Deus Caritas Est na Quaresma

Eduardo Borges de Pinho apresenta considerações à volta da recepção da primeira encíclica de Bento XVI “Normalmente os teólogos protestantes lêem com certa desconfiança as encíclicas papais. Sou um teólogo protestante, portanto, entro também nesta regra. Porém, não há regra sem excepções. Li a primeira encíclica de Bento XVI mais que uma vez. O texto impressionou-me, porque evoca no leitor evangélico uma sintonia que brota dum profundo consenso de vasto alcance ecuménico”. Esta afirmação de Eberhard Jüngel, professor em Tübingen e um dos maiores teólogos protestantes da actualidade (citada recentemente por Mons. Rino Fisichella, bispo auxiliar de Roma: cf. Zenit, 31.01.2007, “Deus caritas est”, un año después) é particularmente interessante, não só porque sublinha a importância singular da encíclica programática de Bento XVI como também vislumbra nela um amplo alcance ecuménico. Se o primeiro aspecto merece ser destacado – não é todos os dias que uma encíclica papal é assim reconhecida no seu valor “fora de portas”! -, o segundo aspecto não é de menor significado: o consenso ecuménico aqui detectado assenta no facto – para mim, o dado mais importante de todos – de que a encíclica de Bento XVI apresenta uma reflexão sobre o essencial da identidade cristã e sobre os pressupostos e os caminhos do testemunho desse “essencial cristão” na vida dos crentes e da Igreja: a prática do amor. Se assim é, mais justificada é a pergunta pela recepção que esta encíclica tem merecido entre nós. À surpresa inicial pela aparente simplicidade da encíclica e por um ou outro aspecto de reflexão menos habitual neste tipo de documentos (por exemplo, a relação entre o amor-eros e o amor-ágape) seguiu-se, na realidade, um interesse amplo nas nossas comunidades cristãs por conhecer o conteúdo da encíclica e por reflectir aprofundadamente sobre as suas consequências práticas? Falou-se clara e persistentemente nas nossas comunidades cristãs sobre a atenção que este documento merece e sugeriram-se concretamente formas de o aprofundar em processos de formação da fé? Sentiu-se abertura suficiente para a examinar com amplitude e profundidade os caminhos práticos através dos quais a acção caritativa da Igreja – a nível local, diocesano e nacional – se concretiza nas suas diversas expressões? Receio que a resposta a estas e a outras questões – certamente sempre com o risco de generalizações injustas! – tenha de ser, em grande parte, negativa. Provavelmente, a maior parte dos cristãos, mesmo de cultura média superior, ainda não leram esta encíclica (essa é a impressão que se colhe quando se coloca directamente a questão em encontros de cristãos). E em muito poucas comunidades, tanto quanto se pode deduzir pelos dados disponíveis, terá havido iniciativas concretas tendentes a dar a conhecer e a aprofundar o conteúdo desta reflexão papal (aliás, retomada agora dalguma forma na mensagem para a Quaresma 2007). Houve, certamente, sinais de sentido contrário: desde catequeses quaresmais a reflexões na comunicação social da Igreja e a iniciativas desenvolvidas pela Cáritas Portuguesa. E neste último caso é até justo reconhecer que a Cáritas não só promoveu alguns encontros de estudo sobre a “Deus Caritas Est” como acaba de publicar um interessante e útil “Guia para o estudo e a aplicação da Encíclica ‘Deus é amor’ de Bento XVI” (a tradução dum texto em língua espanhola, proveniente de São Salvador, que na sua estrutura sinaliza bem como estamos diante duma encíclica que interpela à formação, à aplicação prática e à oração). Mas, tudo avaliado e olhando ao panorama global, parece demasiado pouco para a importância do documento. Qualquer processo de recepção dum acontecimento, dum documento, duma orientação doutrinal ou prática, é sempre um processo longo no tempo (pouco mais dum ano é, pois, muito pouco tempo). Mas há aspectos que, na lentidão deste processo em concreto no nosso contexto e na aparente insensibilidade que aí se manifesta, merecem atenção, porque não deixam de ser preocupantes. Provavelmente, com este texto aconteceu (está a acontecer) algo de semelhante ao que sucede com muitos outros documentos eclesiais, tanto de âmbito universal como nacional: esses textos perdem-se nos limites da nossa comunicação interna eclesial e nos processos atrofiados de aprofundamento da fé que vão predominando por aí. Provavelmente também, não haverá grande disponibilidade mental e prática para, neste domínio do testemunho evangélico da caridade, questionar prioridades pastorais nas nossas comunidades e empreender indispensáveis reestruturações tanto a nível local como diocesano e nacional. Provavelmente ainda – e, a ser verdade, este seria o aspecto mais preocupante – na nossa rotina eclesial andamos demasiado distraídos com muitas outras coisas de teor religioso estrito, presas a hábitos de cristandade ou marcadas por prioridades jurídico-canónicas, com o risco de se perder a noção daquilo que, dentro duma correcta e indispensável “hierarquia das verdades”, é verdadeiramente essencial no acontecimento cristão e no testemunho da fé. Nesta ordem de ideias, parece claro que os processos de recepção da “Deus Caritas Est” merecem um esforço e uma atenção bem maiores. Para se ver, por exemplo, se nas nossas comunidades cristãs as três funções, os três “deveres” fundamentais da Igreja – anúncio, celebração, diaconia – estão verdadeiramente unidos e se realizam equilibradamente. Ou para se examinar como é que, nas situações concretas (da nossa vida, do nosso movimento, das nossas paróquias), o amor de Deus transparece no nosso agir de serviço aos outros. Ou ainda para verificar qual é a identidade, o perfil específico das nossas instituições caritativas e o modo como realmente funcionam? Ou também para apurar os critérios que devem orientar o serviço da caridade dos colaboradores dessas instituições. Ou, enfim, para nos perguntarmos pela sensibilidade que existe relativamente à Doutrina Social da Igreja e pela importância que se atribui à formação da consciência eclesial neste âmbito. Em termos da “hierarquia das verdades”, no sentido existencial-prático mais profundo da expressão, ninguém duvida – creio – que à pergunta pelo que, como cristãos, sempre de novo temos de ser e de fazer na busca de fidelidade ao Evangelho e ao serviço dos homens e mulheres do nosso tempo, a resposta se encontra no indicativo fundamental da caridade cristã. Nunca será sublinhado em demasia que, no horizonte do Deus de Jesus, o verdadeiramente essencial, o único que conta, é mesmo o amor. José Eduardo Borges de Pinho Professor da UCP

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