Mensagem aos leigos do Porto

Homilia na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, especialmente dirigida ao laicado diocesano Reverendíssimos Senhores e amados irmãos Celebramos com renovada alegria a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, que com a sua realeza nos salva a nós e salva o mundo. Sim, irmãos, com o Apóstolo, “damos graças a Deus Pai, que nos fez dignos de tomar parte na herança dos santos, na luz divina. Ele nos libertou do poder das trevas e nos transferiu para o reino do seu Filho muito amado, no qual temos a redenção, o perdão dos pecados”. “Libertou-nos do poder das trevas”: por isso mesmo viemos aqui, a esta catedral de nós todos, para nos reunirmos em torno da Cruz do Senhor e da sagrada Mesa onde recebemos o dom da sua vida entregue por nós. Por isso mesmo, que nos rasga clarões de luz e de esperança, neste modo único e inaudito de Deus se abeirar de nós, aí onde precisamos de ver melhor e mais longe, enxergando um sentido novo e consistente para a vida de todos e de cada um, em qualquer momento dela, em toda a contradição que seja. Que convincente se torna, que mobilizador até, olhar tudo e todos à luz da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, nossa glória verdadeira e única! Sucediam-se e sucedem-se outras propostas e mil seduções, cuja aparente oferta esconde sempre um novo domínio alheio e certo cativeiro nosso. Vêm daqueles tristes reinos e falsas glórias que o próprio Jesus rejeitou nas tentações primevas. Sejam de teres e haveres, sejam de grandezas e fumos, sejam de aparências e devaneios… É outro o reino que Cristo nos oferece no trono da Cruz: o da constante companhia nas penas e dores da humanidade inteira, não se descolando do madeiro em que as sofre, mas ressuscitando precisamente a partir daí, e incluindo nessa mesma ressurreição e vida nova a quantos o reconhecem e aceitam qual “Deus connosco”, compaixão de Deus e salvação do mundo. É o nosso caso agora, felicíssimo caso. É mesmo a diferença que nos faz cristãos. Erguia-se a cruz no alto do Calvário. Não faltava quem zombasse: “Salvou os outros: salve-Se a Si mesmo, se é o Messias de Deus, o Eleito… Se és o rei dos Judeus, salva-Te a Ti mesmo…”. Ali a seu lado, crucificados também, estavam dois malfeitores. Um deles engrossava o coro de escárnios e desprezos: “Não és Tu o Messias? Salva-Te a Ti mesmo e a nós também…”. Até aqui eram eles. Agora, entramos nós, repetindo com o segundo, repreendendo o primeiro e repleto de lucidez e esperança: “‘Não temes a Deus, tu que sofres o mesmo suplício? Quanto a nós, fez-se justiça, pois recebemos o castigo das nossas más acções. Mas Ele nada praticou de condenável’. E acrescentou: ‘Jesus, lembra-Te de mim, quando vieres com a Tua realeza’”. Para ouvir o que nós desejamos ardentemente ouvir também: “Jesus respondeu-lhe: ‘Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso’”. Esta a diferença, deixai-me repetir. A que nos faz olhar para Cristo na Cruz ainda mais e melhor do que olharíamos para qualquer rei num trono. Porque o aceitamos como auto-doação do próprio Deus, não de fora mas inteiramente por dentro da nossa humanidade comum. Nesta mesmo, onde, apesar de tudo e até apesar de nós, Deus nos cria e restaura, em compaixão autêntica e proximidade absoluta. Sim, na sua Cruz, brilha “a imagem de Deus invisível” que quis ser também “o Primogénito de toda a criatura”, ou seja, se fez um de nós, precisamente o primeiro no regresso e progresso na comunhão com Deus Pai, na vida do Espírito. Assim o aceitamos, assim o celebramos, assim o anunciamos. Porque graças são encargos, e outras tantas obrigações de oferta e partilha. Se aceitamos a realeza de Cristo, no trono da Cruz, compreendemos também que a sua substância é serviço e doação da vida, para que esta cresça no mundo e chegue onde quer chegar através das nossas vidas, com Ele identificadas, só e cada vez mais. Num magnífico trecho, felizmente escolhido para o Ofício de Leitura desta solenidade, Orígenes, autor do terceiro século, escreve-nos assim: “quando alguém implora a vinda do reino de Deus, o que pede realmente é que o reino de Deus, que está dentro de si, se desenvolva, frutifique e chegue à sua plenitude”. Reino que o prefácio desta Missa descreve numa série de itens que são outros tantos pontos de convicção e empenhamento, por necessariamente nos incluírem a nós, em dimensão apostólica e missão no mundo: “reino eterno e universal; reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e da paz”. Deste reino e só dele é a Cruz de Cristo activação e símbolo. Por isso a gostamos de olhar e contemplar, tirando dela repetidas lições e muitas luzes. Com ela entendemos Deus no seu amor, com ela nos entendemos a nós em decorrente partilha. Por isso a levantamos, à Cruz, nos nossos templos e casas. E também, em cidadania justamente partilhada com crentes e não crentes, gostamos de ver a Cruz em qualquer espaço adequado, mesmo que público, por a reconhecermos como altíssimo sinal de tantas vidas abnegadas ao serviço do próximo. No nosso caso português ela, a Cruz de Cristo, foi até o mais alto símbolo do que fizemos de melhor, na descoberta do mundo e na construção duma humanidade comum. E nem eventuais contrafacções que se tenham verificado da nossa parte, em episódios que a tenham contraditado e ao seu humaníssimo conteúdo, poderiam afastá-la da sociedade e da cultura, porque foi exactamente o regresso à Cruz e aos sentimentos de Cristo que constantemente nos corrigiu e mais longe nos transportou e transporta, como cidadania amável e solidariedade universal. Outra aplicação, amados fiéis leigos da Diocese do Porto, havemos de tirar da Cruz e do reino de Cristo. E é ela a de que o vosso lugar concreto, na comunidade cristã e na sociedade em que vos integrais segundo a vossa vocação secular, tão específica como oportuna e urgente, da família à profissão, da cultura à vida cívica e pública, só à luz desta solenidade se entende e qualifica. Caros fiéis leigos: precisamos – e ainda precisaremos mais, decerto – da vossa colaboração na vida “interna” da Igreja, para sustentar as comunidades paroquiais, que têm poucos presbíteros e diáconos ao seu serviço. Situação que se poderá agravar nos próximos anos, apesar da muita abnegação pastoral de que o nosso clero dá bastas provas. Pedimos e pediremos mais ao “Senhor da messe”, muitos e santos ministros ordenados, como pedimos também vocações religiosas e de especial consagração. Mas teremos de contar com a colaboração de muitos de vós, caríssimos leigos, nos diversos sectores da pastoral, da catequese à liturgia, da liturgia à acção caritativa. Havemos de promover ainda mais e formar persistentemente muitos de vós para os ministérios e serviços que a Igreja vos pode e deve conferir, dentro do que as normas canónicas e pastorais contemplam: leitores, catequistas e professores de moral e religião; ministrantes do altar e ministros extraordinários da comunhão; moderadores de assembleias dominicais na ausência – ou antes aguardando! – presbítero e acompanhantes de funerais; corresponsáveis no sector sócio-caritativo e membros das comissões fabriqueiras, etc. Contamos convosco, dentro daquele espírito que o Papa Bento XVI referiu em Roma, em recente discurso aos Bispos portugueses: “Esta eclesiologia de comunhão na senda do Concílio, à qual a Igreja portuguesa se sente particularmente interpelada na sequência do Grande Jubileu, é, meus amados Irmãos, a rota certa a seguir, sem perder de vista eventuais escolhos, tais como o horizontalismo na sua fonte, a democratização na atribuição dos ministérios sacramentais, a equiparação entre a Ordem conferida e serviços emergentes, a discussão sobre qual dos membros da comunidade seja o primeiro (inútil discutir, pois o Senhor Jesus já decidiu que é o último)”. Sim, caros irmãos leigos, tais escolhos evitaremos à luz da Cruz de Cristo. E assim mesmo avançaremos numa corresponsabilidade cada vez maior, ao serviço da comunidade cristã e da sua missão no mundo. Porque a urgência da nova evangelização nos impele a aumentarmos a projecção missionária das nossas comunidades, para levar a cada sector específico da sociedade e da cultura a verdade, a beleza e a bondade divinas que refulgem em Cristo. Como nos dizia também o Papa: “Tais questões [internas] não nos podem distrair da verdadeira missão da Igreja: esta não deve falar primariamente de si mesma, mas de Deus”. E estou certo de que será o “novo ardor” no testemunho e anúncio do reino de Cristo que nos fará encontrar também os “novos métodos e a nova expressão” que este tempo requer. A vontade missionária e apostólica ressurgente nas paróquias, associações e movimentos da Diocese dar-nos-á ainda dois excelentes frutos: ultrapassará os contratempos que sempre surgem quando as comunidades vivem demasiado concentradas em si mesmas e despontará aquelas vocações – ordenadas, religiosas ou laicais – que o Espírito só gera em ambiente de missão. Conto convosco, amados irmãos: de Deus e do seu reino autêntico falarão as vossas vidas! Sé do Porto, 25 de Novembro de 2007 + Manuel Clemente, Bispo do Porto

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