“Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro” (Jo 20, 1), também Pedro e João “corriam os dois juntos” (Jo 20, 4), em direção ao sepulcro. Eis, em poucas palavras, o retrato do que era a vida antes de Cristo: uma corrida que tinha a morte como meta; uma caminhada rumo à sepultura. Essa era, de facto, a marca cultural das maiores civilizações da antiguidade; baste recordar a afirmação, completamente aceite e vulgar, no helenismo, do ser-humano vir tratado como «mortal», e, no judaísmo, ninguém escapava ao destino (mortal) da Geena. Tudo era resumido na expressão do homem «ser-para-a-morte».
Infelizmente, hoje, o mundo ainda continua a assistir, estupefacto e escandalizado, a fenómenos que pertencem a esse reino pré pascal de morte e trevas. A guerra, e concretamente a guerra na Ucrânia, com toda a vaga de destruição e crime ali cometido, fazem-nos recuar para o tempo, onde, o cemitério era a única meta que se vislumbrava no horizonte da vida. Nunca as palavras de Jesus “a Luz veio ao mundo, e os homens preferiram as trevas à Luz, porque as suas obras eram más” (Jo 3, 19) foram de tanta atualidade.
Mas, eis que o sepulcro, lugar da morte e do fim, de súbito, vem transformado em fonte de um novo começo. A Ressurreição de Jesus abala, sejam as estruturas das velhas e superadas antropologias, seja a própria terra, uma vez que dentro desta, no seu seio, algo que vem do Alto a transforma em palco de uma irrupção inaudita. Sim, a Ressurreição consiste na comunicação da própria vida de Deus a Jesus; o esplendor da vida divina vem infundido e derramado na humanidade de um verdadeiro homem, que jazia morto no sepulcro e que, por isso, ressuscitou, recebe em si a vida eterna, definitiva, de amor.
A mesma vida nova, comunicada, que ressuscita Jesus Cristo, também por Ele, se estende a todos os que são batizados; ninguém se ressuscita a si mesmo, só o Pai, pelo Filho e no Espírito participa a Sua vida aos que salva. Então, a verdadeira Páscoa, isto é «a passagem», consiste na comunicação da Vida Plena que deixa de estar e permanecer apenas e só em Deus, para Ele próprio, a transmitir e comunicar, por Cristo, à humanidade. Mas Cristo foi quem inaugurou a economia da receção da Vida definitiva ressuscitada.
Mercê desta infusão, a própria humanidade é transformada: deixa de ser uma humanidade para a morte e passa a ser, humanidade para a plenitude de vida.
Portanto, esta novidade e plenitude vem comunicada no Batismo, e, como tal, todo o cristão a recebe. Então, já não é movido pela força imperiosa da morte, com os seus prazos irredutíveis, nem tão pouco pela inevitabilidade do pecado, mas sim pela força da graça que oferece a deslumbrante possibilidade de ser, de viver, e de fazer tudo em Cristo, sem bloqueios.
No horizonte da nossa referência, emerge a figura de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus feito homem que, a cada momento, divinizava os gestos que fazia, as ações que praticava, as ações que realizava, as palavras que proferia porque era Ele, enquanto verdadeiro Deus, o seu autor – agora, com a Ressurreição, a própria natureza humana vem divinizada; assim nós, cristãos: detentores da vida nova de ressuscitados, também os gestos que fazemos, as ações que praticamos, as palavras que proferimos devem ser divinas, não só porque feitas e ditas por pessoas divinizadas, pelo Batismo no Espírito, mas porque detêm o mesmo carater oblativo, amoroso, santificador dos gestos, ações e palavras do próprio Jesus Cristo.
A Ressurreição remete-nos, realmente, para a responsabilidade de sermos homens novos, a viver no patamar da plenitude, que é o nível da vida que possuímos. Ora, esse é o patamar do amor, a Deus e ao próximo, como também é o nível da santidade. Por isso, não se exige, ao cristão, menos que a excelência do amor incondicional aos irmãos e, por eles, dar a vida; tudo o que seja abaixo deste padrão é pré-pascal e contrário aos critérios da Ressurreição.
A Palavra de Deus é próspera em situar a presença da Memória, no interior da narração da Ressurreição de Jesus. Assim, São Pedro na primeira leitura, “Deus ungiu com a força do Espírito Santo a Jesus de Nazaré, que passou fazendo o bem e curando a todos os que eram oprimidos pelo Demónio, porque Deus estava com Ele.” (Act10, 38) E também os dois homens, vestidos de branco que apareceram às mulheres, junto ao sepulcro vazio, fazem apelo à memória «Lembrai-vos como Ele vos falou, quando estava na Galileia» e «Elas lembraram-se então das palavras de Jesus.» ( Lc 24, 6.8). Se a Memória é a gramática da história, a Ressurreição é a definitiva razão da Esperança, na medida em que escancara os horizontes do tempo, abrindo as portas da vida para a eternidade; a Páscoa, portanto, envolve memória e esperança numa única aliança ao serviço da vida. Realmente, cada acontecimento e fragmento da nossa existência, está destinado a ser Memória, enquanto cada gesto, cada experiência vivida, cada palavra dita, se torna, imediatamente, memória, recordação do passado. Agora, a Ressurreição transforma cada ato, cada elemento da vida em ato de esperança, porque a vida, em cada instante e vivência, já não é um mero álbum que se vai enriquecendo com o passar do tempo e o acumular de acontecimentos, mas, com a Ressurreição, a vida define-se como um caminho de novas etapas, construtoras de Esperança; cada instante do presente fica ao serviço do futuro e serve à sua edificação. A vida deixou de ser um álbum de páginas cerradas, e tornou-se um projeto que todos os dias é enriquecido com novos materiais para a sua construção. Que maravilhoso anúncio!
Por isso, hoje o nosso olhar fixa-se nas palavras ditas às primeiras testemunhas da Ressurreição: “Cristo, ressuscitou; não está aqui.” (Mc 16, 6) E, “não está aqui”, porque ele vive na vida de cada um; “não está aqui”, porque, agora, está em todos os ondes e em todas as circunstâncias. “Não está aqui”, porque a Sua Ressurreição fez de cada nesga da vida um lugar da Sua presença, vencedor de todas as mortes.
Acreditamos que as frentes de guerra – tanto geográficas, como as da interioridade de cada um – pela graça da Ressurreição, serão transformadas em rios de paz!
Acreditamos que, tal como aquele sepulcro, onde jazia o corpo de Jesus, foi transformado em fonte de vida e esperança, também o mundo deixará de ser um campo de martírio e de derramamento de sangue e se transformará num florido jardim de fraternidade. Acreditamos que o amor será sempre mais forte do que a morte. Acreditamos que, em todos os ângulos da terra, os homens dar-se-ão as mãos para se ajudarem reciprocamente e cessarão de enviar, uns contra os outros, misseis, balas ou drones.
Como dizia Jesus: “O Pai ama o Filho e tudo põe na sua mão.” (Jo 3, 35) Que o mundo sinta que, tanto o hoje, como o amanhã da humanidade, foram colocados nas mãos de cada mulher e de cada homem para os construírem na paz e no amor.
Basílica Real de Mafra, 17 de abril de 2022
D. Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança