SABER APRENDER – A reconstruir

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

O ano de 2021 não foi suficiente para sairmos da pandemia, mas muito se avançou em relação a 2020. Enquanto 2020 foi o ano da novidade sobre o que significava ficar em casa, confinados, no século XXI, o ano de 2021 foi o ano do efeito contrário que esse confinamento exerceu sobre nós. Por exemplo, no caso dos jovens, a sua saúde mental foi posta em causa, e o desemprenho nas aulas online foi o oposto, segundo a partilha de alguns dos meus alunos. A maneira de estarmos juntos também não é a mesma, mas todos estamos mais atentos ao quanto nos tocamos, à distância enquanto falamos, à colocação da máscara em espaços fechados para a tirarmos à saída e colocá-la de novo se nos cruzamos com alguém. De certo modo é necessário reconstruir e saber aprender como, mas a necessidade de reconstrução não é tanto exterior quanto interior.

Foto de Ryoji Iwata em Unsplash

Em termos na nossa psique, o próximo ano será necessário para reconstruir a esperança. O facto da pandemia ter-se tornado uma constante na nossa vida, ao longo destes dois anos construímos os hábitos que nos impedem, gradualmente, de sentir o pânico de ser infectados. Somos mais resilientes e valorizamos mais a possibilidade de estarmos juntos e nos reencontrarmos. Depois, a incerteza vivida abriu o lugar da vivência mais intensa do momento presente, crescendo a necessidade de estarmos mais atentos ao que vivemos em vez de andarmos ao sabor dos planeamentos. Lidámos com criatividade todas as emoções e construímos novos hábitos que abriram a nossa consciência para a fragilidade humana. Andávamos demasiado apegados às coisas grandes (grandes lançamentos, grandes eventos, grandes objectivos, grande quantidade de pessoas nos nossos encontros), e agora encontramos um valor maior nas coisas pequenas.

E mais profundo que a psique é a dimensão espiritual da nossa vida onde tivemos de reconstruir o modo de crescermos na vida profunda e no acompanhamento espiritual daqueles que pertencem às nossas comunidades. A maior consciência espiritual veio abrir o horizonte do valor da colectividade. O papa Francisco abriu a Igreja a um percurso sinodal onde temos a oportunidade de re-aprender a caminharmos juntos descobrindo o sentido e significado da participação, comunhão e missão. Mas o facto de termos sido “forçados” a viver alguns momentos de solitude, sem o devido acompanhamento, esses poderiam ter-se tornado fonte de solidão e, nalguns casos, talvez isso tenha acontecido. O facto da pandemia ter afectado o nosso corpo abre a mente à relação com Deus através do mesmo. Algo que vai para além de um pensamento em Deus, mas compreender como o relacionamento com Ele influi sobre a nossa biologia, por exemplo, explorado por Andrew Newberg e Mark Waldman em “Como Deus muda o teu cérebro” (não traduzido para português).

Interior também é a reconstrução do nosso relacionamento com o mundo natural de onde surgiu em minúsculo vírus que afectou profundamente a vida humana e os nossos comportamentos. Ao sermos forçados a nos retirarmos dos espaços naturais, vimos como, por todo o mundo, a natureza reencontrou-se com muitos espaços, naturalizando-os e devolvendo-lhes a uma beleza natural ímpar com a sua presença. O ministério do papa Francisco em relação à ecologia colocou no nosso percurso espiritual o relacionamento com a natureza onde (desde há muito) a palavra-chave parece-me ser a da comunhão.

São imensos os exemplo de comunhão presente na natureza, desde árvores que comunicam entre si através de uma rede de fungos, partilhando nutrientes, mesmo que sejam de espécie diferentes, como descoberto por Suzanne Simard. Ou acácias que vivem em comunhão com colónias de formigas para se protegerem do apetite das girafas como pude testemunhar num programa de divulgação científica. A comunhão com o mundo natural ajudou-nos a reconstruir o valor do silêncio e da presença que aumentam a nossa sensibilidade para a experiência misteriosa da presença de Deus quando nos apercebemos como tudo está ligado com tudo.

Apesar da experiência da conectividade ter aumentado nos últimos dois anos, será que se tornou expressão de relacionalidade? Estarmos conectados fez-nos descobrir uma faceta virtual da vida cuja dimensão aumentou exponencialmente com o alvor das redes sociais. Mas tem-se verificado resultar numa desconexão com a vida real, conduzindo muitas pessoas ao isolamento que é a antítese da relacionalidade. Na relacionalidade nunca nos sentimos sós, mas reconstruímos tudo o que foi quebrado pelas dificuldades e dores com laços de presença, apoio mútuo e compreensão profunda do valor de amadurecimento que cada sofrimento pode induzir.

Nem tudo é possível reconstruir. Aqueles que não estão mais entre nós por causa da pandemia e não tivemos oportunidade de estar uma última vez para vivermos a graça do perdão, são relacionamentos que ficaram por reconstruir. As decisões passadas e que ficaram por cumprir e os prazos ultrapassados para fazer o que acabámos por não fazer são histórias que ficaram por reconstruir. Mas tudo o que podemos fazer é aprender com as nossas falhas e permanecer no caminho da reconstrução.

Reconstruir é commumente aceite como “construir-de-novo”, mas creio que o ano de 2022 pode ser o tempo construir-o-novo. E por novo entendo como “o que renova” por assentar a esperança que nos move na criatividade como via de profundidade para crescer e amadurecer a nossa vida. A imaginação humana não tem senão os limites que nos impomos a nós próprios. Quando nos abrimos à criatividade que é fruto de uma relação profunda com Deus que renova todas as coisas (Ap 21, 5), encontramos o sentido a percorrer num mundo que parece ter perdido a bússola. Por vezes pode implicar sair da nossa zona de conforto e bolha daquilo em que estamos de acordo, sair das correntes de informação para abrir espaço à escuta interior, tomar maior contacto com a realidade física à nossa volta ou, ainda, reconstruir os espaços de encontro para descobrirmos novas formas de estarmos presentes e viver em comunidade. O futuro não existe como pré-definido, mas para ser reconstruído. Espero que os tempos difíceis que vivemos nos tenham dado a sabedoria para dar passos sensatos nessa reconstrução.


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