Natal, felicidade e progresso

Homilia de D. José Policarpo no Dia de Natal, durante a qual desafiou a incluir Cristo na noção de sociedade perfeita e de liberdade. “A Encarnação do Verbo de Deus é o reacender da esperança” Homilia no Pontifical do Natal do Senhor Sé Patriarcal, 25 de Dezembro de 2007 1. A seguir à Criação, o nascimento de Jesus é o acontecimento decisivo para a vida dos homens. Separados pelo pecado, Deus e o homem reencontram-se em Jesus Cristo, podem conhecer-se e amar-se, na verdade profunda dos seus corações. “E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Nós vimos a Sua glória, que Lhe vem do Pai” (cf. Jo. 1,14). Deus não só se torna próximo, mas íntimo, pode abrir-nos o Seu coração, porque podemos escutar a Sua Palavra amorosa: “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por Seu Filho” (He. 1,1). O afastamento de Deus, ou o seu esquecimento e negação, constituem o maior drama da humanidade. Aconteceu, tantas vezes, em nome da autonomia do homem e da sua liberdade, pensando que pela sua inteligência e engenho podia atingir a plenitude da vida, esquecendo que “n’Ele estava a vida e a vida era a luz dos homens” (Jo. 1,4). Todas as expressões de ateísmo, todas as formas existenciais de negação ou esquecimento de Deus, continuam a ser o maior drama da humanidade, que tiram todo o sentido ao Natal, que é a exultação e o grito de alegria e de esperança que brotou do reencontro do homem com Deus. Esse é o testemunho que aqueles que reencontraram a intimidade com Deus, podem dar a uma humanidade desorientada e sofrida. Não se trata de uma refutação, nem de uma denúncia, nem de um esforço lógico para convencer. É apenas a alegria de quem reencontrou o sentido decisivo da vida, na esperança da vida autêntica e definitiva. Já o Profeta Isaías via assim o testemunho daqueles que encontraram o Deus vivo: “Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que traz a Boa-Nova, que proclama a salvação e diz a Sião: o teu Deus é Rei” (Is. 52,7). Esse é, também, o testemunho que nós, que celebramos o Natal com alegria, damos aos nossos contemporâneos: Deus existe, ama-nos, está próximo de nós, é uma promessa libertadora de amor, é a fonte da verdadeira esperança; e tudo isto nos é dado por este Menino que nasceu para nós e é “Deus connosco”. 2. O Papa Bento XVI dirigiu-nos, no início do Advento, uma belíssima Carta Encíclica sobre a esperança como expressão da salvação, sugerindo-nos, assim, o modo de preparar e viver o Natal, encontrando em Jesus Cristo a fonte da verdadeira esperança, concretizando aquela afirmação do Concílio Vaticano II, tantas vezes repetida pelo Papa João Paulo II: só no mistério de Cristo, Verbo encarnado, se esclarece definitivamente o mistério do homem. É natural no homem procurar a vida, uma vida melhor e feliz. Este dinamismo é, simultaneamente experiência e desejo. Esta busca da vida situa as diversas esperanças dos homens. Se Cristo é a Vida, só Ele pode ser o fundamento da esperança verdadeira, que resiste a todas as dificuldades e vicissitudes. N’Ele é possível viver da esperança, mesmo quando todas as esperanças humanas se apagaram. O Santo Padre começa por afirmar, na dimensão bíblico-teológica, a natureza da esperança cristã, incluída na própria fé, concebida como adesão total e confiante a Jesus Cristo. Acreditar em Jesus Cristo é unir-se a Ele, ser um com Ele, partilhar, desde já, a vida d’Ele, vida plena e definitiva, aquela que Deus desejou para o homem ao criá-lo à Sua imagem. Na fé começa a viver-se, desde já, a plenitude de vida de Jesus Cristo, a verdadeira vida eterna que Ele hoje vive na comunhão com Deus, na Trindade. E é a partir desta experiência de vida eterna, que a fé se transforma em esperança da plenitude dessa vida, em esperança de vida eterna. O Santo Padre recorda-nos o texto da Carta aos Hebreus: “A fé é a substância das coisas que se esperam e a prova das coisas que não se vêem” (He.5,1) . Não há verdadeira fé sem esperança na vida eterna, participação na vida de Jesus Cristo. “Na verdade, foi da sua plenitude que todos nós recebemos graça sobre graça” (Jo. 1,16); “àqueles que o receberam e acreditaram no Seu Nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo. 1,12). O Papa acrescenta: “A expressão vida eterna procura dar um nome a esta desconhecida realidade conhecida”. Conhecida, porque a experimentamos já, desconhecida porque constitui a grande surpresa que Deus ainda nos reserva. Bento XVI define esse encontro definitivo com Deus como “algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade” . 3. O Santo Padre refere, de seguida, a longa aventura da humanidade, tentando situar a esperança de uma vida melhor apenas no progresso deste mundo, fruto exclusivo do engenho humano e das capacidades dos homens. Filosofias e ideologias, revoluções e transformações sociais, progresso científico e tecnológico acreditaram e prometeram que era possível chegar a uma sociedade onde todos os homens fossem felizes e encontrassem a plenitude da vida. Mas a par de um progresso real e de conquistas boas para o homem, geraram quase sempre novas injustiças e sofrimentos incalculáveis. Esqueceram que o progresso material não é a única componente da felicidade humana, e que nenhuma esperança deste mundo anula a esperança na vida eterna. Abandonaram Deus, enquanto factor decisivo da felicidade humana, esqueceram a mensagem do Natal, esperança definitiva de reencontro de Deus com o homem, que redescobre em Deus o segredo da sua vida, a fonte da sua plenitude. Esqueceram que “não é a ciência que redime a pessoa humana. O ser humano é redimido pelo amor”, e não um amor qualquer: “o ser humano necessita do amor incondicionado. Precisa daquela certeza que o faz exclamar: nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, Nosso Senhor” (Ro. 8,38-39) . 4. Os diversos ateísmos, nas mais variadas expressões, tiveram origem neste reduzir a esperança humana à dimensão da história, e numa visão de felicidade que o homem pode construir. Celebrar o Natal exige o reencontro profundo com a primazia de Deus na nossa vida, pede-nos que revejamos as noções de felicidade e de progresso, de sociedade perfeita e de liberdade. Tudo o que formos capazes de construir neste mundo, tem de ser expressão de um desejo maior, num horizonte de eternidade. Não podemos desejar a felicidade, ansiar pelo amor, procurar construir um mundo melhor, sem ser em diálogo com Deus. A nossa vida descobre-se em Deus. E isso foi-nos tornado possível por aquele Menino que nasceu para nós, o Verbo eterno de Deus feito homem. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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