É polémico, é antigo, mas é urgente!

Padre Miguel Neto, Diocese do Algarve

Foto Agência ECCLESIA/PR

Por estes dias, fui confrontado com mais uma notícia sobre esgotamento psicológico de clérigos. Neste caso, são dois bispos franceses, que deixaram de serem titulares de duas dioceses, para passarem a ser auxiliares de dioceses maiores. Causa: esgotamento, devido ao trabalho e a gestão de expectativas, algo que vulgarmente chamamos de burnout.

Não é um fenómeno atual. É algo que tem acontecido nos últimos 20 anos, cada vez com mais frequência. Porém, ninguém quer abordar o assunto e mais: tantas vezes segue-se em frente, como se nada estivesse acontecendo. Há literatura científica sobre o tema, pelo menos desde 2012. Na atualidade, tem-se acentuado o número de casos identificados em diversos países, de padres, bispos e consagradas, que pedem dispensa, mudam de vida ou, numa situação limite, terminam com a própria vida. As situações sucedem-se um pouco por todo o mundo: no Brasil; na França houve até um caso de alguém que nem chegou a assumir o cargo; na Suíça, Inglaterra e Irlanda.

Padres e Bispos, não aguentando mais a pressão da gestão de expectativas e de desejos dos leigos e das estruturas eclesiais da Igreja, cedem e gritam! Na generalidade, o Povo de Deus, leigos e clérigos, quando se abordam os problemas dos clérigos, limitam-se, quase sempre, a realçar os chavões do costume: celibato, o possível sacerdócio ordenado das mulheres, os abusos sexuais dentro da igreja, os problemas administrativos e económicos criados pelo clero (incluindo a suposta riqueza do Vaticano), as teorias da conspiração sobre os possíveis grupos secretos dentro da Igreja, etc. Neste preciso instante, é muito provável que quem esteja a ler este artigo, esteja a pensar que se o clérigo tivesse uma família, teria menos hipóteses de estar sob o efeito de burnout. Nada mais preconceituoso. Fora da realidade eclesial há imensa gente que também sofre desta doença e tem a sua própria família. E depois, se padres e bispos fossem casados, a sua família seria muito provavelmente mais um foco de pressão e gestão de expectativas. O que vestia a mulher do Padre? Em que trabalhava? Estariam a gastar o dinheiro das paróquias em luxos próprios, ou em férias? A intervenções da esposa do padre na realidade paroquial não seriam excessivas? Como é que os filhos dos padres se comportariam? Como é que eram educados? O que vestiam e usavam? O que faziam quando saiam de casa? Que crises conjugais e familiares teriam o padre e a sua família? Estas e outras questões seriam colocadas por todo Povo de Deus, sobretudo nas realidades paroquiais mais tradicionalistas e religiosas. Então, a pressão não estaria somente sobre o clérigo, mas também sobre a sua família e isso ainda lhe traria mais pressão.

Outro preconceito que existe é que é todo este problema se deve à falta de oração. A oração pessoal é insubstituível e imprescindível. Mas Jesus Cristo, Filho de Deus, orava e, mesmo assim, foi morto pelo seu povo, porque não era bem o Messias que este esperava e queria. A oração não muda o nosso choque com a realidade, sobretudo porque temos mais limitações humanas que Jesus Cristo e, por isso, alguns de nós matamo-nos antes que nos matem.

Para mim há dois aspetos centrais para ultrapassar esta questão. O primeiro é a aceitação do outro como ele é. O clérigo não de ter mais qualidades humanas que qualquer outra pessoa. Jesus Cristo não escolheu os discípulos pela sua simpatia, inteligência, empatia. Aliás, a figura de Pedro não me é muito afável, parecendo alguém com um comportamento bastante primário. No entanto, vai ser o primeiro chefe da Igreja. Por isso, iniciativas como as de um grupo de pessoas que fez uma subscrição sobre o perfil desejado para o novo patriarca de Lisboa, só prejudicam o clérigo que vier a assumir esse encargo e missão. Estará sempre sob um cutelo, não sabendo se corresponde, ou não, ao desejo desses. Pode ter sido com boa intenção, mas é uma forma de pressão psicológica, para além de muito pouco cristã, completamente imoral e mentalmente nociva. Não sei se alguém criado pela Inteligência Artificial conseguiria ter todas aquelas qualidades e características, quanto mais um ser humano clérigo. O futuro patriarca nunca terá o perfil adequado e desejado por todos os cristãos católicos de Lisboa.

Vivemos numa época de poucas vocações consagradas. Para além disso, o episcopado e, até as paróquias mais tradicionais e conhecidas, estão longe de ser lugares apetecíveis para os clérigos, devido, precisamente, a esta pressão e exposição pública face às espectativas. Os poucos que o desejam, ou são inconscientes, ou nitidamente não estão devidamente cientes da missão que os espera. Por isso, todo o Povo de Deus tem de saber aceitar os poucos clérigos que fazem parte de si como seres humanos idênticos a si, com os seus defeitos e sensibilidades, o seu temperamento e os seus gostos. Os discípulos de Jesus Cristo não eram todos iguais. Por exemplo, penso que Natanael, com toda a sua sinceridade e transparência, não teria muita paciência para a aturar Judas, com a sua hipocrisia, ou até o João, com a sua poesia e romantismo. Mas viveram lado a lado, ajudando a construir o legado de Cristo.

O segundo aspeto, mas provavelmente até o mais importante, é a necessidade de nós, clérigos, nos preocuparmos com o essencial e específico do nosso ministério. É certo que terminei o meu curso de Teologia e o seminário há quase vinte anos, mas parece-me que a formação não se alterou muito ao longo deste tempo. Assim, afirmo que nunca estudei nenhuma disciplina sobre arranjos florais, que me tenha preparado para saber que tipo de flores são boas para a decoração das igrejas! Para mim, uma igreja bem decorada é aquela onde se vê a beleza do edifício. E este é apenas um exemplo daquilo que nos sobrecarrega no dia-a-dia. Por isso, penso que os Párocos não se devem centrar neste tipo de temas e entrar em discussões sobre estas e outras miudezas. Não é específico do seu ministério. Haverá, certamente, algumas pessoas na paróquia que o passam fazer e orientar, porque têm um gosto e vocação específico para isso.

Afirmo, igualmente, que nunca estudei gestão de empresas. Por isso, penso que um Padre, ou Bispo, não devem preocupar-se com a gestão de IPSS’s, que são maiores que muitas empresas e que, tantas vezes, estão a substituir o Estado na assistência aos idosos, crianças e necessitados. Para isso, deve haver pessoas que, devidamente remuneradas e devidamente formadas, se preocupem com essa gestão.

Afirmo que um padre e bispo não são juízes de discussões entre clérigos, consagrados e leigos. Jesus Cristo perguntou quem O tinha feito juiz da discussão entre dois irmãos, porque não seria esse o seu papel. E, por isso, nós clérigos também não temos de decidir quem tem razão. Até porque, na maior parte das vezes, o clérigo juiz muda de lugar e as duas outras partes permanecem no mesmo sítio e acabam por se entender, às vezes manifestando-se, até, contra o clérigo, a quem, outrora, transformaram em juiz.

É urgente criar plataformas de sinodalidade e de descentralização dos aspetos eclesiais, para que nós, clérigos, possamos dedicar-nos ao que é específico da nossa missão: a Evangelização e mostrar o Amor de Deus a todos. Podia mencionar muitos mais aspetos. Podia continuar este pensamento. Mas o que importa mesmo é que tenhamos a consciência de que agora somos pouco padres e bispos e, se continuarmos assim, com este ritmo e com esta pressão e exigência, cada vez seremos menos.

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Agência ECCLESIA

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