Para um Natal de Pessoas

Mensagem de Natal do Bispo de Vila Real 1- É especialmente agradável para mim poder entrar, através desta mensagem de Natal, em comunhão com muitas pessoas que se têm interessado pela minha saúde, a quem renovo os meus agradecimentos. A mensagem de Natal vai este ano marcada por um longo período hospitalar em Gaia e Coimbra, que me tem impedido de contactar com as paróquias, com os movimentos pastorais e com a população em geral, e impediu-me também de ir a Roma com os outros bispos fazer a visita oficial ao Santo Padre. Aproveito esta experiência hospitalar para dela fazer instrumento de reflexão e mensagem do Natal de Jesus. Quem alguma vez viveu uma experiência dessas sabe como ela ajuda a tomar consciência de duas dimensões fundamentais da pessoa humana: a interdependência humana e a centralidade do «eu pessoal». A interdependência humana sente-se desde o nascimento mas torna-se quase dependência total quando a fragilidade parece tocar os limites da vida. Se ninguém vive e cresce sozinho, ninguém vence uma doença sozinho. Todavia, a doença grave, ao mesmo tempo que torna nítido o sentimento de dependência, mantém aceso em nós, mesmo nas horas de um mar revolto e escuro, um «centro vital» da pessoa, sempre consultado por perguntas directas ou através da tecnologia dos que rodeiam o doente: Como se sente? Sente dor com esta máquina? Qual o efeitto deste remédio? e são as respostas, claras ou confusas, a tais perguntas que vão orientando o trabalho de recuperação. Deste modo, a maior dependência do doente cruza-se sempre com a força do próprio doente, com a sua capacidade de auto-observação, que acaba por influenciar o trabalho terapêutico. 2- A vinda do Filho de Deus ao mundo insere-se nesse mistério das relações humanas e da profundidade da pessoa. O dinamismo profundo do Natal é mesmo a transformação das relações das pessoas e grupos, impedindo que sejam malha opressora dos outros e evoluam gradualmente para um relacionamento mais fraterno. Efectivamente, paira sobre a sociedade actual a perda do rosto da pessoa, submersa no anonimato, esmagada por grupos que tudo controlam. O texto evangélico diz que em volta do presépio de Belém se gerou um mundo de relações múltiplas: são os anjos que voam, são os pastores que se aproximam, são os reis magos que chegam, Mais tarde serão os Apóstolos, as mulheres, os pobres, as autoridades, as multidões a tomar parte nesse dinamismo nascido com Jesus. Ele quis expressamente que os seus seguidores formassem uma comunidade de pessoas e que a sua vida e doutrina se transmitissem por essa comunidade de relações fraternas, a Igreja. Ele está nessa comunidade e a comunidade é o sinal visível da sua presença no mundo. Nessa comunidade a relação pessoal é insubstituível. Nos actos mais decisivos ( baptismo, crisma, matrimónio, ordenações ), a pessoa é expressamente referida pelo seu nome, e mesmo na Eucaristia, que tem um carácter comunitário, há sempre três referências à pessoa individual: no acto penitencial comum, no Credo e na Comunhão ( eu pecador me confessso, eu creio, eu não sou digno) Portanto, tanto as relações humanas como as relações religiosas são transfiguradas pelo Natal, a ponto de a qualidade da relação religiosa ser inseparável da relação com os outros. Também o mistério de Deus e a sua relação com o mundo é afectado pelo aparecimento desse Menino ao revelar-nos que nós fazemos parte do sonho de Deus, do seu plano eterno, e que o mistério de Deus tem um carácter pessoal em si mesmo e connosco, é Emmanuel. A própria oração cristã é uma relação de pessoas, não se dirige a uma força, nem a um Deus vago, mas a Deus com carácter pessoal Por tudo isto, dizemos que, sem Jesus Cristo, o homem não sabe bem o que é nem tem acesso pleno ao mistério de Deus que fica distante, inacessível, envolto em sombras. A mensagem de Jesus enche de saúde o tecido das relações humanas e das relações com Deus. 3- Dizia acima que na doença a pessoa do doente não se apaga perante o trabalho exterior do médico e dos recursos da tecnologia. Continua essencial a informação dada pelo próprio doente, colaborando com o trabalho de quem o rodeia. Também o Natal de Jesus se dirige à profundidade da pessoa, de cada pessoa, ao seu núcleo mais íntimo, para aí acender uma luz que, mesmo em horas de crise, nunca se extingue totalmente. É essa luz que brilhou na noite do Nascimento, e que dá à pessoa humana uma profundidade inexaurível e a capacidade de se impor ao mundo. Vivemos hoje um racionalismo pobre, um exercício mental restrito ao mundo do útil e do sensível, e com o perigo de uma dependência total dos grandes grupos económicos, culturais, dos novos meios de comunicação, por vezes do poder político. As pessoas deixam de «ter profundidade», deixam de pensar e limitam-se a reproduzir o meio ambiente, deixam de ter um «eu», e a primeira vítima dessa «decapitação da pessoa» é a dimensão da fé que supõe sempre uma pessoa liberta. É neste tempo de múltiplas dependências humanas, sociais, políticas, económicas, culturais, que vamos celebrar o Natal. Desejo que neste Natal as famílias estejam mais atentas às relações internas de marido e esposa, de pais e filhos, de irmãos e familiares; que os grupos empresariais e sociais reflictam no espírito que informa a sua organização e o seu posicionamento na sociedade envolvente; que as paróquias e grupos apostólicos se deixem invadir pelo espírito de comunhão, de que o Papa falou aos bispos portugueses; que cada um se interrogue sobre as motivações profundas das suas opções de vida; que todos sejamos um sinal do dinamismo que Jesus trouxe ao mundo pelo seu Nascimento. A todos os transmontanos, aos residentes ou que nos visitam nesta quadra natalícia, a todos os doentes e aos que sofrem, aos leitores deste texto, um Santo Natal e um Bom Ano Novo. Natal de 2007 Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real

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