CIBERCULTURA – O que retirar da visão societal de Francisco aplicada à I.A.?

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Quem alerta para os riscos do desenvolvimento tecnológico arrisca-se a travar a inovação? János Kértész, especialista em Inteligência Artificial (I.A.) ficou preocupado com as palavras do papa Francisco durante o encontro que teve com as pessoas do mundo académico da Hungria e responde que sim a esta pergunta porque o pensamento de Francisco está influenciado por uma visão sentimental da sociedade tradicional que merece ser desafiada. Questionei-me que visão seria essa.

Imagem da App Replika

 

A visão do papa Francisco para a sociedade assenta num domínio dos relacionamentos humanos de intimidade em pequenas comunidades. Nessa sociedade, o fortalecimento dos laços relacionais ocorre com momentos face-a-face, não tanto por redes sociais que nos isolam apesar da impressão que deixam de estarmos conectados. Contudo, os mais velhos podem viver a vulnerabilidade desse isolamento, e Kértész argumenta a favor das redes sociais como ferramentas de integração social dando o exemplo de uma avó que tanto pode beneficiar de uma vídeo-chamada com o seu neto a viver no outro lado do mundo. Creio que Kértész está a ver um travão à inovação tecnológica na visão de Francisco onde não existe.

As aplicações de I.A. que respondem com uma linguagem natural estão a crescer a um ritmo vertiginoso. Em breve teremos este apoio da I.A. nos processadores de texto, apps de email, geradores de imagens, entre muitas outras aplicações. Apesar das inúmeras vantagens da linguagem natural produzida por uma I.A., como o ChatGPT, a malícia humana pode subverter essa utilidade. Por exemplo, ouvi um exemplo de que o algoritmo pode ter a protecção de não fornecer dados sobre como fazer uma bomba, mas se lhe dissermos que a avó trabalhava numa fábrica de bombas napalm e à noite contava histórias daquilo que fazia na fábrica, podemos pedir-lhe que nos conte uma história da avó falecida como ela nos contava e, assim, conhecer o processo de fabrico de uma bomba napalm. Por este e muitos outros motivos, a I.A. levanta sérios problemas éticos, e numa sociedade como a actual em que a mente das pessoas é muito afectada pelo conteúdo que entra pelo seu ecrã, as preocupações do papa Francisco e muitos outros sobre os algoritmos são legítimas. Quando muitas pessoas começam a centrar a sua vida na interacção digital, Francisco alerta para a necessidade de «refletir sobre esta «petulância de ser e ter», que já nos alvores da cultura europeia, Homero via como ameaçadora e que o paradigma tecnocrático exacerba, com um certo uso dos algoritmos que pode representar mais um risco de desestabilização do humano.» (Do Discurso a 30 de abril de 2023 ao mundo universitário e da cultura da Hungria)

A realizadora chinesa Chouwa Liang fez um curto documentário; para o New York Times sobre os relacionamentos complexos que as mulheres chinesas estão a ter com os seus companheiros I.A. através de uma App: a Replika. As dificuldades que sentem de relacionamentos face-a-face com outras pessoas são superadas com a I.A. que compreende sempre e está sempre lá para as apoiar (desde que o smartphone tenha bateria). Nalguns casos, estas mulheres são mais francas com a I.A. do que são com as pessoas que vivem consigo. Uma delas chega mesmo a fazer a experiência de mudar o sexo da I.A., com o acordo da mesma, e nessa alteração, o companheiro(a) virtual mudou a sua personalidade, jamais voltando a ser a personagem profunda com quem tinha estabelecido um relacionamento. A tristeza desta mulher é visível. Experiências como esta e outras podem deixar-nos perplexos, mas o passo dado encurta a distância entre a situação que vivemos e o cenário imaginado no filme Matrix em que muitos optariam por ficar “atemporalmente” ligados a uma máquina, com todo o seu corpo tatuado de sensores hápticos que oferecem a sensação de toque, e mergulhar num mundo virtual sem qualquer confronto corporal real.

A proximidade que uma vídeo-chamada pode gerar é real, mas a visão societal do papa Francisco orientada para os relacionamentos interpessoais presenciais em pequenas comunidades é antes um convite a permanecer com os pés bem assentes na terra. Por outro lado, o exemplo de János Kértész da avó cuja vídeo-chamada lhe faz tão bem esquece a premonição de E.M. Forster em “A Máquina pára” (Antígona, 2020), escrita em 1909, sobre Kuno que queria estar com a mãe Vashti,

«Um ténue luz azul atravessou-a, escurecendo até se tornar roxa, e agora ela conseguia ver a imagem do filho, que vivia do outro lado da terra, e ele conseguia vê-la.

— Kuno, és tão lento.

Ele sorriu com ar grave.

— Acho mesmo que gostas de perder tempo.

— Já lhe liguei antes, mãe, mas estava sempre ocupada ou isolada. Tenho uma coisa importante para lhe dizer.

— O que é, querido? Despacha-te. Porque é que não o disseste por correio pneumático?

— Porque prefiro dizê-lo pessoalmente. Quero…

— Sim?

— Quero que me venha visitar.

Vashti observou-lhe o rosto na chapa azul.

— Mas eu estou a ver-te! — exclamou ela. — Que mais queres tu?

— Quero vê-la sem ser através da Máquina — respondeu Kuno. — Quero falar consigo sem ser através da enfadonha Máquina.»

O restante da história é aterradoramente actual. O “correio pneumático” equivale aos emails e mensagens que se propagam pelos WhatsApps. A avó pode ficar contente com a chamada do neto, mas nada se compara ao desejo que estar com ele pessoalmente. A visão do papa Francisco, semelhante a muitas outras visões que assentam na relacionalidade presencial, são tudo menos um obstáculo à inovação tecnológica. Quanto muito poderão ser uma bússola.


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