A dignidade da consciência

D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa 1. Ao sermos consultados sobre uma questão tão delicada como é a legalização do aborto, a resposta é pessoal e livre, empenhativa da própria consciência. Quanto mais grave é a questão, maior é a responsabilidade da consciência. É como se dependesse de cada um de nós permitir ou proibir a legalização do aborto. São momentos em que a responsabilidade da liberdade é enorme, pois cada um torna-se corresponsável da decisão que vier a ser tomada. Todos parecem estar de acordo que esta é uma questão de consciência, embora na maneira como o afirmam, nem sempre transpareça o sentido da sua dignidade. A consciência é o santuário mais íntimo da pessoa humana, expressão máxima da liberdade e da capacidade de dar sentido à própria existência, onde se afere o que é bem e o que é mal, onde se adopta o sentido radical da vida, onde se tomam as opções que a guiam e comprometem. A consciência é o encontro das mais nobres faculdades humanas: a inteligência, a vontade, a liberdade. Por isso, ela tem de ser iluminada pela verdade, sustentada pela capacidade de decisão e exprimir-se livremente. O exercício da liberdade deveria ser sempre uma opção de consciência. Não se pode violentar a consciência, pressionando-a, iludindo-a com falsas verdades, desviando-a do essencial da sua responsabilidade. Violentar a consciência é o mais grave atropelo da dignidade da pessoa humana. 2. Dada a sua dignidade e responsabilidade, a consciência precisa de ser iluminada pela verdade. Formar a própria consciência é sempre, mas sobretudo nas questões mais graves, procurar a luz da verdade. A consciência do cristão precisa de ser iluminada, não apenas pela luz natural, mas pela Palavra de Deus e pelo ensinamento da Igreja, coerente e unânime ao longo de uma longa tradição. Só a luz da verdade indica com clareza o caminho a seguir e a decisão a tomar. Neste caso concreto é preciso escutar o essencial dessa mensagem: toda a vida é um dom de Deus, só Deus é Senhor da vida, nenhuma decisão humana contra a vida é legítima e honesta. Este respeito pela vida radicaliza-se no mandamento novo do amor: amai-vos uns aos outros. Só no amor fraterno a consciência atinge a plenitude da sua dignidade. Isso aliás está expresso no quinto mandamento da Lei de Deus: “Não matarás nem causarás dano, a ti mesmo, ou ao teu próximo”. Ninguém pode fazer mal ao seu semelhante. Nem todos são capazes de acolher a luz da Palavra de Deus, que supõe a fé. Mas no caso do respeito pela vida, esta Palavra está impressa no coração de cada homem, é uma lei natural, que é parte constitutiva da dignidade do ser humano e que iluminará a consciência, se esta não for perturbada com mentiras ou meias verdades. 3. Situações como esta, em que uma comunidade inteira é convidada, ao mesmo tempo, a tomar uma decisão de consciência das mais empenhativas da liberdade humana, não são frequentes, penso mesmo que devem ser excepcionais, para não se tornarem ilegítimas. Pedir aos portugueses que, todos ao mesmo tempo, tomem uma decisão de tal gravidade, é muito mais que o vulgar exercício da democracia, em si mesma, como sistema político, orientada para a gestão da “coisa pública”. Não se pode perguntar, repetidamente, aos portugueses se aceitam a legalização do aborto, ao sabor dos ritmos políticos. 4. Neste tempo de esclarecimento, todos se devem confrontar com a verdade acerca da vida desde o seu início. Escutem, antes de mais, a voz íntima do seu coração, tantas vezes abafada pelos afectos e pelo barulho feito à volta desta questão. Escutem o testemunho da ciência, de médicos e psicólogos que nos têm vindo a proclamar a beleza da vida, desde o seu início, e dos traumas humanos provocados nas mulheres que abortam. Escutem o testemunho comovido de mulheres que abortaram e a alegria já manifestada por aquelas que venceram essa tentação e sentem hoje a alegria do filho que deixaram nascer. Escutemos, sobretudo, a Palavra de Deus e a voz da Igreja, que tem a doutrina que afirma, não por contradição, mas na fidelidade à verdade fundamental sobre a vida e sobre o homem. A defesa desta verdade, a Igreja fá-la por fidelidade, tantas vezes partilhando a dor de quem sofre este drama, e que ela toca ao vivo no mais discreto do seu ministério. Nesta abertura à verdade que ilumina a nossa consciência, temos de nos defender de alguns obstáculos: da pressão sobre nós exercida por visões ideológico-partidárias e por movimentos de opinião. Mas temos, sobretudo, de nos defender de meias verdades e, sobretudo, das inverdades que podem surgir no calor da campanha em favor da opção que se deseja. Antes da responsabilidade do voto, cada um de nós tem, neste momento, a responsabilidade de procurar a verdade, pois só ela nos iluminará. E isso faz-se escutando os outros, esclarecendo dúvidas, debatendo perspectivas. 5. No dia 11 de Fevereiro próximo, na solidão de um voto, cada um de nós estará sozinho com a sua consciência, tornando-se corresponsável de uma decisão grave para a vida de pessoas e para a sociedade como um todo. O momento do voto não é comparável àquele em que uma mulher, também sozinha, tem de tomar a decisão de abortar ou não. Aí a decisão é envolta em drama, diz respeito a uma vida concreta, a que tem no seu seio, e aí joga a sua dignidade e o seu futuro. Mas a nossa decisão tem também a densidade de decidir do destino de muitos seres humanos e da grandeza e dignidade da sociedade que somos. Transformar a possibilidade do aborto num direito adquirido, tem consequências de civilização. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca * Quinto de 5 textos (semanais) do Cardeal Patriarca de Lisboa, a respeito do Referendo sobre o Aborto

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top