O Papa dedicou a sua mensagem para a Quaresma 2023 ao processo sinodal em curso na Igreja Católica, pedindo abertura à “novidade”, por parte dos católicos. No início da Semana Santa é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia, o coordenador da Comissão Sinodal da Diocese do Porto
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Diz o Papa: “A tradição é fonte de inspiração para procurar estradas novas, evitando as contrapostas tentações do imobilismo e da experimentação improvisada”. Da sua experiência – quer paroquial, quer de preparação sinodal – a Igreja tem feito esse esforço de procura de novas estradas, ou os velhos problemas estão a condicionar essa busca?
As duas coisas, provavelmente. Procuramos sempre encontrar novos caminhos, se calhar muitas vezes fazemo-lo prisioneiros do passado. E prisioneiros também pode significar respeitadores daquilo que é o património que recebemos.
Nisto o exemplo é sempre tirado do Evangelho de São Mateus: o pai de família que, do seu tesouro, tira coisas novas e coisas velhas. Não vivemos só voltados para o que já foi; também não vivemos à espera da próxima moda, mas vivemos abertos à novidade que o espírito nos vai trazendo, na escuta e no conhecimento, no respeito por aquilo que recebemos. E eu creio que essa é sempre a atitude da Igreja.
Esta mensagem do Papa tem uma imagem central, a imagem da subida do Monte Tabor. E o Papa reconhece que este caminho requer esforço, requer sacrifício durante a caminhada sinodal. Tem notado esse esforço também?
A imagem do caminho é muito rica, fala de esforço, sacrifício, concentração, e isso quem já caminhou na montanha sabe bem o que isto significa. A Igreja, como um todo, tem feito esse esforço. Depois no concreto de cada comunidade há uma grande variação de passo, de esforço, como numa caminhada com um grande grupo: se caminhamos sozinhos, vamos ao nosso passo. Quando vamos com um grande grupo, vamos ao passo de todos, aqueles que vão na frente andam à procura de caminhos novos e às vezes perdem-se….
E não há um risco de aqueles que vão à frente depois terem de esperar demasiado?
Mas também há o risco – estou a pensar nalgumas caminhadas de montanha – de se meterem por caminhos completamente insensatos porque vão na loucura, na sofreguidão de caminhar. O conjunto é que nos define o caminho, a comunhão de todos, esta conjugação dos que vão mais lentos com aqueles que têm um passo mais rápido.
É aqui que encontramos o caminho sinodal, o caminho de todos, o caminhar juntos. Não faria sentido obrigarmos toda a gente ir ao passo dos da frente, porque iriamos ter pesos mortos. Mas também não faria sentido obrigarmos todos a ir ao passo do último.
Estou a falar da imagem da caminhada da montanha, mas facilmente transpomos isso para a vida da Igreja.
Mas é preciso encontrar o ritmo, certo?
Da minha experiência, é preciso haver quem faça aquele trabalho do discernimento. O trabalho de discernir o caminho a fazer e o caminho que pode ser feito por todos. Mesmo que seja preciso esperar um bocadinho, que seja preciso de vez em quando moderar alguns ímpetos que podem levar a becos sem saída, também. Há de haver aqui um trabalho de discernimento e esse é o trabalho do Sínodo, este discernir juntos o caminho que é possível para todos.
Falando desse discernimento, o Papa decidiu prolongar o debate até 2024. Devemos entender esta decisão pela necessidade de haver mais debate ou pela importância de se trabalhar na procura de um maior consenso?
Eu creio que, desde o início do processo sinodal, para este Sínodo de 2023 e agora 2024 começamos a perceber que aquilo que se propunha pedia tempo. Aquilo que o Sínodo se propõe pede tempo. Desde logo nas comunidades, e foi necessário alargar os primeiros prazos de resposta. Creio que temos todos vindo a perceber que o diálogo é fundamental, dar tempo ao diálogo é fundamental. Por exemplo, na fase continental, fez-se voltar as perguntas às dioceses – nós, aqui no Porto, fizemos voltar às comunidades locais, ainda que com poucas respostas, mas com uma participação interessante. Todo este processo requer tempo, mas o Sínodo é isto mesmo, sem isto perdemos o Sínodo. Podemos fazer um documento final muito eficaz, mas perdemos o essencial que é esta interação de todos.
Essa interação tem riscos, vou dizer assim, e assumindo a palavra e que tem a ver com aquilo que tem sido muito propalado em termos de uma certa divisão na Igreja. Sobretudo e faço-lhe essa pergunta, se sente aquilo que popularmente é dito como uma divisão entre progressistas e conservadores?
Eu creio que a Igreja se faz com este caminho multifacetado. Perder alguma das nossas tendências, vamos dizer assim, sempre nos empobrece. E todos temos de aprender uns com os outros. A questão é quando nos extremamos, o problema surge quando nos extremamos. Quando a ideia de progresso se transforma em progressismo, significa que estamos sempre à frente, ou seja, no novo, e nada do que está para trás vale. E isto é mentira.
Do mesmo modo, o tradicionalismo. Se se volta simplesmente sobre o passado, sem qualquer abertura aquilo que surge também é um erro. Esses extremos estão um bocadinho fora da comunhão ou pelo menos na margem.
Agora a Igreja será sempre esta sinfonia de vozes multifacetadas, mais harmoniosa ou menos, mas é isto que nós somos como Igreja.
É nesse sentido que se se inserem os apelos do Papa à unidade, na diversidade e, sobretudo, as críticas a quem transforma estas divisões em ideologias, e procuram um cristianismo de esquerda direita?
Claro. Ou comunidades de puros, não é? Seja num sentido, seja no outro. Isso são comunidades sectárias, a Igreja não é isso. A Igreja é esta casa de comunhão, de portas abertas. Temos insistido nisso a partir da imagem, primeiro do átrio dos gentios e depois da imagem da tenda. O átrio dos Gentios, o pátio dos Gentios alargou-se para dentro do espaço eclesial, ou tem-se querido alargar. Claro que isto nos coloca algumas questões de identidade, como cristãos. Temos de ter uma clareza de identidade muito grande para podermos acolher a diversidade, sem nos diluirmos, mas esta é a nossa condição no mundo.
Voltando um pouco a Mensagem, ela pede atenção particular aos rostos e vicissitudes daqueles que precisam de ajuda. E nós estamos a viver um tempo de enorme dificuldade, sobretudo decorrente. Vamos falar dos valores da inflação. Ao nível paroquial, sente muitos problemas decorrentes desta Escalada de preços?
Eu vivo numa zona da cidade [paróquia do Santíssimo Sacramento, junto à Avenida da Boavista], que conhece alguns extremos, do ponto de vista económico e das famílias. Mas não temos muito o extremo mais difícil, de rendimentos mais baixos. Daí que nem sempre sentimos, ou sentimos muito pontualmente, que algumas famílias estejam em dificuldade. Vamos encontrando uma grande dificuldade na manutenção dos nossos Centros Sociais Paroquiais, por exemplo, onde as despesas de alimentação são acrescidas, onde o esforço de equilíbrio económico de repente se viu alterado com toda uma escalada de preços. Isso sentimos. Isso sentimos.
Depois, do ponto de vista das famílias, sim, ajudamos muitas famílias, mas não sinto que neste momento ajudemos mais do que antes. Talvez sejamos nós que não estamos a fazer o nosso trabalho. Não faço ideia. Temos estado atentos a isso e disponíveis para novos projetos, mas ali naquela zona da cidade não temos sentido isso.
Tendo em atenção a zona da cidade, provavelmente os problemas que se vão mostrar mais serão os relacionados com a habitação e com o acesso à habitação?
Sim, sim. Aliás, é por isso que não sentimos outros problemas sociais, porque a habitação é de tal modo cara naquela zona, os preços são tão elevados, que há toda uma parte da população que está afastada daquela malha social. E com o crescendo do alojamento turístico, mesmo os habitantes das tradicionais “ilhas”, que há por ali, mesmo esses espaços foram ocupados por alojamento turístico, muitos deles. Portanto, alterou a demografia daquela zona da cidade do Porto.
Vou propor o regresso ao tema com que iniciamos esta conversa, o processo sinodal. A síntese nacional, da Conferência Episcopal Portuguesa, abordava a questão dos abusos sexuais de menores de uma forma muito breve. Os acontecimentos das últimas semanas obrigam a nova reflexão?
A nossa síntese diocesana também tinha referências muito ligeiras à questão dos abusos na Igreja. As comunidades manifestaram consciência do problema, consciência de que era preciso intervir com celeridade, com trans transparência. Esta consciência estava presente, mas não se tinha tornado esta questão urgente, a questão do dia. Eu creio que todo este processo, mesmo a constituição de uma Comissão Independente, a receção dos resultados do trabalho da Comissão – tem de ser uma receção criticamente pensada – mesmo isso, parte de um caminho sinodal da Igreja. É a escuta, trabalho da Comissão Independente chamou-se ‘dar voz ao silêncio’ e isto é parte do processo sinodal, parte essencial: ouvir para depois podermos criar caminhos, uns mais visíveis, outros mais discretos; uns mais imediatos, outros a médio longo.
E esse processo de resposta e reconstrução tem de ser necessariamente um processo sinodal?
Creio que é fundamental ouvir de novo as comunidades. Em muitas circunstâncias encontramos algum embaraço, por custa falar, dói falar do tema, envergonha-nos, deixa-nos numa situação de desconforto. Temos de vencer isso, mesmo nos grupos de escuta sinodais, locais, para que todas as comunidades encontrem caminhos, manuais de procedimento. É bom que encontremos juntos como Igreja, que que funcionamos todos a uma só voz, mas depois isso tem de ser trabalhado localmente e adaptado a cada circunstância. E isso é um processo sinodal, evidentemente.
Teme que esta crise possa afastar os habitantes das “periferias” que tinham visto um sinal de esperança na abertura do processo sinodal? Por exemplo, não houve sintonia na resposta, ao nível da Igreja, ao nível da própria Conferência Episcopal?
A possibilidade de alguma dessintonia parece imediatamente negativa, mas se calhar é sinal do caminho que temos para fazer. Ou seja, é eventualmente mais verdadeira do que aparecermos todos a uma só voz, politicamente corretos, e acharmos que já encontramos a solução. Este é um bom modo de perceber que ainda temos caminho para fazer. Não podemos descansar do que há para fazer.
E esta crise pode afastar os habitantes das “periferias” da Igreja?
Temo que sim, temos que possa criar, pelo menos neste momento, uma má imagem, uma imagem difícil. Também espero, tenho esta esperança de que, com algum prazo de trabalho, possamos vencer isso e sair melhor da crise, deste momento difícil. Todos esperamos isso, mas temos de trabalhar.
Um dos temas em destaque, na assembleia sinodal europeia, foi a do ministério ordenado – citando até a proposta portuguesa de estudar a ordenação presbiteral de homens casados. Em vésperas de Quinta-feira Santa, dia da instituição do sacerdócio, é necessário aprofundar esta reflexão sobre o ministério de liderança nas comunidades católicas?
Sim. Uma das notas fortes da resposta à consulta sinodal passava por esta questão dos ministérios alargados, a homens casados ou ao casamento dos ministros, que são coisas diferentes, ou ao ministério ordenado de mulheres. Essas questões surgiram, mas surgiram sempre com alguma controvérsia, ou seja, mostrando que há caminho a fazer, temos de discutir mais sobre o assunto, conversar muito mais, informar-nos mais. Quando dizemos “ordenação de homens casados”, o que é que isso significa? Porque, às vezes, dizemo-lo simplesmente, mas depois não tiramos as consequências. E é preciso trabalhar isso.
Ao mesmo tempo, as respostas insistiam muito na necessidade de melhorar a formação sacerdotal. Há um grande apreço pelos sacerdotes, mas há também uma grande consciência de que a formação tem de melhorar, tem de crescer. Esse é um esforço que vem sendo feito, ao longo de muito tempo, mas que, se calhar, ainda tem de dar passos decisivos.
O que não pode continuar a acontecer é haver tanto desconhecimento da vida dos presbíteros, dos dos diáconos, dos bispos, do ponto de vista das comunidades. Quer dizer, as pessoas têm de conhecer melhor, têm de nos conhecer melhor, não podemos ser tão misteriosos.
Mas esse é umo trabalho que tem de ser feito pelos párocos, os diáconos e os bispos ou exige também esforço por parte dos fiéis?
Eu creio que é de todos, mas, nós também temos de ter um bocadinho mais de de esforço. É um esforço global de transparência, a palavra transparência tem de atravessar a Igreja toda, também nisto, também nas questões do ministério ordenado. Muitas vezes parece um tanto misterioso, tudo isto.
A própria forma como, atualmente, está pensada a vocação sacerdotal, por exemplo, tem o seu quê de mistério e cria ideia de um certo privilégio…
Certo. Nunca perderá esse caráter de mistério, senão transforma-se num funcionalismo, rapidamente. Tem de o manter, mas isso não significa que depois, no concreto da vida dos presbíteros, na sua humanidade, sejam misteriosos para as pessoas. A vocação sacerdotal, enquanto a entendermos assim, como vocação e como vocação a um ministério ordenado, um sacramento, tem sempre este caráter de mistério. Mas, depois, a vida dos presbíteros tem de ser muito mais próxima das pessoas, mais conhecida: o modo como vivem, de todos os pontos de vista, do económico à oração, tudo tem de ser bem mais conhecido.
A Páscoa deste ano vai marcar um regresso às tradições, já sem os limites impostos pela pandemia, nos últimos anos. É também uma oportunidade de afirmação pública da fé, num contexto difícil e de desconfiança, face à Igreja?
Há manifestações públicas – estou a pensar aqui nas visitas pascais, o tradicional Compasso, no nosso contexto -, que é difícil fazer regressar por muitas razões.
Sobretudo nos grandes centros.
Sobretudo nos grandes centros, a começar pela disponibilidade de voluntários para o fazer. Tenho estado a trabalhar, no concreto da minha paróquia, nesse aspeto e não é fácil. Ao mesmo tempo, aqui uma necessidade – não sei se é para fora -de algum ânimo, desta alegria pascal, não esconder a alegria da Páscoa. Que todo este sofrimento que, como Igreja, temos vivido, não esconda a alegria da Páscoa: é aqui que a alegria da Páscoa acontece, não é na ausência de sofrimento, na ausência de de penitência, de necessidade de transformação e de conversão. A Páscoa acontece quando precisamos de conversão e dizemos que Cristo ressuscitou.
E, desse ponto de vista, a exteriorização será importante?
Faz todo sentido. São atos, se calhar temos de reinventar algumas coisas. Com a comunidade da paróquia tenho vindo a dizer isto: se calhar algumas coisas temos de as recriar, mas estamos disponíveis para isso. Vamos conversar, vamos fazê-lo com toda a alegria que nos vem da fé, não vem simplesmente da nossa humanidade, vem de tudo o resto que nós celebramos.