Padre Hugo Gonçalves, Diocese de Beja
O Baixo Alentejo vive e respira a piedade popular, traduzida nas inumeráveis procissões, tocada nas ancestrais tradições em torno da Paixão de Cristo, saboreada na gastronomia de cada época, respirada pelas fragrâncias de cada tempo e ouvida na beleza e comoção do cante alentejano que a ninguém deixa indiferente.
Partindo da forma como o Papa Francisco considera e enaltece a piedade popular ao defini-la como um tesouro, então poder-se-á afirmar que o Alentejo é verdadeira e profundamente rico na medida em que não há praticamente mês em que, nalguma paróquia ou lugar destas vastas terras do campo dourado, não haja um festa, uma procissão.
Contrariando um preconceito generalizado sobre o Alentejo, cujas concepções tendem sempre a olhar esta região transtagana como um deserto social e espiritual, a verdade é que a cultura deste povo coloca a fé na dinâmica da sua própria essência, existência e vivência. As diversas festividades (na sua grande maioria de índole religiosa) são sempre lugar de reunião e confraternização das famílias, dos amigos, das comunidades, sendo que também acolhem a diáspora pois muitos são aqueles que tiram dias de férias para regressarem às suas terras de modo a tomarem parte nas celebrações dos seus padroeiros.
Algumas destas festas são romarias a capelas que estão como que perdidas nos campos – para lá vão romando, em jeito de peregrinação, os homens, as mulheres, os jovens e as crianças. Podem nem sempre ir à Missa, mas aquela é festa sagrada, que marca o ritmo do ano, das suas vidas, e estar presente é algo de verdadeiramente importante. Se o tempo ajuda, então montam-se mesas, estendem-se toalhas no chão e, depois da Missa e da procissão, é tempo de comer, de sentar a família, os amigos e de conviver, de recordar com os mais velhos como era antigamente as festas – “era com mais gente; ninguém ia para a praia; a aldeia, a vila tinha muito mais pessoas; em cada casa eram seis, sete”. Recordo aqui algumas festas: a de São Sebastião (que se celebra a 20 Janeiro), em Castro Verde, com a sua tradicional feira e romaria à capela que se encontra nos arrabaldes desta vila; também nesta paróquia, no segundo Domingo do mês de Maio se faz a romaria a cavalo, de charrete (as quais levam os andores) ou mesmo a pé, lá se celebra a Missa e se come no campo e há sempre animação. Em Messejana, no 5º Domingo da Quarema, a que o povo chama de Lázaro, decorre a procissão dos Passos e no 14 de Agosto há romaria à bela capela de N.ª S.ª da Assunção – lá se passa parte do dia, se almoça e convive, se recita o terço e se celebra a Missa, para finalmente à tarde se trazer a imagem de Nossa Senhora até à vila, para ficar na igreja matriz até à festa do dia seguinte. A 8 de Setembro, em Ourique é a romaria ao Santuário de Nossa Senhora da Cola, a festa inicia-se no dia anterior, com feira e música, prolongando-se no dia seguinte, o da festa. Nestas e muitíssimas outras procissões e romarias, que proliferam por todo o Baixo Alentejo, a gastronomia acompanha o ciclo das festas – o cozido de grãos, as sopas de toicinho nos meses de inverno, o jantarinho de chícharos e o ensopado de borrego já na primavera, os grelhados de carne de porco, as sardinhas e carapaus, a sopas frias ou gaspacho, as açordas no verão; nunca falta o bom vinho alentejano, os enchidos caseiros e os queijos, beijados no final por um medronho. As refeições, já a meio ou no seu final, são marcadas pela melodia do cante alentejano, onde todos cantam e onde ninguém é capaz de ficar apenas como espectador, transmitindo entre as gerações a riqueza das letras, das melodias e do sentido espiritual com que se entoa o cante do Alentejo; elas, as músicas, as modas e as suas letras, acompanham o sentido espiritual e litúrgico de cada festividade: melancólicas na Quaresma e Paixão, cheias de alegria e ternura no Natal, no cante ao Menino e nas de Nossa Senhora.
Como já foi dito, muitos olham para o Alentejo como uma terra desértica em vários sentidos, sendo um deles o da fé. É verdade que, muitos dos que vivem por estas terras, não são assíduos aos actos comunitários como noutras zonas, mas esse facto não pode ser interpretado à luz do binómio crente-descrente, dado que circunstâncias históricas servem de chave de leitura para a realidade de hoje. A Diocese de Beja viveu séculos sem Bispo (celebrámos há poucos anos os 250 anos da restauração da Diocese), onde o clero secular era em número reduzido e onde a vida destas populações girava tendencialmente em torno dos diversos conventos que salpicavam esta região. Durante o tempo da monarquia constitucional, mais concretamente com Joaquim António de Aguiar (apelidado de Mata-Frades) como Ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, deu-se uma machadada nos católicos do Baixo Alentejo, com a lei que extinguia os conventos e mosteiros, expropriando tudo o que eram bens da Igreja e deixando sem cura pastoral este povo que destas comunidades religiosas dependia. Posteriormente sucedeu a República, portadora de uma nova perseguição à Igreja e apropriando-se dos poucos bens que restavam do primeiro saque. Os poucos padres seculares que resistiram, tantas vezes isolados e sem fonte de subsistência, foram forçados a escolher entre a obediência ao poder político ou à Igreja e, no caso daqueles que tiveram a coragem de desobedecer à tirania política, restou-lhes muitas vezes viver da esmola dos grandes latifundiários, com todas as consequências nefastas que chegaram até ao pós o 25 de Abril de 1974. Mas no meio de toda esta turbulência, há algo que perdurou e em que nem os promotores deste movimentos políticos conseguiram tocar: a piedade popular, manifesta nas procissões, romarias e no cante, sobressaindo uma grande devoção a Nossa Senhora, a quem carinhosamente os homens chamam de ‘Santinha’. A centralidade do culto mariano, extremamente relacionado com a estrutura matriarcal alentejana, faz com que não se permitam ofensas a Nossa Senhora nestas terras alentejanas e, se porventura alguém o insinua, rapidamente enfrentará a reação de negativa de homens e mulheres dos mais diferentes quadrantes da sociedade e das mais diferentes convicções ideológicas. E, se porventura subsiste alguma dúvida sobre o amor destes homens e mulheres a Santa Maria, então basta ouvir o cante, escutar a letra que brotou de gente simples e tantas vezes iletrada, para compreender que há ainda uma “torcida que fumega” e que aguarda que os pastores a soprem com a suavidade do Espírito e sob a luz do Evangelho.
A piedade popular, as romarias, as procissões, as tradições religiosas e o cante são certamente a porta que poderá conduzir a uma conversão e a um encontro pessoal com o Senhor. Para isso, compete aos pastores e ao laicado descobrir neste tesouro sementes de esperança de uma evangelização adormecida no coração do Alentejo.