Homilia de D. Manuel Clemente na Missa da Ceia do Senhor Amados irmãos e irmãs, Ouvimos na segunda leitura a primeira menção escrita da Ceia do Senhor. E as palavras de Jesus, tomando o pão e depois o cálice, soaram assim, como, aliás, as sabemos de cor: “Isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de mim. […] Este cálice é a nova aliança no meu sangue. Todas as vezes que o beberdes fazei-o em memória de mim”. A partir daqui, poderemos considerar que toda a vida da Igreja, milénio após milénio, outra coisa não é senão perpetuar a memória de Cristo e, muito especialmente, o gesto em que Ele se traduziu na realidade da sua existência terrena e da sua morte, como vida entregue para a vida do mundo. E também poderemos considerar que a nossa própria existência e condição, enquanto discípulos de Cristo, só tem sentido enquanto vivemos da sua entrega e nos entregamos com Ele, em acção de graças ao Pai e em caridade para o mundo. Pensaremos bem, se pensarmos assim, como o celebramos nesta Missa Vespertina da Ceia do Senhor, que nos introduz no Tríduo Pascal, cerne da vida cristã. Não o digo eu, di-lo o Santo Padre Bento XVI num passo muito afirmativo e apodíctico da sua recente exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis : “Quanto mais viva for a fé eucarística no povo de Deus, tanto mais profunda será a sua participação na vida eclesial por meio duma adesão convicta à missão que Cristo confiou aos seus discípulos. Testemunha-o a própria história da Igreja: toda a grande reforma está, de algum modo, ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do povo” (SC, nº 6). Advertência muito importante, esta. Antes de mais, pela ligação da fé eucarística com a participação na vida e missão da Igreja. Mal de nós, se alguma vez confundirmos a pertença à Igreja de Cristo com qualquer outra agregação, meritória que seja, a que adiramos para uma finalidade entre outras. Verificamo-lo, por vezes, nalgumas alusões, ditas ou escritas, que assim se referem à Igreja, à sua organização interna e à sua actividade, digamos, social… Além do horizontalismo subjacente, tal entendimento revela confusão entre os dois planos da realidade crente, ou seja o da criação e o da ultimação das coisas em Cristo. Na verdade, segundo a lição dos Génesis, no princípio do nosso permanente acontecer, o mundo é-nos confiado e entregue: “Abençoando-os, Deus disse-lhes: ‘Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra…’” (Gn 1, 28). E isso vamos fazendo, com todos os que partilham connosco a condição humana, nesta exaltante e dramática aventura que desenrolamos na história. Aqui sim, é basicamente nossa a responsabilidade e a definição das coisas, sobretudo as que fazemos associados, com os mais diversos e legítimos objectivos. Sabemos bem, no entanto, como repetidamente nos esquecemos da origem divina das nossas vidas e da vida do mundo. E como, cortando-nos dela, rapidamente secamos como inspiração, solidariedade e sentido. É o drama e tragédia das nossas existências individuais e colectivas, do nosso pecado, para falarmos religiosamente. Sabemos, ainda e sobretudo, que Deus não desiste de restaurar, relançar e culminar a aventura humana, sem eliminar a nossa liberdade, antes curando-a dos cativeiros em que se deixa enredar, por egoísmos próprios e alheios. E como, em Jesus Cristo, Deus Filho se torna Deus connosco, para nos salvar pela partilha da sua inabalável filiação divina, pela imortalidade do seu amor, o único que nunca acabará (cf. 1 Cor 13, 8). Aqui culmina a criação, ganhando todo o significado na filiação divina, de Cristo para nós e para benefício da criação inteira, a qual, como Paulo lembrou, “se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8, 19). Que importante é lembrá-lo, agora que a ecologia global nos preocupa cada vez mais. Di-lo também o Papa na sua exortação apostólica: “As condições ecológicas em que a criação subjaz em muitas partes do mundo suscitam justas preocupações, que encontram motivo de conforto na perspectiva da esperança cristã, pois esta compromete-nos a trabalhar responsavelmente na defesa da criação; de facto, na relação entre a Eucaristia e o universo, descobrimos a unidade do desígnio de Deus e somos levados a individuar a relação profunda da criação com a ‘nova criação’ que foi inaugurada na ressurreição de Cristo, novo Adão” (SC, nº 92). Isto sabemos decerto, nós os cristãos. Mas, se o sabemos, é porque reconhecemos em Cristo o coração do mundo novo, que não se constrói basicamente a partir de nós e das nossas iniciativas, mas sempre de Deus e da sua vitoriosa caridade, como entrevê o último livro da Bíblia Sagrada: “E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém, já preparada, qual noiva adornada para o seu esposo. E uma voz potente que vinha do trono e dizia: ‘Esta é a morada de Deus entre os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as primeiras coisas passaram’” (Ap 21, 2-4). Não nos pareça isto demasiado, porque é desta realidade que a Igreja é já sinal e sacramento, activando no mundo a caridade divina, como a recebe de Cristo (cf. SC, nº 92). Aqui se insere o sentimento de “já e ainda não” que modernamente formula a consciência de vivermos do futuro para o presente, ou melhor, do futuro presente em que a Páscoa de Cristo nos inclui e a Eucaristia celebra. Assim se enquadra o comentário que Paulo logo faz à citada narração da Ceia, activando a esperança e apressando o fim: “Na verdade, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha”. O que nós ecoamos na aclamação: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!”. A morte de Cristo significa afinal a vitória sobre a morte, pois que a preenche de tal caridade, que elimina toda a raiz do pecado que a origina. É desta vitória que vivemos, é ela só que celebramos em persistente acção de graças, é dela que repassamos todas as concretizações da nossa vida, pessoal ou colectiva, para que a história, pequena ou grande, se salve e transmude na Jerusalém nova, que assim brota de Deus humanado. Assim sendo, podemos retomar o trecho de Bento XVI e perceber porventura melhor porque é que, à luz da história da Igreja, se pode dizer que “toda a grande reforma está, de algum modo, ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo”. Porque a melhor noção de “reforma” é a que nos leva, quase ciclicamente, a retomar a forma inicial da Igreja, como a vemos na Ceia do Senhor, onde a contemplamos agora. E também porque é que o grande movimento social cristão, que, desde o século XIX tem procurado levar à sociedade e à economia mais humanidade e solidariedade, teve e tem nos congressos eucarísticos nacionais e internacionais um dos seus focos e incentivos. Nascidos em França, por iniciativa de Émilie Tamisier, ligam-se também ao apostolado eucarístico de São Pedro Julião Eymard, o mesmo que escrevia assim: “A Eucaristia é a vida de todos os povos. […] A Eucaristia é também a vida da alma e da sociedade humana, como o sol é a vida dos corpos e a da face da terra. […] Ele […] segue o supremo Sol, o Verbo divino, Jesus Cristo, que ilumina todos os homens que vêm a este mundo, e que, pela Eucaristia, como sacramento da vida, actua no íntimo das almas, de tal modo que transforma as famílias e as nações” (Liturgia das Horas, 2 de Agosto). Caríssimos irmãos e irmãs, só por nós não teríamos coração nem ânimo para retomar, prosseguir e culminar a nossa vida e a vida da sociedade que desejamos integrar activamente, de acordo com os largos desígnios de Deus. Ganhamo-los na vida entregue do Senhor e na acção do seu Espírito, presente em cada Eucaristia. A partir daqui, hoje e sempre daqui, sim, é possível! É possível como inquietação e é possível como partilha, exorta-nos Bento XVI: “O alimento da verdade leva-nos a denunciar as situações indignas do homem, nas quais se morre à míngua de alimento por causa da injustiça e da exploração, e dá-nos nova força e coragem para trabalhar sem descanso na edificação da civilização do amor. Desde o princípio, os cristãos tiveram a preocupação de partilhar os seus bens (Act 4, 32) e de ajudar os pobres (Rm 15, 26)” (SC, nº 90). Finalmente, irmãos e irmãs, se reconhecemos e agradecemos o dom imenso da Eucaristia, também o Evangelho que escutámos nos ensina o modo de significarmos na vida e em prol dos irmãos a entrega e o serviço de Cristo: “deitou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha que pusera à cintura”. São gestos de servo, humílimos e desconcertantes, mesmo para quem o seguia há três anos, como Pedro. Mas necessários também em nós, se quisermos “ter parte” com Cristo, estar do seu lado, isto é, do lado de Deus no mundo. Levar-nos-ia muito longe, este imprescindível ponto de meditação… Mas bastem por hoje a intenção e o propósito de estarmos diante dos outros, começando pelos que nos rodeiam, em igual atitude de serviço humilde e decidido. Atitude que, de cada celebração eucarística, se propague na sociedade, com a marca autêntica dos discípulos de Cristo, que está no meio de nós, “como quem serve” (Lc 22, 27). Sé do Porto, 5 de Abril de 2007 + Manuel Clemente