Professar a Fé vencendo tentações

Catequese Quaresmal do Bispo da Guarda 1. Estamos a iniciar a Quaresma e hoje subimos o primeiro degrau nesta nossa caminhada para a Páscoa. Caminhada que nós desejamos seja para progredir na formação da nossa Fé, seja para viver a conversão e a Penitência, seja principalmente para recentrar a nossa vida em Cristo morto e ressuscitado. Neste esforço por renovar a Fé em caminhada quaresmal, sabemos que não estamos sozinhos e por sua vez a nossa verdadeira conversão a Jesus Cristo e ao Seu Evangelho tem que dar frutos de partilha fraterna que também há-de ser renúncia em favor dos outros, principalmente os mais necessitados. Hoje os textos bíblicos escutados chamam a nossa atenção para a profissão da Fé e para as dificuldades que ela tem de enfrentar, incluindo as tentações a que está sujeita. 2. Os textos bíblicos hoje proclamados na nossa assembleia dominical começam por nos colocar perante a realidade da Profissão de Fé. Assim o Livro do Deuterónimo diz-se o que é e como se faz a Profissão da Fé do Povo de Deus do antigo Testamento no único Deus e Senhor do mundo e da história. A Profissão de Fé não consiste tanto em enunciar um conjunto de verdades sobre Deus e sobre a salvação do mundo e dos homens e mulheres de todos os tempos, como sobretudo em recordar cada um a si próprio e aos outros a história das suas relações com Deus. É isso o que se passa com a profissão de Fé do Povo de Deus do Antigo Testamento. Recorda-se a ida de José para o Egipto e com ele toda a sua família; recordam-se os tempos da opressão e da perseguição, mas sobretudo a intervenção libertadora de Deus através de Moisés para a aventura do Êxodo; recordam-se os sinais e os prodígios com que o braço libertador de Deus se fez anunciar; recorda-se a entrada na terra prometida sempre debaixo da protecção divina e finalmente a gratidão cultural expressa na oferta dos primeiros frutos da terra. Também a nossa Fé enraíza numa relação pessoal forte de cada um de nós com Deus revelado em Jesus Cristo. Jesus Cristo que nós queremos confessar na sua condição divina do Senhor; Jesus Cristo que ressuscitou dos mortos como primícias da ressurreição universal e da total transformação do mundo em Reino de Deus. Esta relação forte com Jesus Cristo na Fé conduz à salvação eterna, como diz S. Paulo, mas também e primeiro que tudo produz na nossa vida quotidiana abundantes frutos de Justiça. Isto significa que um dos critérios para avaliar a autenticidade da nossa Fé em Deus Pai e em Jesus Cristo Seu Filho, na força do Espírito, são os frutos de Justiça e caridade que existem ou não existem no nosso viver de cada dia. É esta também uma avaliação que queremos fazer de nós mesmos ao longo da Quaresma. De uma coisa estamos certos, sintonizando com o apóstolo S. Paulo: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo, o que significa que a Salvação de Deus em Nosso Senhor Jesus Cristo é para todos, não havendo, por isso lugar, para qualquer acepção de pessoas na intenção e na prática do mesmo Deus. Hoje para nós não está a ser fácil viver a Fé como para Jesus também não foi fácil cumprir a Sua Missão; Missão que o próprio Pai lhe confiou. O Evangelho de hoje resume as dificuldades que Jesus encontrou para cumprir a sua Missão. Teve de superar muitas tentações, como nós cristãos e comunidades cristãs também temos de saber enfrentar e vencer as tentações do mundo actual. O relato de S. Lucas sobre as tentações que hoje escutámos aponta-nos para as grandes dificuldades que o mundo de então colocava a Jesus no desempenho da Sua missão. Assim, Jesus depois de passar 40 dias sem comer, sentiu fome, o que é absolutamente normal para qualquer ser humano. A tentação materialista de dar resposta à Sua situação de grande necessidade com o pão comum teve assim toda a sua razão de ser. Parecia mais que legítimo e mesmo justo que Jesus pudesse satisfazer a sua fome de 40 dias em que esteve sem tomar alimento com o recurso a este pão comum. Mas Ele encontrou em si mesmo força para, com o seu gesto de recusa, apontar para novos horizontes da existência humana, porque, como Ele respondeu ao tentador, “nem só de pão vive o homem”. A tentação do poder e do domínio sobre o mundo e sobre os seres humanos foi outra. “Tudo isto te darei, se prostrado me adorares” – diz o tentador. Jesus reuniu forças, mais uma vez, para superar esta tentação, dizendo “Deus super omnis”, isto é que só ao Senhor Deus adorarás e só a Ele prestarás culto. E num outro quadro Jesus sentiu a tentação do comum dos mortais que é instrumentalizar Deus e a Religião colocando-os ao serviço de interesses pessoais ou de grupos. Esta tentação, que não perdeu nenhuma da sua actualidade, na sociedade de hoje, Jesus supera-a fazendo também a seu profissão de Fé na absoluta liberdade de Deus. 3. Tal como não foi fácil para Jesus cumprir a Sua Missão naquele lugar e naquele momento histórico concreto, inserido na cultura do seu povo e do seu tempo, também para nós, hoje e na cultura onde estamos inseridos, não é fácil professar e viver a Fé. De facto vivemos hoje numa cultura cujas raízes são profundamente cristãs e impregnadas de muitas tradições religiosas seculares e mesmo milenares, mas que estão a ser muito abaladas. E abaladas pela introdução de novos hábitos, de novos critérios de comportamento que muitas vezes não dignificam ou mesmo não respeitam as pessoas na sua autêntica verdade. Fazer a profissão de Fé nas circunstâncias actuais implica necessariamente dar nova vida a um mundo descristianizado, afastado da prática cristã, no qual, muitas vezes, as únicas referências cristãs são de ordem cultural, sejam as procissões dos passos ou da Semana Santa, seja o amentar das almas, sejam as via-sacras públicas, sejam as festas populares dos Santos ou outras. E mesmo estas referências cristãs – de ordem cultural continuam muito sujeitas à erosão, isto é, sujeitas a utilizações e interpretações desligadas da sua raiz, que, de facto, é o Mistério de Cristo. A Quaresma, de que hoje estamos a celebrar o 1º Domingo, é tempo especialmente propício para nos perguntarmos como cristãos e como comunidades cristãs sobre as formas de tornar a mensagem cristã acessível às novas culturas, isto é aos novos modelos actuais da inteligência e da sensibilidade. A Quaresma é tempo de exame de consciência, para nos perguntarmos sobre as novas formas de fazer compreender Cristo e a Sua Mensagem ao espírito moderno, que se apresenta grandemente orgulhoso com as suas extraordinárias descobertas e realizações, mas também com sinais de profundas humilhações por não conseguir resolver os problemas fundamentais das pessoas e assim lhes não poder transmitir razões que consigam fortalecer a esperança no futuro da família humana. Ao procurarmos viver e aprofundar a nossa fé no contexto cultural da actualidade cheio de muitas contradições como todos os dias constatamos, queremos, antes de mais, assumir com coragem as nossas responsabilidades de cidadãos e de cristãos. E entre essas responsabilidades nós vemos o necessário contributo da Fé em Jesus Cristo morto e ressuscitado para restituir a cada ser humano a sua dignidade de criatura “à imagem e semelhança de Deus”, subtraindo-o, quanto possível, à tentação antropocêntrica de se considerar independente do criador. É esta sem dúvida a grande tentação do mundo actual secularizado que continua a pretender levar a sua autonomia até ao limite desumanizante de negar o próprio Deus. Este é o grande drama do nosso tempo e a verdadeira raiz da crise das culturas na actualidade. A nossa profissão de Fé no meio de um mundo assim é também dizer às pessoas onde está a raiz do seu valor e da sua dignidade – está em serem imagem e semelhança de Deus; e que as culturas serão tanto mais humanas e humanizantes quanto mais conseguirem traduzir esta dimensão transcendente dos seres humanos. A nossa Profissão de Fé, num mundo assim, envolve também a coragem de intervir socialmente e na opinião pública para denunciar e tentar corrigir formas de cultura que agridem sentimentos e dimensões da pessoa humana que são fundamentais. Temos que saber dizer às pessoas que elas não foram criadas à imagem da cultura ou das culturas do seu tempo, portanto não podem ser prisioneiras de modelos de comportamento humano e social que lhes estão a ser impostos por essas culturas e frequentemente em contradição com as suas aspirações mais profundas. E a razão é que não são as culturas que determinam a natureza do ser humano, mas sim precisamente o contrário; a natureza humana é que é a medida da cultura e constitui a condição para que o homem e a mulher nunca sejam prisioneiros de nenhuma das suas culturas, mas afirmem sempre a sua dignidade pessoal, sabendo viver de acordo com a verdade profunda do seu ser. Ao pretendermos professar a nossa Fé no palco da vida social da actualidade para serviço ao mundo e às pessoas que o habitam, temos de evitar ceder também nós a qualquer das seguintes duas tentações. Uma delas é adaptarmos o nosso comportamento aos modelos sociais e à mentalidade dominantes só para sermos modernos, actualizados, prejudicando, assim a fidelidade aos valores da Fé e a valores humanos fundamentais. A outra é pretendermos continuar agarrados às linguagens do passado sobre a Fé, querendo ignorar que a história avança e que as realidades humanas actuais que a nossa Fé tem de saber iluminar de forma significativa são diferentes das do passado. Só a catequese integrada na formação permanente da Fé nos pode ajudar a superar com êxito estas duas tentações, como Cristo também soube vencer as tentações no deserto. Guarda, 25 de Fevereiro de 2007, +Manuel da Rocha Felício, Bispo da Guarda

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