A dignidade humana do nascituro

Associação Portuguesa de Canonistas Pela sua actualidade e para contribuir para o aprofundamento das questões que estarão em foco para o referendo de 2007, a Direcção da Associação Portuguesa de Canonistas decidiu divulgar de novo a sua reflexão antropológica elaborada na altura do referendo de 1998 Saudamos todos quantos estão a favor de uma cultura da vida e se esforçam com sacrifício para que todos os homens, mesmo os ainda não nascidos, possam levar uma vida concorde com a sua dignidade. Tem causado admiração que, na nossa sociedade portuguesa, se admita geralmente que a vida humana começa no momento da concepção – de acordo com os resultados da ciência genética actual – e, no entanto, amplos sectores não reconheçam que, desde então, se trata de uma pessoa humana cuja dignidade deve ser respeitada. Enquanto, para a filosofia clássica, pessoa humana é o indivíduo de natureza humana – e isto verifica-se no embrião concebido –, o pensamento contemporâneo ocidental insiste em que, para o embrião ser considerado pessoa humana, tem de ser reconhecido como tal pela sociedade. Esta concepção filosófica, que se afasta da realidade natural mas sintoniza com as aspirações da razão humana que se crê autónoma, tem as raízes em Hegel e, como se sabe, fundamentou o holocausto judeu, justificado numa sociedade embebida pelo nacional-socialismo de Hitler; agora começa a subverter a nossa cultura humanista. Que seria de uma sociedade em que um ser humano estivesse pendente do seu reconhecimento social para ser respeitado como pessoa? Estaria justificada qualquer discriminação das minorias indefesas – imigrantes, ciganos, idosos, deficientes físicos ou mentais, crianças, doentes de SIDA –, desde que assim o entendesse a sociedade, pronunciando-se num Parlamento representativo ou num referendo popular? Ou, antes pelo contrário, é a sociedade que se autoclassifica segundo a atenção que dispensa a esses seres humanos indefesos? Não bastaria que uma mãe reconhecesse no ser que leva no ventre o seu filho, para este ser considerado pessoa? Mas no caso de ela não o reconhecer e até não o desejar, seria legítimo abortá-lo, do mesmo modo que em tempos antigos se permitia aos pais o infanticídio? Não seria mais humano, neste caso, evitar o traumatismo psicológico à mãe, ajudando-a a dar à luz e recolhendo depois a criança alguém benévolo? “Não abortem! Dêem à luz e depois entreguem-me os vossos filhos”. Foi a exortação que nos deixou Madre Teresa de Calcutá. Pergunta-se se não é uma exigência social dos nossos tempos defender a liberdade da mulher a abortar. Igualmente se poderia perguntar pela liberdade do toxico-dependente para drogar-se, do traficante para fornecer a droga, do ladrão para roubar. Certamente, a sociedade deve reconhecer cada vez uma mais ampla liberdade ao cidadão: em primeiro lugar, para realizar o bem; e também nem sempre terá de impedi-lo de fazer o mal, desde que não afecte o bem dos outros. Com o aborto, afecta-se antes de mais a vida do nascituro, ser humano distinto da sua mãe, embora dependente dela para sobreviver (como o doente depende do médico e da enfermeira, e até dos aparelhos, sem que perca por isso a sua dignidade humana). A própria fecundação artificial veio mostrar sensivelmente que o embrião pode formar-se e sobreviver independentemente da sua mãe natural, desde que encontre algum ventre que o acolha. Mas o aborto afecta também muitas outras pessoas relacionadas com o nascituro: por exemplo, o seu pai, os parentes, os amigos, outras pessoas da mesma cidade ou país, qualquer homem que se sinta solidário com ele; para não falar do trauma moral e psicológico causado à própria mãe. A chaga da escravatura terminou quando se conseguiu convencer a sociedade que os escravos tinham a mesma dignidade humana originária dos homens livres. Eles já eram pessoas, antes de a sociedade lhes reconhecer. A partir daí, passaram a gozar gradualmente dos direitos e liberdades que antes desfrutavam apenas os homens livres. A pena de morte foi abolida quando a sociedade se convenceu de que os criminosos, mesmo os mais cruéis e empedernidos, não perdiam a sua dignidade humana originária, pelo que era desumano infligir-lhes torturas e a própria morte. Do mesmo modo, será preciso que a sociedade de hoje se convença, não só de que se deve proteger as crianças da fome, das drogas, dos maus tratos em casa, da exploração do sexo, mas também de que o nascituro é a pessoa mais pobre, incapaz de se defender e de gritar por socorro, mais dependente do que os diminuídos profundos, e ao mesmo tempo a esperança de uma nova geração e o termómetro para o verdadeiro afecto dos adultos. Os grandes heróis da humanidade começaram por ser um embrião, alguns deles em circunstâncias tão penosas que hoje seriam condenados ao aborto. O direito da Igreja não tem dificuldade em ver no nascituro uma pessoa humana, porque sabe pela Revelação que todo o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus e redimido pelo Filho de Deus, Jesus Cristo. O nascituro é pessoa por vontade do Todo-Poderoso, que assim o criou e o ama desde toda a eternidade. Por isso, o direito da Igreja aplica uma pena muito grave a quem comete ou contribui efectivamente para o aborto: a excomunhão, que é fundamentalmente privação dos sacramentos da Igreja. É a pena mais severa da Igreja, mas tem em conta as atenuantes, para já não incorrer nela; e, mesmo no caso de incorrer nela, se a pessoa se arrepende, é perdoada. A pena objectiva ajuda a sensibilizar e a evitar o aborto, e é um aguilhão para o arrependimento do pecador; a suavidade na sua aplicação e a facilidade no perdão têm em vista a fragilidade do pecador. Se o embrião humano, desde a sua concepção, tem a dignidade de pessoa, como se pode concordar com a legalização e o alastramento do aborto?

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