António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
Adolescente ainda, saí pela primeira vez do mundo pequeno da minha aldeia, para ficar um trimestre fora da casa paterna. Era aquele tempo de mobilidade muito limitada, particularmente para quem vivia numa aldeia longe de vias de comunicação. Não me lembro se a minha falecida mãe – ou o meu falecido pai – pronunciou a palavra “adeus” na despedida. Mas sei, e disso lembro-me bem, que, com embargo na voz, disse mais do que uma vez “Deus te acompanhe”. E parti, de comboio, com a fé e a esperança de viajar com a bênção da invocação de minha mãe a Deus. E a situação ficou na minha memória profunda. Há imagens que é impossível esquecer.
São também dessa natureza as imagens da guerra. Da guerra na Europa. Da guerra na Ucrânia. Da guerra à nossa porta. Imagens de morte e de separações. O marido que se despede da esposa. O pai que se despede do filho. O soldado que abraça o seu filho. O filho, quase bebé, que tomou um comboio ao colo da mãe a caminho do exílio. O marido, o pai, o soldado, a mãe, o filho quase bebé que são muitos. Maridos, pais, soldados, mães, filhos quase bebés, numa estação do caminho de ferro à espera de um comboio. A caminho de um exílio. À espera de um abraço amigo numa terra estranha. Com a esperança chorada e a terra regada de lágrimas. É o monstro da guerra.
Não sei como se diz em ucraniano. Nem será preciso. O dramatismo das imagens era evidente. Eu vi. Eu ouvi a voz do drama. Era o “adeus”. Era o “até à vista”. Despedida e esperança mesmo contra toda a esperança.
Já o deixei escrito noutras ocasiões. Há palavras e expressões do corriqueiro dizer que possuem uma história extraordinariamente significativa de que nem sempre temos consciência quando as utilizamos. É assim a evolução natural das línguas. Assim também se diz. Os especialistas sabem-no bem e até dão nomes ao fenómeno. É a evolução semântica. É, pois, bem sabido, embora o esqueçamos, que as palavras possuem uma longa história. Bem interessante, tantas vezes.
Talvez seja isso o que se passa com o «adeus» que arrasta consigo a força das nossas despedidas acompanhadas, quantas vezes, de olhos humedecidos de emoção saudosa. Gesto de despedida em momentos de separação entre pessoas e das pessoas a coisas do mundo, o «adeus» contém toda uma sabedoria de vida, peregrinos que somos nos caminhos da existência. Peregrinação que não tem retorno e que transforma a vida num contínuo “adeus”.
Disso parece ninguém ter qualquer dúvida. Todos nós já teremos dito «adeus» vezes sem conta. Ontem, na semana passado, no passado mês, no ano transacto. Talvez hoje mesmo. Nas despedidas dos nossos encontros familiares e de amigos. “Adeus” acompanhado, ou não, de um emocionado abraço ou de significativo movimento da mão. Até nas despedidas de coisas e acontecimentos, como nas lágrimas do “adeus” de um povo a um campeonato mundial de futebol. Até em épocas especiais do tempo, como passagem de ano, na despedida do «ano velho» que se mistura com uma saudação ao «ano novo» que se espera possa ser cheio de bem. Ou de bens. Não admira, portanto, que o “adeus” apareça com tanta frequência no mundo da canção.
Vale, pois, a pena revisitar essa palavrinha “adeus”, tão repetidamente dita e talvez esquecida no seu profundo significado. Mesmo quando dita com a maior emoção e com embargo na voz.
É bem simples. E, talvez, já todos o tenhamos pensado. A palavra «adeus» é composta de duas: «a» e «Deus». De preposição, a palavrinha “a” transmutou-se em sílaba e aglutinou-se a “Deus”. O “a” já não é preposição. É um prefixo a apontar para a sua origem: a Deus.
Bem singela, esta composição. E fico a pensar em termos equivalentes de outras línguas. Seja o “adieu” do francês, o “adiós” do espanhol e o “adio” da língua italiana. Fazê-lo é uma impossibilidade absoluta, mas ficaremos com vontade de visitarmos outras línguas para além destas que nos são próximas, geográfica e linguisticamente.
O prefixo “a” ter-se-á anteposto ao termo “Deus” em tempos idos quando as pessoas faleciam nas próprias casas, acompanhadas por familiares e amigos ou mesmo por um sacerdote, que ajudavam os moribundos a aceitar a morte com tranquilidade e paz de espírito. Era assim o antigo cerimonial de uma boa morte: presença, companhia e oração. E quando a morte chegava mesmo e os olhos do moribundo se fechavam, far-se-ia a oração final, com uma espécie de encomendação da alma “a Deus”. Verdadeiramente uma «morte assistida», humana e santa.
Entrega da alma a Deus, desejo de paz e bem para o moribundo e despedida do ente querido por parte de quem ficava e de quem muito o amava. E continua a amar. Por isso se invocava, se pedia, o supremo bem, a paz da eternidade na companhia de Deus. Eu, criança que era, ainda presenciei situações destas na minha aldeia. E vivi-as como quem participava num momento de superior transcendência. E era mesmo. Sem qualquer dúvida.
No tempo actual, de sociedade de bem-estar e distraídos que andamos da nossa condição de seres limitados, contingentes e mortais, vamos morrendo em espaços institucionalizados, na esperança de uns momentos mais para esta nossa breve vida. E ainda bem. Só que isso significa também – já tantos o fizeram notar – que expulsámos a morte das nossas casas, embora ela entre virtualmente todos os dias, através de filmes, séries, guerras e até jogos vídeos que tão cedo fazem parte do entretenimento e vícios de morte de muitos. Contradições dos tempos. E a morte vem. E o «adeus» já raramente é um «a Deus» a não ser à distância ou quando o moribundo já é um cadáver.
De uma invocação de fé e esperança, o “a Deus” das sociedades tradicionais e cristãs de outrora, transmutou-se para o “adeus” de simples despedida. De quem fica para quem parte. De quem parte para quem fica. Consciente ou inconscientemente, vamos dizendo “adeus” a Deus. Ironia do humano viver: um “adeus” graças ao “a Deus”.
Por ser um “adeus” graças ao “a Deus”, Deus continua a estar lá, no “adeus”. No “adeus” da língua. Na escrita e no som. No “adeus” e noutras formas de dizer “adeus”, mesmo daqueles que não acreditam em Deus.
Foi por aí que comecei lembrando a minha mãe na minha primeira partida. O “adeus” de hoje é o “Deus te acompanhe” ou o “vai com Deus” dos nossos progenitores. Tendo nós expulsado Deus do espaço público, estas expressões já não são tão comuns nos tempos que correm e o “adeus” é o mais usual. Mas no “adeus” encontra-se o “Deus te acompanhe”. No “adeus” está um “Deus desconhecido”. Um “Deus ignorado”. Ou até um “Deus negado”. Os mistérios da semântica de uma língua são lições de vida.
As despedidas nem sempre são fáceis. Dizer “adeus” é bem difícil. Pode ser dramático, mesmo. Toda a separação tem o seu quê de doloroso, particularmente se for forçada por elementos estranhos. Foram dolorosamente dramáticas aquelas despedidas dos refugiados ucranianos. Vimos as imagens. Tantas. São estas separações que contêm maior dinamismo da esperança do reencontro. Por isso são festivos os reencontros. Foram de festa os reencontros dos ucranianos após a libertação da cidade de Kherson. Vimos as imagens. Simbólica cidade. Simbólicos festejos. De “adeus à guerra” e de espera da Paz, sabendo embora que, quem assim espera, sabe que se encontra perante um campo aberto de possibilidades.
Importará reaprender a dizer “adeus”. O “adeus” será também um “adeus” [a Deus] de saudação para a Alegria do reencontro. “A Deus” encomendamos a tranquilidade da Paz. Dos vivos e dos mortos. Como nas origens.
“Adeus” 2022. “A Deus” 2023.
António Salvado Morgado
morgado.salvado@gmail.com