HOMILIA DE SEXTA FEIRA SANTA 2022
Sexta-Feira Santa! Hoje, a Igreja já celebra o mistério da morte de Cristo com uma solene Liturgia da Palavra. Como dia de completo jejum, desde os inícios da Igreja, a Sexta Feira Santa nunca incluiu na sua vivência a celebração da Eucaristia. As leituras bíblicas seguem, segundo a ordem indicada por S. Justino, já no século II, as “Orações Solenes” ou “Oração Universal”.
No momento da celebração Eucarística, cumpre-se o rito da adoração da cruz, de origem jerosolimitana, pois já se realizava a adoração da cruz em Jerusalém desde o séc. IV, como atestam S. Cirilo, bispo daquela cidade e a peregrina Eteria no seu testemunho de peregrinação “Itinerarium”.
Conforme o uso romano, a celebração conclui com a comunhão Eucarística, distribuindo o corpo do Senhor consagrado em Quinta Feira Santa na Missa da Ceia do Senhor. Desde o Papa Inocêncio III (1198-1216), esta possibilidade de comunhão Eucarística era reservada somente ao Sacerdote Celebrante. Desde 1955, com a reforma da Semana Santa, levada a efeito pelo Papa Pio XII, tornou-se possível a comunhão a todos os fiéis.
A Sexta Feira Santa, com a sua liturgia exprime a teologia da cruz, inspirada no Apóstolo S. João. Não é o dia do luto da Igreja, mas o dia de uma amorosa contemplação do sacrifício horrendo, fonte da nossa salvação. O especto da humilhação e da morte é sempre imprescindivelmente unido da ressurreição e da purificação de Cristo. É, pois, neste sentido, que é típica a expressão “Sexta-feira Santa” e “Santa Paixão do Senhor”. Esta teologia da Cruz Salvífica emerge dos textos bíblicos que constituem a Liturgia da Palavra e que acabamos de acolher em nossas vidas, com Fé e sede de Deus. Assim, no Quarto Cântico do Servo de Jahvé, Jesus realiza completamente a figura do Servo ao fazer a oblação da Sua vida na Cruz, pelos homens pecadores, para louvor e glória de Deus. Mas a Sua Morte tem como fruto a Vida, vivida com Ele, no Pai; o texto sacerdotal da Carta aos Hebreus proclama que Jesus, Filho de Deus feito homem, é o Sacerdote único da Nova Aliança. A oblação que Jesus faz de si mesmo na Cruz realizará para sempre a Aliança entre Deus e os homens; a descrição da Paixão segundo S. João o discípulo amado de Jesus, único que O acompanhou na Sua Paixão até ao fim: pôde, por isso, deixar testemunho de tudo o que ele próprio presenciou e, melhor do que qualquer outro, pôde penetrar no mistério que os acontecimentos iam revelando: diante do procurador romano, Jesus afirma que é Rei, mas que o seu Reino não é deste mundo; Jesus é o cordeiro que vai ser imolado, mas a quem não foi quebrado nenhum osso, como a lei prescrevia em relação ao cordeiro pascal; João é o único evangelista que faz referência à presença da Mãe de Jesus junto à Cruz e as palavras que o Senhor lhes dirige, a Ela e a ele, como num solene testamento de amor; ele é também quem faz menção da ferida que a lança abriu no lado de Jesus e da qual saiu Sangue e Água «sinais do Sacrifício e do Espírito». Em São João nada de trágico na Morte de Jesus, mas só a majestade serena daquela Hora que anuncia a passagem pascal deste mundo para o Pai no Reino da Glória.
Na Sexta-Feira da Paixão e morte do Senhor, observamos religiosamente o jejum, significativamente chamado de “pascale”. Conforme sugere a Constituição Sacrosanctum Concilium, do II Concilio do Vaticano, nº 110, este jejum deve ser guardado dentro da sobriedade possível até à Eucaristia da Vigília Pascal, e citamos: «de modo a chegar com ânimo elevado e aberto às alegrias de Domingo da Ressurreição».
O jejum de Sexta Feira Santa é sinal sacramental da participação no sacrifício de Cristo, pois «chegaram os dias em que o Esposo lhes será tirado» por isso, como refere o Evangelista S. Lucas (5, 33-35). «os discípulos jejuarão».
Caríssimos irmãos, convido-vos a transfigurar as grandes cruzes da Humanidade e a encontrarmo-nos com Cristo em cada uma delas. Como não recordar nesta Sexta-Feira Santa a dor provocada por todas as guerras, autênticas feridas abertas no tecido da Humanidade?
Como não lamentar e não reparar o coração do Bom Deus, Criador e Pai de todos por massacres hediondos e perpetrados por cristãos contra Cristo, sem respeitar o apelo a tréguas pascais? Como não chorar com crianças e mães, com idosos e populações indefesas fugindo da morte, sem saber para onde nem porquê?
Unimo-nos aos desterrados, aos refugiados, aos sós no meio de muita gente, aos doentes, aos abandonados à indiferença, às famílias de luto, a todas as desumanidades e encontremos aí as gólgotas do século XXI, abraçando Cristo em cada ser humano despojado da sua dignidade.
O Apóstolo Paulo sintetiza a vivência desta Sexta-Feira Santa, afirmando: Amou-me e a Si mesmo Se entregou por mim» (Gal 2,21). Amemos com o Amor com que somos amados, socorrendo-nos da Mãe da Igreja, como João, recolhamo-nos à sua intercessão e ao testemunho da Sua Fé, e como Ela, de pé, permaneçamos juntos, de modo comprometido e pró-ativo, junto das grandes dores e vazios da humanidade em nossos dias, vivendo, no dizer do Papa Francisco, uma guerra aos pedaços.
Porque sabemos em quem cremos, partamos para o quotidiano das nossas vidas com o compromisso de sermos Discípulos Missionários da Esperança.
D. Francisco José Senra Coelho, Arcebispo de Évora
Dia 15 de abril de 2022