No centenário de Miguel Torga

Do meu refúgio de férias acompanhei pela RTP 1 e 2 a evocação que, no Domingo passado, Sabrosa e Coimbra fizeram de Miguel Torga no centenário do seu nascimento. Na selecção das imagens colhidas em Trás-os-Montes lá apareceram a casa do poeta e o negrilho no largo do Eiró em S. Martinho de Anta, a capela da Senhora da Azinheira e a serra contígua mais acima, bravia e pedregosa, a campa onde jazem os restos mortais do escritor tendo ao lado a torga que ele desejou, o incansável P. Avelino na varanda da sua casa, e, no pólo oposto, S. Leonardo de Galafura sobre o rio Douro; em Coimbra, a casa que o poeta habitou, o consultório médico, as ruas que calcorreou e o rio Mondego. A acompanhar as imagens, ouviram-se alguns textos do poeta e as palavras da filha e de pessoas que do poeta tiveram um conhecimento mais próximo. Não faltaram comentários académicos sobre a obra e feitio do escritor, mas foi claro que Torga pagou caro em vida e mesmo depois de morto a sua independência perante grupos literários, clãs políticos e ideológicos. Durante a reportagem lembrei-me do primeiro contacto que tive com a obra do escritor e do choque que na altura ela me causou. Iniciava em 1953 o curso de Filosofia e, do currículo académico, faziam parte, além da Literatura Portuguesa, do Grego e do Latim, da Biologia e da Física, o estudo da Lógica e da Ontologia que educavam a inteligência a trabalhar com rigor total e a levar as coisas até às últimas consequências. Miguel Torga não fazia parte dos autores a estudar, mas, num intervalo, puseram-me nas mãos um estudo conjunto sobre a problemática religiosa do poeta transmontano e de José Régio. Li o trabalho com surpresa e agrado e depressa percebi a semelhança e diferença da problemática dos dois grandes poetas. Os textos arrepiaram-me um pouco, sobretudo os do Torga: áspero mas sedutor, ousado mas realista, quase blasfemo mas verdadeiro. Há nele suficiente cultura clássica e cristã para a gente poder nadar em águas fundas, e bastante rebeldia pagã para se sentir provocado. Nunca é blasfemo, ainda que proteste como outro Job. Em toda a sua obra há uma cosmovisão genérica, uma opção mais voluntarista que intelectualmente conquistada e, de vez em quando, liberta-se dela e escreve noutra pauta. Torga não é um poeta sistemático que tenha subjacente uma filosofia coesa, nem sequer um sociólogo, e alguma falta de lógica incomodava-me a princípio. Os anos passaram e nunca mais deixei de o ler, não como um profissional da arte literária mas para ocupar as horas vagas. E a sensação que tenho é a da primeira hora: as palavras andam nas páginas dos seus livros como pedras de colar, bem seleccionadas e medidas, e ligam-se umas às outras por um fio anímico, austero mas elegante – ser autónomo perante os homens e perante Deus, sem dar razões da sua opção: «é assim porque é, porque resolvi ser assim, sem dar contas a ninguém». E fica lamentar-se toda a vida das consequências da escolha que fez. Torga parece um ensaiador dos frutos da descrença, e, talvez por isso, anda lá e cá. Artisticamente, Torga é um médico, um fino observador das atitudes humanas e da paisagem geográfica, cultural e política do nosso país, sempre poeta, mesmo quando não usa o verso: ausculta, intui, mede o pulso, sente o drama do doente, acende uma luz e apaga-a em seguida, transfigura as coisas com a linguagem bíblica mas inverte o sentido dessa linguagem e os símbolos. Recordemos as figuras da «arca de Noé» no prefácio dos «Bichos», e aí e noutras obras as figuras do corvo, da Madalena, de Isaac, de Job e das lamentações, do Lázaro, da água e do pão, do vinho e do azeite como matéria dos sacramentos, a linguagem litúrgica do ritual católico do baptismo, crisma, confissão, extrema-unção, eucaristia, e a linguagem do mistério cristão desde Adão e a «criação do mundo» até à redenção, ao limbo e à ressurreição. No que respeita à Igreja católica, à sua doutrina e acção no mundo e à sua moral tem depoimentos comovedores (a evocação dos cinquenta anos do seu casamento, por exemplo, a rejeição do aborto, a dimensão da liturgia), ao lado de finas observações dolorosas que revelam um cirurgião atento, bom conhecedor do organismo que admira e ao qual faz a punção para lhe aplicar pontas de fogo. Seria curioso fazer uma antologia do perfil dos padres que figuram nos livros de Torga: parece-me que têm mais semelhanças com os padres de Camilo que com os de Eça. É hoje reconhecido pelos estudiosos do fenómeno religioso que a reflexão sobre Deus se torna mais acessível ao homem contemporâneo através da literatura e outras obras de arte do que pela reflexão metafísica. Talvez por isso algumas correntes artísticas tentem impor o silêncio sobre Deus na Literatura e outras obras de arte. Isso, porém, apoucará a verdadeira obra de arte retirando-lhe as perguntas nascidas do enigma humano. Lamentava o saudoso P. Manuel Antunes que «na história ocidental a Teologia e a Literatura ainda nunca falaram como parceiros autónomos. A maioria dos Teólogos tem pouca estima pela Literatura e a maioria dos escritores tem pouca estima pela Teologia». Todos perdem: os teólogos perdem uma reflexão sobre os problemas reais das pessoas vivas, e a Literatura perde densidade. O Concílio vai por outro caminho e lembra que «é dever de todo o povo de Deus, e sobretudo dos pastores e teólogos, saber ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo e julgá-las à luz da palavra de Deus, de modo que a Verdade revelada possa ser cada vez mais intimamente percebida, melhor compreendida, e apresentada de um modo mais conveniente. A Igreja reconhece que muito aproveitou e pode aproveitar da própria oposição daqueles que a hostilizam e perseguem» (GS 44). «O Deus verdadeiro dizia Wittgenstein, não morre no coração do homem, o que morre é a imagem cultural que d´Ele se tem». D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real

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