão a muitas pessoas. Quando nos conectamos online estamos sempre diante de um ecrã que serve de mediador entre nós e a informação processada no computador ou servidor. Ainda que seja uma video-chamada, a conexão não garante a interacção plena com o outro, tal como acontece no contacto. Por isso, a conectividade é diferente do neologismo (palavra nova) “contactividade”.
No pequeno romance “A Máquina Pára”, E.M. Forster idealiza um mundo em que as pessoas relacionam-se através da mediação dos ecrãs. Kuno quer falar com a sua mãe e pede para se encontrar com ela. A mãe não entende a razão porque o ecrã permite a Kuno que fale com ela e até veja a sua “imagem”. Mas ele diz —
— Já lhe liguei antes, mãe, mas estava sempre ocupada ou isolada. Tenho uma coisa importante para lhe dizer.
— O que é, querido? Despacha-te. Porque é que não o disseste por correio pneumático?
— Porque prefiro dizê-lo pessoalmente. Quero…
— Sim?
— Quero que me venha visitar.
Kuno quer o contacto.
Podemos descrever o sabor de um fruto que nunca comemos, mas só fazendo a experiência de o comer será possível realmente saber a que saboreia. Esta é uma experiência simples de estar numa ”zona de contacto”. As “zonas de contacto” são fundamentais para a experiência da contactividade. Na Exortação Apostólica Laudate Deum (LD), o Papa Francisco refere que
«Deus uniu-nos a todas as suas criaturas. Contudo o paradigma tecnocrático pode isolar-nos daquilo que nos rodeia e engana-nos fazendo esquecer que o mundo inteiro é uma “zona de contacto”. (LD 66)
O Papa Francisco inspira-se em Donna Haraway, professora de História da Consciência que define uma “zona de contacto” como — «sujeitos constituídos nas, e pelas suas relações uns com os outros (…) Trata-se das relações (…) em termos de co-presença, interacção, entendimentos e práticas interligadas, muitas vezes dentro de relações de poder radicalmente assimétricas.»
A “contactividade” desenvolve-se nas “zonas de contacto” que implicam a complexidade associada aos relacionamentos, tensões criativas e momentos transformativos impossíveis de viver através dos meios digitais. A tecnologia e a natureza entrelaçam-se na “contactividade” havendo um certo grau de surpresa e emergência daquilo que pode surgir nesses contactos.
A “contactividade” acontece de forma tangível e física. Enquanto a conectividade é cega quanto à qualidade dos relacionamentos estabelecidos, na “contactividade”, essa qualidade manifesta a importância das interacções reais que temos uns com os outros. Ainda recentemente, uma vez mais, num grupo de WhatsApp com uma finalidade, alguém relevante para o grupo fez anos e houve uma enxurrada de mensagens a felicitar essa pessoa. De cada vez que isso acontece fico a pensar — «por que razão não felicitam à própria pessoa, por mensagem privada, e o fazem no grupo?» Essa é a diferença entre conectividade e “contactividade”. Quem privilegia o contacto envia uma mensagem pessoal, quem prefere o isolamento inconsciente da conectividade, envia uma mensagem para o grupo. Pois, não importa a pessoa a quem felicito (e corro o risco de fazer aqui um juízo de valor, pelo que me perdoem a ousadia), mas o dar a conhecer aos outros que a felicitei.
Qual o efeito psicológico e sociológico da excessiva conectividade sobre a “contactividade”? Não pode a conectividade favorecer a “contactividade”? Não pode a pessoa sozinha que está longe dos seus familiares experimentar uma espécie de “contacto” mesmo que seja mediado pelo ecrã?
Durante a pandemia, muitos de nós não tivemos outro remédio senão realizar uma comunhão espiritual de Jesus pelas Eucaristias online. No início foi uma experiência com alguma profundidade por ser nova, mas depois de algum tempo, o portal do ecrã era insuficiente para viver plenamente aquele momento de receber Jesus. Mais do que ser tocado espiritualmente, ou até tocá-lo fisicamente, ao voltar a pegar em Jesus com as minhas mãos que recebiam a hóstia consagrada, a experiência era a de Deus que se deixava tocar para me tocar. A matéria transubstanciada havia-se tornado numa “zona de contacto” que permitia aprofundar a “contactividade” que nos liga ao mundo. Creio que a digitalização da vida humana tem o seu lugar em termos pontuais e profissionais, mas não há nada como a vivência de tocar e ser tocado. De entre os muitos convites que a Laudate Deum faz, penso que um dos mais subtis seja este apelo a transitar da conectividade à contactividade.
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