“O Espírito do Senhor me ungiu e enviou”
1. Somos hoje convidados a contemplar Jesus que, na Sinagoga de Nazaré, dá início ao seu ministério público. Fá-lo com uma “reivindicação” única: “O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Ele me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres. […] Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura”.
Trata-se da reivindicação de uma identidade, mas também de uma missão, recebida desde toda a eternidade: “anunciar a Boa Nova aos pobres”. Esta missão é, por isso, uma realidade irrecusável porque constitutiva do próprio ser de Jesus: Ele é o evangelizador porque é o Filho, o Ungido que tem por tarefa mostrar, tornar presente o Pai.
Jesus é o Ungido. A sua identidade, a sua vida não pode ser narrada de outra forma: o Espírito de Deus envolveu-O, tomou conta dele do exterior até ao mais íntimo do seu ser, sem nunca destruir — bem pelo contrario! — a sua liberdade. Desde a eternidade, antes de toda a criação, o Filho é Aquele em quem o Espírito repousa. Assim, Ele não é apenas “Ungido” por alguns momentos ou para algumas tarefas, como no caso dos profetas ou dos reis do Antigo Testamento. Tudo quanto Ele é, desde a eternidade, se pode resumir nesta “posse”: desde sempre Ele é do Espírito, porque desde sempre Ele é do Pai; porque desde sempre Ele mostra o Pai.
Por isso, Jesus é, também, o “enviado”. Não nos pode, portanto, espantar que, depois de 30 anos vividos no segredo familiar, Jesus não possa mais permanecer em Nazaré. O mesmo Espírito que faz dele o Ungido, também o faz deixar a sua casa e a sua terra. O Pai quer que todos conheçam uma “feliz notícia”: o Reinado de Deus está próximo; está, doravante, presente no meio da história. Jesus, o Cristo, o Ungido, é o centro da história.
2. Estas mesmas duas realidades, unidas dinamicamente — quer dizer: em constante diálogo e mútua implicação — constituem a nossa identidade sacerdotal. O sacerdócio que vivemos não é nosso mas de Jesus, o único Sacerdote. É a Ele que queremos dar espaço; é a Ele que queremos servir, sendo Sua presença no meio deste povo que nos está confiado, não por nossa iniciativa mas porque a isso nos sentimos chamados e a Igreja discerniu e confirmou essa vocação. A partir desse momento, é o único sacerdócio de Jesus que dá forma ao nosso existir, à nossa liberdade e à nossa felicidade.
Também de nós, com efeito, o Espírito do Senhor tomou posse e nos enviou para hoje anunciarmos a proximidade de Deus a quantos nos encontrarem. Esta é, também para nós, uma missão irrecusável. Não nos belisca em nada a liberdade e o ser — antes nos torna verdadeiramente livres porque fiéis ao Deus da vida. Como poderíamos querer estar perante Deus se tivéssemos recusado o seu chamamento e a sua missão? Somos Padres, hoje, porque o Espírito do Senhor nos ungiu e enviou.
O nosso tempo, encerrado na soberba de quem pensa tudo conhecer e de tudo ser capaz, necessita, com efeito, de se deixar surpreender pela presença divina que lhe abre um novo horizonte, o faz olhar o infinito e sentir-se atraído por esse oceano imenso da vida com Deus. Cada ser humano necessita de tomar consciência daquele que o criou e, sobretudo, daquele que constitui o seu destino, a meta da sua vida. Somos Padres porque o mundo necessita da beleza, da verdade e da unidade que apenas Deus pode oferecer. Somos Padres porque hoje, mais do que nunca, o mundo precisa de conhecer Deus.
Em Jesus, Deus faz-se visível. Podemos encontrá-lo. Em Jesus, a vida humana percebe-se capaz da vida divina. Em Jesus percebemos a dignidade maior e única de cada pessoa humana. Em Jesus percebemos que o amor não é uma simples palavra, um sonho ou um desejo, mas um dom, uma entrega até ao fim. Em Jesus percebemos Deus ao nosso lado. Em Jesus percebemos Deus que acusa e denuncia o pecado mas tem sempre uma palavra de misericórdia e de perdão para o pecador, qualquer que ele seja. Jesus alimenta-nos com a Eucaristia, no caminho para a vida eterna. Somos Padres porque hoje o mundo necessita, mais do que nunca, de Jesus Cristo, o Deus feito homem.
Esta é a maravilha da Igreja, nossa mãe: é nela — animada, unida pelo Espírito Santo — que experimentamos diariamente a presença de Jesus. É ela que nos explica as Escrituras; é ela que reparte para todos o Pão da vida. Constituída por pecadores, sempre necessitados de purificação e de conversão, na Igreja, povo dos baptizados, percebemos como a santidade de Deus é a vocação de tudo o ser humano. Vêmo-lo claramente, ao nos percebermos rodeados pelos exemplos e pela intercessão dos seus ilustres filhos, os santos (que são também os membros ilustres da humanidade). E como é bom, reconfortante e encorajante para a nossa vida, percebermos que podemos ser santos, que podemos e devemos viver, já agora, da caridade que é o Espírito de Deus a habitar em nós! Somos Padres porque, mais do que nunca, o mundo necessita da Igreja!
Trazemos em vasos de barro o tesouro de uma verdadeira boa notícia, como outrora reconhecia o Apóstolo S. Paulo. Sim, somos vasos de argila, frágeis, pecadores. Mas o tesouro do Evangelho que trazemos connosco não deixa de ser precioso e necessário para todos. Não somos Padres para nós ou para nossa mera satisfação.
Sim, é verdade: gostamos de ser Padres. Esse serviço a Deus, à Igreja e a toda a humanidade torna-nos felizes, livres. Que melhor missão pode existir que esta de ser presença de Jesus, que a todos quer anunciar o Evangelho, redimir, libertar, e para com todos quer usar de misericórdia? Que outra melhor missão pode existir que esta de perdoar os pecados em nome de Deus? Que outra melhor missão pode existir que esta de celebrar a Eucaristia, em que o Senhor se torna alimento para o mundo? E, no entanto, somos Padres não para nossa mera satisfação mas porque o mundo necessita: necessita da presença de Deus; necessita do Salvador que é Jesus de Nazaré; necessita de viver cada vez mais em Igreja, em comunhão de fraterna caridade.
“O Espírito do Senhor me ungiu para anunciar a Noa Nova”. Jesus teve a ousadia de dizer na sinagoga de Cafarnaúm: “cumpriu-se hoje esta palavra da Escritura”. Nesta sua mesma ousadia (e nela apenas!), tenhamos também nós a coragem de deixar que hoje, em cada um, para o bem da Igreja e do mundo, se cumpra essa mesma palavra da Escritura.
Como sinal dessa disponibilidade que é resposta a uma vocação que nos vem de Deus, renovemos agora as promessas que fizemos aquando da nossa ordenação sacerdotal.
Catedral do Funchal, 6 de abril de 2023
D. Nuno Brás, Bispo do Funchal