Liberdade do coração em relação aos bens materiais

Ano Jubilar de São Rosendo (907 – 2007), originário de Santo Tirso – Diocese do Porto Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo de Orense. Rev.mos sacerdotes e caríssimos irmãos e irmãs: Com muito gosto me associo a estas festas jubilares de São Rosendo, notável monge e pastor, que provindo da diocese do Porto, realizou um fecundo e memorável ministério por toda a antiga Galiza e concluiu aqui em Celanova uma prodigiosa vida que sempre louvamos e compartilhamos. Bendizemos a Deus, “nos seus anjos e nos seus santos”. Louvamo-Lo hoje, por São Rosendo e pela gloriosa Virgem Maria da Encarnação, aqui honrada com jubilosos festejos. Partilham ambos – e Nossa Senhora inteiramente – da glória de Cristo, que São Paulo anunciava na segunda leitura, deste XVIII Domingo do Tempo Comum. Glória de Cristo, vida verdadeira a que todos somos chamados. Vida verdadeira e autêntica, começada em corações convertidos e realizada no amor a Deus e aos irmãos. Vida que garante a eternidade na caridade e a plenitude no bem. E só assim, irmãos, só assim pode e deve acontecer. – Quando celebramos a Virgem Maria, quando lembramos São Rosendo, que fazemos afinal? Reconhecemos e confessamos que estão vivos em Cristo, porque se realizaram inteiramente nos sentimentos de Cristo, na sua Páscoa e no seu Espírito. Páscoa quer dizer passagem: e eles passaram definitivamente deste mundo para o Pai. Espírito é a própria vida divina, que circula entre o Pai e o Filho, e este mesmo nos legou, para reproduzir em nós os seus sentimentos e atitudes. Sabemo-lo bem, todos os baptizados. E por isso nos sentimos contemporâneos de São Rosendo, mil e cem anos depois do seu nascimento, e contemporâneos da Virgem Maria, dois mil anos depois. Porque somos contemporâneos de Cristo, em cujo Espírito eles viveram e vivem, em cujo Espírito vivemos também, já na comunhão dos santos, nossa família sem fim. Há, porém, uma escolha a fazer: a escolha que fez a Virgem da Encarnação, a escolha que fez São Rosendo. A escolha que talvez tenha feito depois aquela personagem sem nome que interpelou Jesus no Evangelho que escutámos. Esse mesmo que lhe disse: “Mestre, diz a meu irmão que reparta a herança comigo”. Ainda não tinha compreendido Jesus, nem a novidade da sua missão. O seu horizonte mantinha-se imediato e fechado, naquilo que o preocupava na altura, uma mera questão de partilhas… Para ouvir de seguida uma resposta inesperada, tão inesperada que não sei se já todos a entendemos hoje. Retorquiu-lhe Jesus, amavelmente: “ – Amigo, quem Me fez juiz ou árbitro das vossas partilhas?”. Resposta inesperada, pois era normal esperar dos mestres respostas para tudo; e assim mesmo se esperaria de Jesus… Mas Jesus traz ao mundo a verdadeira ordem das coisas, em que a realidade temporal é entregue por Deus aos homens, encarregados de “encher e dominar a terra”, segundo o mandato do Génesis. É o campo das nossas responsabilidades cívicas e jurídicas, onde nos encontramos com os nossos cidadãos, crentes ou não crentes, numa sã secularidade. Nisso mesmo Jesus se apresenta como um entre iguais, na humanidade comum que assumiu e não desfez: não se arvorou em magistrado, como não negaria depois a autoridade política, mesmo representada por Pilatos; trabalhou e pagou impostos. Assim devemos estar também nós como cidadãos crentes: cumprimos a cidadania como todos os outros, nos vários campos da sociedade; ainda que, a exemplo de Cristo, a preenchamos de filiação e caridade divinas. Sem confundir os planos, sem menosprezar as realidades terrestres na sua justa autonomia, mas sem desistir do Céu como destino e critério. E ao Céu nos leva Jesus, na continuação do trecho evangélico que escutámos. Porque, depois de se eximir ao papel de juiz de causas correntes, não deixa de advertir: “Vede bem, guardai-vos de toda a avareza: a vida de uma pessoa não depende da abundância dos seus bens”. – Seria preciso lembrá-lo ontem? – Será preciso lembrá-lo hoje ainda, caríssimos devotos e peregrinos da Virgem da Encarnação e de São Rosendo? Na verdade, nunca tivemos tanta coisa com que nos ocupar ou distrair na terra, com o perigo grande de esquecermos o sentido geral da vida, que ela necessariamente deve ter, para ser humana, para ser feliz, para ser divina. Aí estão as graves evidências: na nossa Europa, mesmo com um consumo nunca antes atingido, crescem as doenças da fartura e o número das depressões. Abundância de bens, penúria de vida. Neste contexto, o sinal distintivo do real cristianismo de cada um tem de ser a liberdade do coração em relação aos bens materiais, não para prescindir do necessário para todos, nem para abrandar os esforços em favor da sua justa distribuição, mas para manter aberto um horizonte existencial em que a vida se realize na comunhão com Deus e com os irmãos. A partir deste horizonte pleno e aberto é que devemos usar os bens, igualmente frugais e solidários, ou seja, livres e fraternos, como autênticos filhos de Deus, como Cristo e no seu Espírito. Foi assim a Virgem da Encarnação: teria os seus planos terrenos, como as jovens do seu tempo. Mas, ao ouvir a mensagem divina, abriu-lhe inteiramente o coração e concebeu o Filho de Deus, nela mesma assim humanado e entregue a todos nós, como salvação do mundo. Estamos aqui hoje, louvando a Virgem da Encarnação, porque somos todos filhos do seu “sim” incondicional à vontade divina, onde tudo o que esperava ganhou outra consistência e figura. Foi assim São Rosendo: nasceu nobre e rico, e mais o poderia ser, porventura. Mas foi monge e pastor, acendendo em vários pontos e por fim em Celanova a luz viva do amor a Deus e ao próximo, rezando muito e ensinando a rezar, libertando escravos e pacificando os corações. É a nossa vez agora, amados irmãos. Aprendamos como a Virgem da Encarnação, aprendamos com São Rosendo, aprendamos com Cristo, seu e nosso mestre: olhemos o mundo do nosso dia a dia, como campo exigente de responsabilidades familiares, cívicas e sociais. Demos o melhor de nós mesmos às tarefas concretas do trabalho e da cidadania. Mas, em tudo isso, mantenhamos o coração disponível e aberto a Deus e a todos. Assim se reconhece a liberdade dos filhos de Deus, assim se anuncia ao mundo o Evangelho da vida em abundância, assim nos integramos, com Maria e Rosendo, na comunhão e na glória dos salvos em Cristo! Ourense, 5 de Agosto de 2007 + Manuel Clemente, Bispo do Porto

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top