Bispo da cultura e de casos fracturantes

O perfil cultural de D. Teodoro de Faria e as repercussões de casos como o do Pe. Frederico em 25 anos de ministério episcopal Bispo da cultura e de casos fracturantes Nas vésperas de dar lugar, na Sé do Funchal, a D. António Carrilho, a Agência Ecclesia foi à procura do perfil cultural de D. Teodoro de Faria e avaliou a repercussão de casos como o do Pe. Frederico em 25 anos de ministério episcopal Homem da cultura bíblica Agência Ecclesia (AE) – É um homem da cultura, nomeadamente a bíblica, o que foi Bispo do Funchal durante 25 anos? D. Teodoro de Faria (TF) – É verdade. Desde jovem que fui atraído pela Sagrada Escritura. Tive um óptimo professor no Seminário do Funchal. Depois foi necessário que alguém se preparasse na matéria e mandaram-me para Roma e depois para para Jerusalém. Sempre tive o desejo de conhecer os lugares da Sagrada Escritura. Tive a felicidade de visitar todos AE – Isso marcou o seu ministério TF – Marcou. O Bispo não pode deixar de ser o homem da Bíblia. Tem que lidar com ela continuamente. Ter o sentido da Terra Bíblica, o lugar onde a mensagem divina foi promulgada, ver as pessoas, as tradições, ajuda a compreender a mensagem bíblica de uma forma completamente diferente. Estar aqui a falar de Abraão que vem de Ur ou ir a Ur é completamente diferente. E eu fui sozinho a Ur, quando ninguém sabia como se ía até lá, no tempo da guerra. AE – Até que ponto essa aposta de aproximação às raízes bíblicas o ajudou na aproximação ao povo madeirense? TF – Primeiro, a Bíblia foi escrita para o povo de Deus. Eu sempre tive professores que tinham grande sabedoria, mas os melhores eram aqueles que estavam em contacto com o povo porque a sabiam transmitir às pessoas. E isso ajudou-me muito, chegando cá. Além disso, quando estive em Roma, depois do Concílio, fui convidado muitas vezes para fazer conferências não só sobre a Bíblia, mas sobre a Teologia da Paixão e sobre o Santo Sudário. Fui ao Brasil falar em diversas universidades (em Brasília, S. Paulo, na Aparecida) e também em Itália. AE – Como viveu o Concílio Vaticano II? TF – Vivi-o sobretudo na sua preparação. Estava em Roma, no tempo do Papa João. Era um Papa que, às vezes, fazia as coisas parecendo que não sabia o que estava a fazer. Mas sabia. Ele fez um Sínodo Romano, em preparação do Concílio. E a única marca que ficou do Sínodo foi os sinos não tocarem antes das 7 horas (o que para o Colégio Português foi uma delícia porque havia uma igreja perto, dos espanhóis, que nos acordava muito cedo…). E outra coisa: ele obrigou, sem resultados, a usar o chapéu romano sempre na cabeça. Mas foi uma experiência que levou a pensar no Concílio Vaticano II. No meu tempo, foi interessante aperceber-me das ideias que já circulavam e a tensão que havia nalguns ambientes romanos. Houve mesmo professores, até meus, que sofreram muito porque eram considerados quase hereges. E eram esses que tinham o fermento do Vaticano II. Tinham a formação do Pe. Lagrange, que abriu a Bíblia à ciência. Sofreu muito, mas permaneceu sempre fiel a Roma e à Igreja. Obedeceu. É por isso que ele foi grande. AE – É por essa experiência que passam os renovadores na Igreja? TF – Exacto, exacto… Eu conheci mais esta preparação. Depois vim para o Funchal e segui cá o Concílio. Depois fui para Roma, para vice-reitor, e senti a grande dificuldade que foi o pós-concílio: colocar aquela máquina toda em movimento, a Cúria Romana a transformar-se… Esse momento foi muito difícil: as ideias começaram a debater-se, começou a debandada dos sacerdotes, dentro do Colégio tínhamos os estudantes que os Bispos mandavam para ver se os salvavam, mas não havia nada a salvar… Foi um momento muito crítico. Até ao Concílio sobre a Evangelização. Aí as coisas começaram a alterar-se. Paulo VI era um homem de uma grande sensibilidade espiritual, de um grande conhecimento da Igreja. O povo romano chamava-lhe o “Paulo triste”. Tinha dentro de si um sofrimento muito grande, com todas estas lutas e, principalmente, com a questão de Lefebvre. Foi para o Papa uma dor muito grande e quase um trauma que ele não conseguiu ultrapassar. Aquela divisão da Igreja, não! AE – Ontem, disse que o Museu Diocesano de Arte Sacra é o melhor de Portugal… TF – Dizem-me que é, entre os que estão filiados nos Museus Nacionais. É muito visitado, muito estudado! Foi preciso colocar na devida ordem tudo o que tínhamos do passado. O Museu tem sempre muitas dificuldades para arranjar dinheiro para os trabalhadores e, principalmente, para recuperar. Durante este tempo (por causa da formação romana e dos museus que eu vi, porque conheço todos os museus da Itália e da Europa e participei em muitos cursos) a arte e a beleza foi qualquer coisa que me levou até Deus. E a Bíblia ajudou-me a compreender esse mundo da arte, ligando-a à liturgia. AE – Ela é fundamental para a missão da Igreja? TF – A beleza… Deus é a beleza por excelência. Gosto muito dos escritores russos que falam sobre a beleza. Sempre apreciei a teologia dos padres orientais que falam sobre a beleza, para não viver só da teologia dos europeus, por vezes muito racionalista. É importante unir as duas tradições, a do Oriente e do Ocidente. Senão ficamos como que uma ave com uma asa só. São os dois pulmões da Igreja, como dizia João Paulo II. AE – A aposta na arte causou prejuízo noutras áreas da pastoral? TF – Não causou, antes ajudou. Cheguei aqui numa ocasião em que havia muitas paróquias, criadas pelo meu antecessor, D. David de Sousa, e sem igreja. E havia pressa em fazer igrejas de qualquer maneira: desde que se entrasse lá dentro e não chovesse, bastava. Mas não. Depois, com a evolução que houve na Madeira, com o acabar com todas as barracas, colocou-se um “anel” ao redor do Funchal com muita gente. E foram necessárias novas igrejas. Felizmente foi um período em que houve uma boa relação com o Estado e conseguimos construir igrejas com maior beleza, com maior sentido de dignidade e com todas as infra-estruturas que são necessárias para as igrejas. AE – Como renovou a actividade sócio-caritativa? TF – Foi preciso recriar a Caritas, os Centros Sociais paroquiais, as IPSS, as Misericórdias… Nós vínhamos de um período revolucionário. Além disso, as organizações estavam nas mãos de leigos, não para ajudar, mas para ganharem dinheiro. Foi preciso regularizar tudo isso. Foi uma guerra terrível. Muito sofri, porque não havia uma única destas organizações que estivesse regularizada, com problemas lá dentro, com as religiosas que lá estavam a pedirem para sair… Foi um trabalho muito duro! O Seminário e a Universidade Católica AE – Que aposta na formação de sacerdotes e leigos? TF – Quando cheguei à Diocese, dei prioridade à questão do Seminário. Nós não tínhamos seminário, não tínhamos padres. Tínhamos um grupo de estudantes em Lisboa, donde não veio nenhum sacerdote. Depois foi outro grupo para Braga, mas não gostaram. Depois foram para o Porto, depois novamente para Lisboa… Era terrível. Era preciso começar tudo de novo. Graças a Deus, ordenámos muitos padres que estão nos lugares centrais de toda a Diocese. Os outros não foram afastados, envelheceram (como eu!) ou faleceram! Ao mesmo tempo, os leigos que passaram pela Universidade Católica. Tive tanta pena que ela saísse de cá! Porque Universidade Católica na Madeira nunca perdeu dinheiro e os professores gostavam de cá vir… E tenho que agradecer muito aos padres jesuítas de Braga, que sempre quiseram vir ao Funchal AE – Porque saiu a Católica? TF – Acabaram com as extensões, diziam que a Madeira ficava longe… Ainda continua, mas apenas através de cursos (como o de bioética). Ficamos muito agradecidos aos jesuítas de Braga. Muito menos aos professores e reitores da Universidade Católica de Lisboa Grupo dos dez e o Pe. Frederico AE – Os padres aparecem hoje fracturados, nomeadamente por esse grupo dos dez? TF – Surgiu uma fractura de um padre, sobre o qual me empenhei muito, porque era inteligente e tinha qualidades (cujo nome é Edgar) e que arranjou um grupo de dez, naquele momento, com uma ideia um pouco da América Latina, da Teologia da Libertação cá dentro. Conseguiu, num primeiro momento, arranjar esse pequenino grupo, que era aquele com quem eu trabalhava mais directamente, eram dos primeiros que eu tinha mandado estudar. Depois vi que a intenção dele era outra! Naturalmente, o clero jovem quer avançar mais, outros querem avançar um pouco menos. Mas essa tensão a mim nunca me preocupou muito… AE – Acha que é salutar? TF – Sim, ajuda um pouco. Sempre me dei bem com eles. Eu nunca tive motivos para suspender um padre. Mesmo aquela questão do Martins Júnior, foi uma questão de momento, do tempo revolucionário. Eu não chegaria até lá! AE – Como aconteceu a fractura com o Pe. Edgar? TF – Eu coloquei o Pe. Edgar em lugares de grande responsabilidade na Diocese. A fractura não se deu tanto cá, mas depois de ter ido para o Continente trabalhar com os estudantes. Lá, a situação modificou-se e chegamos a uma certa ruptura. Ele diz, de vez em quando, que não rejeita os grandes valores que recebeu. Eu penso que sim. Que é verdade. AE – O ser deputado do partido comunista não é incompatível? TF – Não sei se ele é comunista… Está lá! AE – O caso do Pe. Frederico foi um momento que marcou negativamente estes 25 anos? TF – Sim. Foi o caso mais difícil que eu tive. Foi… É preciso ver que o caso do Pe. Frederico pode acontecer em qualquer lugar. Ele veio dentro de um contexto. Veio para cá de uma forma muito especial. Já cá estava quando eu cheguei. Veio com os padres Cruzios, da Alemanha. Depois aconteceu tudo aquilo que nós sabemos – e eu não queria abrir esse dossier -, os meios de comunicação social deram-lhe uma amplitude exagerada e fizeram qualquer coisa que não dignifica a justiça: transmitir uma decisão do tribunal directamente para todo o país. Tudo isso começou com um acto de vingança para com o Bispo. Foi depois da visita do Papa. Por essa ocasião começaram a nascer aqui, na diocese, diversos lugares de diversão nocturna inteiramente repreensíveis. E eu, uma ou outra vez, falei, sem acentuar muito esse facto. E aqueles que se sentiram atingidos quiseram vingar-se na pessoa do bispo e encontrar alguém que pudesse servir de bode expiatório. AE – Mas aconteceram factos condenáveis? TF – A questão do jovem, eu não acredito. Ele nunca conheceu aquele jovem, ele nunca o viu. Quando à questão da sua vida moral, isso é outro problema. Mas misturou-se tudo… Nesse momento, para esta Diocese como para qualquer outra, isso causou uma grande preocupação. Foi um trauma, foi um momento difícil. De qualquer forma, Deus esteve presente e ajudou a que a fé do povo não ficasse por terra por causa disso. Quem olha para Cristo como o Senhor da sua vida, não é por causa de um padre, por pior que ela seja, que O vai deixar! AE – Na altura, o Bispo não deveria ter esclarecido para colocar um ponto final nesse problema? TF – O que é que eu deveria ter dito mais que não dissesse e que, no fim de contas, me atacassem… Não é possível… Tradição dos Bispos do Continente AE – Há aversão na Madeira a Bispos madeirenses? TF – Não há aversão. Há uma tradição de bispo do Continente: religiosos notáveis que vinham para cá, estavam algum tempo e depois voltavam para o Continente. E houve espaços muito grandes que a Madeira não tinha bispos (9 anos, 10 anos…). O povo madeirense, separado do continente, um pouco desprezado… Os governadores vinham de lá, depois os bispos também vinham de lá… Havia esta tradição de estar subjugado… Faltava uma libertação, que veio com a autonomia. Eu vim como bispo (vim para cá porque estava em Roma, senão não viria!) e mostrámos que também somos gente, também nos sabemos reger por nós. Depois, outras dioceses de Portugal começaram a ter bispos da própria diocese (os açoreanos ficaram preocupados, quando eu estava cá, que não tinham bispos da sua diocese. Agora já o têm!). Esta ideia de identidade e ao mesmo tempo de libertação apareceu com a autonomia (que agora estão a querer dominá-la!). Chegar cá, ver a Madeira de um hotel e dizer que se conhece a Madeira é irreal porque a alma do povo não é essa. É preciso olhar às raízes. Depois há outra coisa: os irmãos do José, do Egipto. Num clero mais ou menos novo, não querem que seja um irmão a estar à frente. É preciso que estes irmãos vão crescendo… AE – Vem D. António Carrilho, com capacidade para se entranhar na cultura do povo? TF – É do reino dos Algarves… Já fica perto de África, como nós ficamos também. talvez isso ajude. Eu conheço-o. Eu julgo que ele vai acertar. É o primeiro bispo do Algarve que vem para cá! A Madeira pelo Mundo e o Mundo na Madeira AE – Que mensagem transmite aos madeirenses espalhados pelo mundo quando os visita? TF – A primeira: sede fortes na fé. Depois, a vossa identidade é importante, mas terei de pensar que haveis de viver nestas comunidades. Tem que haver, portanto, uma incardinação: não podeis rejeitar a igreja deste lugar porque a maior parte de vós haveis de aqui ficar. Depois, o empenho na evangelização: nos locais onde não havia evangelização, hoje há por causa daquelas comunidades que levaram a devoção a Nossa Senhora, levaram a festa do Santíssimo Sacramento e conservaram a sua fé. AE – Como foi promovendo o ecumenismo nesta diocese? TF – Sendo uma terra de turismo, mais de metade dos turistas que nos visitam (vêm da Inglaterra, da Alemanha e dos países nórdicos) não são católicos. Eles não só estão presentes como começaram a acontecer casamentos mistos. E foram exemplares: um católico da madeira que não pratica muito e que casa com uma senhora inglesa, por exemplo e que ela diz que vai respeitar, que os seus filhos hão-de ser católicos… isto é muito duro! E quando o pai que não sabe nada de religião católica e a mãe, que é protestante, é que a vai ensinar o catolicismo aos filhos, que os leva à Sé… Admirei esta gente! A dificuldade é com as seitas. Não sabemos bem se crescem se diminuem. Há sempre aqueles grupos, que encontramos em Portugal, com uma percentagem pequenina. Colaboração com quem promove o povo madeirense AE – Há quem afirme que a causa da estabilidade do Governo Regional se deve à Igreja? TF – São interpretações. Um bispo que conhece o povo madeirense e que sabe que tem líderes à frente que estão a promovê-lo, que amam esse povo, que se dedicam a ele, o Bispo o que é que pode fazer? Se eu fazia uma guerra ao Governo Regional, perdia o povo todo…! E com é que ficava? Com um grupo muito pequenino, que vive na lua…! Agora, aquilo que ele estava a fazer para o mesmo povo, tendo que haver colaboração, isso era necessário. Trata-se de compreender aquela palavra de Paulo VI: a política é uma arte nobre. Não a política partidária, porque aí ninguém me pode atacar de nada. Eu recebi todos os políticos que aqui chegaram. Uma vez veio cá o Dr. Mário Soares fazer propaganda e o Bispo do Funchal recebeu-o… A ideia que eu tenho é que se eu fizesse uma oposição contínua ao Dr. Alberto João – o que era injusto – eu é que caía, não era ele!

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