José Santos Cabral, Diocese de Coimbra
Conhecido o relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal, um abalo telúrico percorreu a nossa consciência e, num ápice, despertámos para uma realidade lancinante, oculta durante cerca de setenta anos.
Na génese da criação da Comissão encontra-se a decisão da Conferência Episcopal Portuguesa no final de 2021 que teve presente o impacto mediático causado pela publicação do relatório francês produzido pela Commission indépendante sur les abus sexuels dans l’Église. Curiosamente, a justeza daquela decisão é reconhecida no editorial do jornal espanhol “ EL Pais” de 18 de Fevereiro de 2023 sob o título “El coraje de la Iglesia portuguesa”.
Numa outra vertente, não menos importante, releva a independência e empenho de uma Comissão que, num curto prazo de tempo, e por vezes sem o apoio devido, produziu um relatório completo e fundamentado.
Para todos aqueles cuja fé assenta nos ensinamentos inscritos nos Evangelhos, e acreditam numa Humanidade em que a Fraternidade e a Bondade não são palavras vãs, é de uma violência esmagadora constatar a forma como foram desprotegidos e violados na sua dignidade os mais frágeis – as crianças. O que, essencialmente, está em causa é a quebra de uma relação de confiança.
Importa, porém, precisar que, tal como refere o relatório da Comissão, “A Comissão sempre distinguiu o todo da parte, a árvore da floresta: as pessoas abusadoras, membros da Igreja Católica portuguesa ou seus colaboradores diretos, constituem uma franja reduzida de um grande universo em que a esmagadora maioria dos seus membros nunca praticou crimes desta ordem”.
Impõe-se agora a necessidade de uma reflexão profunda sobre as causas que conduziram a um estado de coisas revelador de uma grave anomia moral. Subjacente ao mesmo, encontra-se o exercício de relações de poder dentro de uma estrutura muitas vezes fechada sobre si própria. Essa opacidade, perante o injustificável, conduziu à ocultação de comportamentos que, para além da censura moral e ética, consubstanciam crimes merecedores de sanção penal.
A procura da verdade, e o reconhecimento da culpa perante as vítimas, constituirá um primeiro passo a que, necessariamente, se devem seguir outros. Só assim será possível o Renascer numa Igreja que, nas palavras do Papa Francisco, se revê na procura da Justiça e da Verdade, voltada para os pequenos e humildes.
A responsabilidade moral e solidária pelos actos praticados importa a assunção pela Igreja de uma obrigação que se consubstancia na reparação dos danos causados às vítimas por alguns dos seus membros, que tiveram no exercício do seu múnus o suporte para os actos indignos praticados.
Este é, também, o tempo de procurar a racionalidade de velhos paradigmas que vão desde o celibato obrigatório até ao papel das mulheres na Igreja, passando pela própria formação nos Seminários. Muito desses dogmas foram moldados no ADN de uma Sociedade que desapareceu.
II
Um segundo ponto que importa precisa é o tema dos números. Na verdade, a Comissão, com base nos 34 depoimentos presenciais e nos 512 depoimentos prestados em inquérito, sob anonimato, estimou a possibilidade de a totalidade de vítimas em Portugal no período em análise ser de, no mínimo, 4.815 pessoas. Nas palavras dos investigadores “um primeiro número refere-se ao número de pessoas vítimas que prestaram testemunho; um segundo, calculado a partir do número de crianças próximas de si que o/a respondente referia saber que eram também abusadas na Igreja Católica, ampliava-o e permitia uma perceção da dimensão da rede de vítimas associadas às primeiras”.
Aceitando-se como método válido a extrapolação efectuada impõe-se a interrogação sobre a sua relevância no universo da população portuguesa. Como referiu um dos elementos da Comissão “Sabemos que a maior parte dos abusos não ocorre nem na Igreja nem nas instituições religiosas mas na família e noutro lugares de socialização das crianças………”.
Procurando equacionar aquela realidade no nosso País, encontramos dados estatísticos dispersos, oscilando entre os 9074 registos de denúncias por abuso sexual de menores na última década constante das estatísticas do Ministério da Justiça até à informação da Polícia Judiciária de que registou cerca de 700 investigações a crimes sexuais contra menores no primeiro trimestre de 2022, tendo sido identificadas 497 novas vítimas neste período. Nas palavras de um responsável daquela Polícia em conferência realizada recentemente “Se quisermos fazer médias, temos 5,2 novas vítimas por dia, o que significa a cada 4-5 horas por dia, o que significa que quando chegarmos ao fim desta conferência teremos tido mais duas vítimas…“.
A Igreja começa agora um caminho de Verdade e de Justiça. É importante que a Sociedade em que vivemos olhe também para si própria!
José Santos Cabral, Diocese de Coimbra
Presidente da Comissão Diocesana Justiça e Paz