O Estado e nós

Zita Seabra Há dias, olhando distraidamente para o noticiário de uma televisão, deparei com uma estranha notícia: um senhor, idoso, doente, teve alta de um hospital. Seguiu de táxi para casa. Não recordo o local onde tudo aconteceu, mas era no interior Norte. Seguiu de táxi para casa. O motorista de táxi indignou-se porque ele teve alta do hospital e mandaram-no nu, apenas coberto com um lençol, no frio destes dias de Inverno. A mulher, idosa também vestiu-lhe o que pôde – o seu próprio casaco de malha. E assim seguiram e assim chegaram à terra onde viviam e ao bairro, um bairro que se indignou quando viu o senhor chegar assim, no táxi. Ficaram tão chocados que chamaram um canal de televisão para denunciar o caso e tentar evitar que outras situações idênticas se verifiquem. O pior de tudo, o mais amargo, é o sentimento de humilhação por que as pessoas passam em momentos dramáticos das suas vidas. E a humilhação pesa mais com os anos e com a doença, e com a impossibilidade que a doença e a idade nos trazem de gritar por ajuda ou gritar contra a injustiça. Há uns anos, estava eu a assistir a um familiar num grande hospital da zona de Lisboa, passou-se um caso muito semelhante e do qual me recordei ao ver aquelas imagens. Uma senhora que vivia só e estava internada teve um dia alta e não tinha roupa para vestir. Uma vizinha tinha-lhe levado a roupa para lavar e ainda não voltara ao hospital para lha devolver. Que fazer? É sabido que nos hospitais quando há alta, há alta, e alta é ordem para sair imediatamente do hospital, pois a cama faz falta a outro doente. A alta é aquele momento por que quase todos esperam ansiosamente para se verem livres do hospital, é na imensa maioria dos casos uma enorme alegria. Mas às vezes não é assim. Há problemas humanos tais que sair é um drama a acrescentar ao tempo lá passado. Neste caso, da senhora no hospital de Lisboa, o assunto resolveu-se de forma humana e digna. Perante a situação, e o facto, mais que justo e legítimo, de a senhora se recusar ir no táxi apenas com a bata do hospital, os enfermeiros e médicos do serviço chamaram o capelão que chamou as voluntárias que fazem serviço no hospital e o assunto foi imediatamente resolvido. A senhora seguiu vestida, no táxi, para casa. No entanto, todos sabemos que tão importante como a saúde das pessoas e a eficácia dos tratamentos médicos, dos medicamentos, das cirurgias, é a humanidade com que se tratam as pessoas. Eu não duvido que o procedimento do hospital deve ser absolutamente legal e conforme as normas. Que tem o hospital a ver com o facto de o doente que tem alta ter ou não roupa para sair? O facto é que dia-a-dia se dificulta mais o voluntariado e a presença de capelães nos hospitais, ambos fundamentais à humanização de um espaço de sofrimento e de dor. Em nome das regras e da eficácia. É assim quando o Estado cria regras e normas, considerando que pode com regras e normas substituir-se ao relacionamento humano e solidário. Ah! Já me esquecia de dizer que a notícia terminava não com a entrevista do motorista de táxi ou dos vizinhos, mas dizendo que o senhor chegou a casa e morreu. Sabe-se lá se da doença ou da vergonha ou de pena de quem (nós) lhe fez isto. Zita Seabra

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