Quaresma na primeira pessoa

Depois da experiência da dor e da doença, José Dias explica o sofrimento como caminho de Ressurreição. Como tempo litúrgico, a Quaresma tem 40 dias intensos que ajudam os cristãos a chegar à Festa das festas. A Quaresma de José Dias, leigo da diocese de Coimbra, tem mais dias. Depois de lhe diagnosticarem um tumor há cerca de um ano e dos tratamentos posteriores “tenho vivido um tempo interessante em termos de crescimento interior e de análise da realidade” – explicou à Agência ECCLESIA este Leigo. Com 65 anos celebrados no passado mês de Março, José Dias realça que está a viver duas Quaresmas em simultâneo. A do tempo litúrgico e a pessoal. Ao recordar os momentos passados vêm-lhe à memória “a grande sensação de impotência”. Habituado a um ritmo de vida alucinante, este engenheiro químico sentiu que “não tinha solução para o problema”. E confessa duas consequências do tempo passado: “a da finitude humana e o da dependência, não só com as pessoas mas também com Deus” Como sabe que os homens não resolvem tudo, aquele período de tempo “levou-me a uma experiência de pobreza evangélica e a uma disponibilidade interior”. E acrescenta: “aparentemente aumentou-me mais a fé”. Quando iam distribuir a Comunhão na Unidade Hospitalar onde esteve – apesar do ambiente não ser muito propício à concentração – José Dias revela que “tinha a sensação que percebia melhor Deus nos meus colegas do quarto do que, propriamente, naquele exercício de fé e sacramental”. A Páscoa de Maio Como cristão prepara-se para a Páscoa, a celebrar dia 8 de Abril, mas no próximo mês de Maio também espera uma «boa nova». Em Dezembro fez uma TAC. Os tratamentos pararam porque este revelou que não tinha manchas pulmonares mas em Maio “terei de voltar a ver o estado dos acontecimentos”. E completa: “A minha ressurreição – no sentido libertador – desta vez não é em Abril mas em Maio”. A de Abril é o fundamento de todas as outras mas “estou na expectativa da outra” – disse José Dias. Com o passar dos dias a expectativa ganha forma porque “não sei se terei de recomeçar novamente a via sacra”. Apesar do sofrimento passado, José Dias frisou que não colocará estas recordações roxas no baú. “Elas fazem parte da minha vida”. A história dos homens e dos povos é feita de aspectos negativos e positivos. Por isso – acrescenta – “não podemos meter no baú as coisas que nos desagradam”. Nova forma de olhar o mundo A experiência da doença deu-lhe uma nova forma de olhar o mundo. E relata um episódio: “Um dia destes fui à Figueira da Foz – uma viagem que fiz muitas vezes – mas parei na Serra da Boa Viagem e fiquei a olhar extasiado. Parece que nunca tinha visto aquilo. Esta Quaresma que eu passei deu-me perspectivas novas. Olho para o mundo e para as pessoas de outra forma”. Com os aniversários pessoais passou-se algo parecido. “Nunca celebrei o aniversário, não ligava a isso, mas este ano senti necessidade de juntar, pelo menos, a família”. E completa: “fiquei com a sensação que poderia ser a última. Teve um valor diferente”. Apesar de ainda não ter feito uma leitura teológica sobre os momentos passados, José Dias sublinha que na sua via sacra pessoal, a cruz “pesou-lhe mais quando andava nos tratamentos”. Quando recebeu a notícia da doença aceitou-a com naturalidade. A sua esposa – é médica – até disse ao médico que “eu estava mais bem preparado para receber a notícia do que ela”. As maiores dificuldades “senti-as durante o tratamento. Passava uma semana no hospital e duas em casa a recuperar”. Nessa altura sentia-se impotente e “não tinha vontade para fazer nada” mas “marcou-me muito em termos de qualidade da minha fé” – confessou. Um doente privilegiado Não tinha consciência disso mas, antes de ir para o hospital, ficava nervoso e tenso porque sabia o que ia encontrar. Na primeira vez “fui para lá na desportiva” mas nas seguintes a “minha mulher dizia que eu mudava muito”. “Não tinha queixas de dores mas era um mal estar generalizado” – recorda. Sentiu-se um doente privilegiado porque os familiares (esposa, filha ou irmã) levavam-lhe a comida ao hospital. “Nas refeições eu violentava-me para ter vontade de comer”. Elas “sofreram um calvário maior que o meu” porque “eu violentava a minha mão para levar a comida à boca”. Um processo doloroso mas sentiu que não tinha vocação para ser santo como relatam os livros dos santos. “Quero andar cá mais tempo”. Por outro lado, José Dias tinha a expectativa que o sofrimento o aproximasse mais de Deus. “Não sei se tal aconteceu”. E recorda: “Depois da comunhão não me sentia especialmente melhor. Lembro-me do meu pai – esteve acamado muitos anos – quando acabava de receber a comunhão ficava com os olhos brilhantes”. Percebo melhor a dor Os medicamentos e a oração foram essenciais para o desaparecimento das manchas pulmonares. “Confiava nos dois mas cada um deles com perspectivas diferentes”. E adianta: “Nunca pedi a Deus que me curasse mas que me desse força para eu viver em alegria este tempo”. Uma caminhada de aprendizagem visto que “conheci mais de perto a dor” e “aprendi a valorizar os gestos”. A fragilidade própria da doença deu-lhe também força para estimular os colegas de quarto. Apesar de “não ter jeito para visitador hospitalar”, este leigo de Coimbra procurou ser “um bocado de «Bom Samaritano»” Será que há um José Dias antes e um José Dias depois da doença? “Objectivamente, acho que não há diferenças substanciais” – respondeu rapidamente. Durante aquele tempo manteve as colunas no «Correio de Coimbra» e na revista «Além-Mar». “Foi violento mas impus a mim mesmo fazer isso”. Durante a Quaresma pessoal, José dias recebeu muitas cartas a encorajá-lo mas “não tinha coragem e força para responder”. Nunca se sentiu revoltado e “não estava à espera que Deus me tratasse melhor” devido ao facto de ser cristão. Ficou mais rico e “percebo melhor a dor”. E avança: “Fazia-me falta esta experiência porque andar a falar da opção pelos pobres sem ser pobre é complicado”. A companhia do profeta Jeremias Passou muitos dias no hospital e alguns deles sem se poder mexer. “Tiraram-me pele de um lado para enxertar no outro” – disse. Esteve cerca de um mês e meio com as costas flageladas e “percebi um bocadinho melhor a flagelação de Cristo”. Depois deste período critico, José Dias revela que a Bíblia era o seu livro de cabeceira. “Aproveitei para fazer uma reflexão sobre o profeta Jeremias – já gostava dele – mas aprofundei melhor o problema da vocação”. O sofrimento de Jeremias “ajudou-me imenso”. Para além deste livro do Antigo Testamento, José Dias contou que lia com frequência a última parte do Sermão da Montanha e a parábola do Filho Pródigo. No final da conversa, este pai de dois filhos disse – com um brilho nos olhos – que nunca desanimou. “Nunca me confrontei com Deus nem lhe exigi nada. Refilo mais com Deus na vida sã do que na doença”. E conclui: “Senti um bocadinho de comunhão com Jesus na Cruz”.

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Agência ECCLESIA

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