Investigações modernas sobre Jesus de Nazaré

Raniero Cantalamesa 1. No rastro do ciclone O ciclone “O Código da Vinci” de Dan Brown não tem passado em vão. No seu rastro estão a florescer, como sempre acontece nestes casos, novos estudos sobre a figura de Jesus de Nazaré com a intenção de revelar o seu verdadeiro rosto, coberto até agora sob o manto da ortodoxia eclesiástica. Até quem diz que se distancia disso, mostra-se influenciado de várias maneiras. O tal filão pertence na Itália o livro de Corrado Augias e Mauro Pesce, um jornalista de fama e um historiador de profissão, Investigação sobre Jesus (Inchiesta su Gesú, Mondadori, 2006). Este presta-se a uma avaliação global de toda a literatura sobre o “verdadeiro Jesus da história”, que se publica aos montes na Europa e na América, inspirando novelas, filmes e espectáculos. Examino-o com a intenção de levar um pouco de clareza sobre toda a questão, em nome da “História das origens cristãs” que ensinei durante anos na Universidade Católica de Milão. Existem, como é natural, diferenças entre um e outro autor, entre o jornalista e o historiador. Porém, não quero cair eu mesmo no erro que, mais que qualquer outro, compromete, em minha opinião, esta “investigação” sobre Jesus, que é o de ter em conta única e exclusivamente as diferenças entre os evangelistas, jamais as convergências. Parto, então, do que é comum aos dois autores, Augias e Pesce. Pode-se resumir assim: existiram, no princípio, não um, mas vários cristianismos. Uma das suas versões tomou vantagem sobre as demais; estabeleceu, segundo o próprio ponto de vista, o cânon das Escrituras e se impôs como ortodoxia, relegando as demais à categoria de heresias e suprimindo a sua lembrança. Contudo, actualmente podemos, graças a novas descobertas de textos e a uma rigorosa aplicação do método histórico, restabelecer a verdade e apresentar finalmente Jesus de Nazaré por aquilo que foi verdadeiramente e que ele mesmo tentou ser, isto é, algo totalmente diferente do que as diversas Igrejas cristãs têm pretendido até agora que fosse. Ninguém contesta o direito de historiadores a aproximar-se da figura de Cristo, prescindindo da fé da Igreja. É o que a crítica, crente e não crente, vem fazendo desde há ao menos três séculos com os instrumentos mais refinados. A questão é se a presente investigação sobre Jesus recolhe de verdade, mesmo de forma divulgadora e acessível ao grande público, o fruto deste trabalho, ou se em contrapartida traz logo de início uma drástica escolha dentro dele, acabando por ser uma reconstrução de parte. Considero que, lamentavelmente, este segundo é o caso. O filão elegido é o que vai desde Reimarus a Voltaire, a Renan, a Brandon, a Hengel, e hoje a críticos literários e “professores de humanidades”, como Harold Bloom e Elaine Pagels. Completamente ausente está a contribuição da grande exegese bíblica, protestante e católica, desenvolvida no pós-guerra, em reacção às teses de Bultmann, muito mais positiva acerca de possibilidades de tirar, através dos evangelhos, o Jesus da história. Nos relatos da paixão e morte de Jesus, por exemplo, em 1998, publicou Raymond Brown (“o mais distinto entre os estudiosos americanos do Novo Testamento, com poucos rivais em âmbito mundial”, segundo o New York Times) uma obra de 1608 páginas. Foi definida pelos especialistas do sector como “a medida segundo a qual todo futuro estudo da Paixão será medido”, porém de tal estudo não há rastro no capítulo dedicado aos motivos da condenação e da morte de Cristo, nem figura na bibliografia final, que refere diferentes títulos de obras em inglês. Ao uso selectivo dos estudos corresponde uma utilização igualmente selectiva das fontes. Os relatos evangélicos são adaptações posteriores quando desmentem a própria tese; são históricos quando concordam com ela. Até a ressurreição de Lázaro, apesar de estar atestada somente por João, se levada em consideração, se pode servir para fundar a tese da motivação política e de ordem pública da prisão de Jesus (pág. 140). 2. Mas que dizem os apócrifos? Entremos no debate mais directo da tese de fundo do livro. Antes de tudo a propósito das descobertas de novos textos que haveriam modificado o marco histórico sobre as origens cristãs. Trata-se essencialmente de alguns evangelhos apócrifos descobertos no Egipto em meados do século passado, sobretudo os códices de Nag Hammadi. Sobre eles se realiza uma operação bastante subtil: atrasar o mais possível a data de composição dos evangelhos canónicos e adiantar o mais possível a data de composição dos apócrifos para podê-los usar como fontes válidas alternativas aos primeiros. Porém, aqui se choca contra um muro não facilmente ultrapassável: nenhum evangelho canónico (tampouco o de João, segundo a crítica moderna) se deixa fechar mais além do ano 100 depois de Cristo, e nenhum apócrifo se deixa fechar antes de tal ano. (Os mais ousados chegam, com conjecturas, a fechá-los no início de III ou em meados do século II). Todos os apócrifos tomam ou supõem os evangelhos canónicos; nenhum evan-gelho canónico respeita um evangelho apócrifo. Um exemplo actualmente mais em voga: dos 114 ditos de Cristo no Evangelho copta de Tomé, 79 têm um paralelo nos Sinópticos, 11 são variações das parábolas sinópticas. Somente três parábolas não estão atestadas em outro lugar. Augias, seguindo o rasto de Elaine Pagels, crê poder superar este desvio cronológico entre os Sinópticos e o Evangelho de Tomé, e é instrutivo ver de que maneira. No Evangelho de João assiste-se, segundo o autor, a uma clara tentativa de desacreditar o apóstolo Tomé, a uma verdadeira perseguição contra ele, comparável à de Judas. Prova: a insistência na incredulidade de Tomé! Hipótese: o autor do Quarto Evangelho não quer talvez desacreditar as doutrinas que já em seu tempo circulavam sob o nome de apóstolo Tomé e que confluirão depois no evangelho que leva seu nome? Assim se supera o desvio cronológico. Esquece-se, desta maneira, que o evangelista João põe precisamente na boca de Tomé a mais comovedora declaração de amor a Cristo (“Iremos também nós morrer com ele”) e a mais solene profissão de fé nele: “Senhor meu e Deus meu!” que, segundo muitos exegetas, constitui a coroação de todo seu evangelho. Se Tomé é um perseguido pelos evangelhos canónicos, que dizer do pobre Pedro com tudo o que referem dele! A menos que não tenha ocorrido, também no seu caso, para desacreditar os futuros apócrifos que levam o seu nome… Porém o ponto principal não é tampouco o da data; é o dos conteúdos dos evangelhos apócrifos. Dizem exactamente o contrário daquilo pelo que se invoca a sua autoridade. Os dois autores sustentam a tese de um Jesus plenamente introduzido no judaísmo, que não tentou inovar nada a respeito daquilo; porém os evangelhos apócrifos professam todos, uns mais e outros menos, uma ruptura violenta com o Antigo Testamento, fazendo de Jesus o revelador de um Deus diferente e superior. A revalorização da figura de Judas no evangelho homónimo explica-se nesta lógica: com a sua traição, ele ajudará Jesus a libertar-se do último resíduo do Deus criador, o corpo! Os heróis positivos do Antigo Testamento passam a ser negativos para eles, e os negativos, como Caim, positivos. Jesus é apresentado no livro como um homem que somente a Igreja posterior elevou à categoria de Deus. Os evangelhos apócrifos, ao contrário, apresentam um Jesus que é verdadeiro Deus, porém, não verdadeiro homem, revestido somente da aparência de um corpo (docetismo). Para eles, o que representa dificuldade não é a divindade de Cristo, mas a sua humanidade. Está-se disposto a seguir os evangelhos apócrifos sobre este seu terreno? Poder-se-ia alongar a lista de equívocos no uso dos evangelhos apócrifos. Dan Brown baseia-se neles para endossar a ideia de um Jesus que exalta o princípio feminino, que não tem problemas com o sexo, que se casa com Madalena… E para provar isso apoia-se no Evangelho de Tomé onde se diz que, se se quiser salvar, a mulher deve deixar de ser mulher e fazer-se homem! O facto é que os evangelhos apócrifos, em particular os de matriz gnóstica, não foram escritos com a intenção de narrar factos ou ditos históricos sobre Jesus, senão para transmitir certa visão de Deus, de si mesmos e do mundo, de natureza esotérica e gnóstica. Basear-se neles para reconstruir a história de Jesus é como basear-se em Assim Falava Zaratustra não para conhecer o pensamento de Nietzsche, mas o de Zaratustra. Por isso no passado, mesmo sendo já conhecidos quase todos, ao menos em amplas passagens, ninguém pensou jamais em poder utilizar os evangelhos apócrifos como fonte de informações históricas sobre Jesus. Somente a nossa era mediática, em busca exasperada de novidades comerciais, está a fazer isso. Existem, certamente, fontes históricas sobre Jesus fora dos evangelhos canónicos, e é estranho que se deixem praticamente de fora desta “investigação”. A principal é Paulo, que escreveu menos de trinta anos depois da morte de Cristo e depois de ter sido um orgulhoso opositor seu. O seu testemunho somente é discutido a propósito da ressurreição, porém para ser naturalmente desacreditado. Não obstante, que há de essencial na fé e nos “dogmas” do cristianismo que não se encontre já atestado (em sua substância, se não na forma) em Paulo, isto é, antes que ele tivesse tempo de absorver elementos alheios? Se pode, por exemplo, definir não histórico e fruto da preocupação posterior de não alarmar a autoridade romana sobre o confronto entre Jesus e os fariseus e a própria mentalidade legalista de um grupo deles, sem levar em conta o que diz Paulo, que foi um deles e que precisamente por isso tinha perseguido firmemente os cristãos? Porém, sobre este assunto voltarei mais adiante, ao falar da história da Paixão. 3. Jesus: judeu, cristão ou as duas coisas? Chego agora ao ponto principal compartilhado pelos dois autores. Jesus foi um judeu, não um cristão; não tentou fundar nenhuma religião nova; considerou-se enviado somente para os judeus, não também para os pagãos; “Jesus é muito mais próximo dos judeus religiosos de hoje que dos sacerdotes cristãos”; o cristianismo “nasce nada menos que na segunda metade do século II”. Como conciliar esta última afirmação com a notícia dos Actos dos Apóstolos (11,26) segundo a qual não mais de sete anos depois da morte de Cristo, por volta do ano 37, “em Antioquia foi donde, pela primeira vez, os discípulos receberam o nome de ‘cristãos’”? Plínio, o Jovem (uma fonte não suspeita!), entre os anos 111 e 113, fala repetidamente dos “cristãos”, de quem descreve a vida, o culto e a fé em Cristo “como em um Deus”. Pela mesma altura, Inácio de Antioquia fala cinco vezes do cristianismo como diferente do judaísmo, escrevendo: “Não é o cristianismo que acreditou no judaísmo, mas o judaísmo que acreditou no cristianismo” (Carta aos Magnésios, 10,3). Em Inácio, isto é, em inícios do século II, não somente encontramos atestados os nomes “cristão” e “cristianismo”, mas também o conteúdo deles: fé na plena humanidade e divindade de Cristo, estrutura hierárquica da Igreja (bispos, presbíteros, diáconos), até uma clara alusão ao primado do Bispo de Roma, “chamado a presidir na caridade”. Antes mesmo, pelo demais, de que entrasse no uso comum o nome de cristãos, os discípulos eram conscientes da identidade própria e expressavam-na com termos como “os crentes em Cristo”, “os do caminho”, ou “aqueles que invocam o nome do Senhor Jesus”. Entre as afirmações dos dois autores que acabo de referir há uma que merece ser considerada seriamente e discutir à parte. “Jesus não tentou fundar nenhuma religião nova. Era e continuou a ser judeu”. Absolutamente verdadeiro: com efeito, tampouco a Igreja, em rigor, considera o cristianismo como uma “nova” religião. Se considera junto a Israel (uma vez que se dizia injustamente “em lugar de Israel”) é herdeira da religião monoteísta do Antigo Testamento, adoradores do mesmo Deus “de Abraão, de Isaac e de Jacob. (Após o Concílio Vaticano II, o diálogo com o Judaísmo não é levado adiante pelo organismo vaticano que se ocupa do diálogo entre as religiões, mas pelo que se ocupa da unidade dos cristãos!). O Novo Testamento não é um início absoluto, é o “cumprimento” (categoria fundamental) do Antigo. Pelo mais, nenhuma religião nasceu porque alguém tentou “fundá-la”. Acaso Moisés tentou fundar a religião de Israel, ou Buda o budismo? As religiões nascem e tomam consciência de si depois, por parte daqueles que recolheram o pensamento de um Mestre e o fizeram razão de vida. Porém, feita esta precisão, pode-se dizer que nos evangelhos não há nada que faça pensar na convicção de Jesus de ser portador de uma mensagem nova? E as suas antíteses: “Ouvistes o que foi dito…, Eu, porém, vos digo” com as que reinterpreta até os dez mandamentos e se põe ao mesmo nível de Moisés? Elas enchem toda uma secção do evangelho de Mateus (5, 21-48), isto é, o mesmo evangelista sobre o que faz referência, no livro, para afirmar o pleno judaísmo de Cristo! 4. Legado para os judeus, para os pagãos ou para ambos? Teria Jesus a intenção de dar vida a uma comunidade sua e previa que a sua vida e doutrina teriam continuidade? O facto indiscutível da escolha dos doze apóstolos parece precisamente indicar que sim. Mesmo deixando de lado o grande mandato: “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” (alguém poderia atribuí-lo, em sua formulação, à comunidade pós-pascal), não se explicam de outra forma todas aquelas parábolas cujo núcleo originário contém justamente a perspectiva de um alargamento aos gentios. Pense-se na parábola dos vinhateiros homicidas, dos trabalhadores da vinha, no dito respeito a que os últimos serão os primeiros, ou sobre muitos que “virão do Oriente e do Ocidente para sentar-se à mesa com Abraão”, enquanto que outros serão excluídos, e outras inumeráveis afirmações… Durante a sua vida Jesus não saiu da terra de Israel, excepto alguma breve viagem aos territórios pagãos do Norte. Porém, isto explica-se com a sua convicção de ter sido enviado antes de tudo para Israel, para depois levá-lo, uma vez convertido, a acolher em seu seio todas as gentes, segundo as perspectivas universalistas anunciadas pelos profetas. É muito curioso: existe todo um filão do pensamento judeu moderno (F. Rosenzweig, H. J. Schoeps, W. Herberg) segundo o qual Jesus não teria vindo para os judeus, mas somente para os gentios. Segundo Augias e Pesce em contrapartida, Ele teria vindo somente para os judeus, não para os gentios. Há que agradecer a Pesce que não aceita liquidar a historicidade da instituição da Eucaristia e a sua importância na comunidade primitiva. Este é um dos pontos nos que mais emerge o inconveniente assinalado ao princípio, o de levar em conta somente as diferenças, e não as convergências. Os três Sinópticos e Paulo unanimemente atestam o facto quase com as mesmas palavras, porém para Augias isto conta menos que o facto de que a instituição seja calada por João e que, ao referi-la, Mateus e Marcos tenham “Este é o meu sangue”, enquanto que Paulo e Lucas têm “Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue”. A palavra de Cristo: “Fazei isto em memória de mim”, pronunciada em tal ocasião, recorda o Êxodo 12,14 e mostra a intenção de dar ao “memorial” pascal um novo conteúdo. Não por nada, Paulo em pouco tempo falará de “nossa Páscoa” (1 Co 5, 7), distinta da dos judeus. Se à Eucaristia e à Páscoa se acrescenta o facto incontroverso da existência de um baptismo cristão desde o dia seguinte à Páscoa, que progressivamente substitui a circuncisão, temos os elementos essenciais para falar, se não de uma nova religião, de uma forma nova de viver a religião de Israel. Quanto ao cânon das Escrituras, é certo o que afirma Pesce (pág. 16) a respeito de que o elenco definitivo dos actuais vinte sete livros do Novo Testamento foi fixado somente com Atanásio no ano 367, porém não se deveria silenciar o facto de que o seu núcleo essencial, composto pelos quatro evangelhos mais treze cartas paulinas, é muito mais antigo. Formou-se até o ano 130 e no final do século II goza já da mesma autoridade que o Antigo Testamento (fragmento Muratoriano). “Igual Paulo, como Jesus, – se disse – não é um cristão, mas um judeu que permanece no judaísmo”. Também isto é certo; não diz acaso ele mesmo: “São judeus? Também eu! Até eu mais que eles!”? Porém, isto não faz mais que confirmar o que acabo de advertir sobre a fé em Cristo como “cumprimento” da lei. Por um lado, Paulo sente-se no próprio coração de Israel (do “resto de Israel”, precisará ele mesmo); por outro, separa-se dele (do judaísmo de seu tempo) com sua atitude para com a lei e a sua doutrina da justificação mediante a graça. Sobre a tese de um Paulo “judeu e não cristão” seria interessante ouvir o que pensam os próprios judeus… 5. Responsável por sua morte: o Sinédrio, Pilatos ou os dois? Merece discussão à parte o capítulo do livro de Corrado Augias e Mauro Pesce sobre o processo e a condenação de Cristo. A tese central não é nova. Começou a circular depois da tragédia da Shoa e foi adoptada por aqueles que propugnavam nos anos sessenta e setenta a tese de um Jesus zelota e revolucionário. Segundo esta tese, a responsabilidade da morte de Cristo recai principalmente, talvez até exclusivamente, em Pilatos e na autoridade romana, coisa que indica que a sua motivação é mais de ordem política que religiosa. Os evangelhos desculpam Pilatos e acusam os chefes do judaísmo para tranquilizar as autoridades romanas sobre o assunto e mantê-las amistosas. Esta tese nasceu de uma preocupação justa que hoje todos compartilhamos: cortar de raiz todo o pretexto de anti-semitismo que tanto mal tem causado ao povo judeu por parte dos cristãos. Porém, a ofensa mais grave que se pode fazer a uma causa justa é defendê-la com argumentos erróneos. A luta contra o anti-semitismo deve ser situada num fundamento mais sólido que uma discutível (e discutida) interpretação dos relatos da Paixão. O distanciamento do povo judeu, enquanto tal, à responsabilidade pela morte de Cristo, repousa em uma certeza bíblica que os cristãos têm em comum com os judeus, porém que lamentavelmente por muitos séculos foi estranhamente esquecida: “Sim, a pessoa que peca é a que morre! O filho não sofre o castigo da iniquidade do pai, como o pai não sofre o castigo da iniquidade do filho” (Ez 18,20). A doutrina da Igreja conhece um só pecado que se transmite por herança de pai a filho, o pecado original, nenhum mais. Já assegurada a recusa do anti-semitismo, desejaria explicar porque não se pode aceitar a tese do total distanciamento das autoridades judaicas a respeito da morte de Cristo e portanto da natureza essencialmente política dela. Paulo, na mais antiga de suas cartas, escrita por volta do ano 50, apresenta, da condenação de Cristo, a mesma versão fundamental dos evangelhos. Diz que os “judeus mataram o Senhor Jesus” (1 Ts 2,15), e sobre os factos decorridos em Jerusalém pouco tempo antes de sua chegada à cidade ele devia estar melhor informado que nós, os modernos, havendo, em certa altura, aprovado e defendido “obstinadamente” a condenação do Nazareno. Durante esta fase mais antiga o cristianismo considerava-se mesmo destinado principalmente a Israel. As comunidades nas quais se tinham formado as primeiras tradições orais confluídas depois nos evangelhos estavam constituídas na sua maioria por judeus convertidos. Mateus, como observam também Augias e Pesce, está preocupado por mostrar que Jesus veio cumprir, não a abolir, a lei. Se havia portanto uma preocupação apologética, esta teria induzido a apresentar a condenação de Jesus como obra mais dos pagãos que das autoridades judias, a fim de tranquilizar os judeus da Palestina e da diáspora em relação com os cristãos. Por outro lado, quando Marcos e, com segurança, os demais evangelistas escrevem o seu evangelho já tinha sucedido a perseguição de Nero. Isso deveria impulsionar a ver em Jesus a primeira vítima do poder romano e nos mártires cristãos que tinham sofrido a mesma sorte que o Mestre. Tem-se uma confirmação disso no Apocalipse, escrito depois da perseguição de Domiciano, no que Roma se faz objecto de uma injúria feroz (“Babilónia”, a “Besta”, a “prostituta”) por causa do sangue dos mártires (Ap 13 ss.). Pesce tem razão ao divisar uma “tendência anti-romana” no evangelho de João (pág. 156). Porém, João é também quem mais acentua a responsabilidade do Sinédrio e dos chefes judeus no processo contra Cristo: como se concilia isto? Não se podem ler os relatos da Paixão ignorando tudo o que os precede. Os quatro evangelhos atestam, pode-se dizer que em cada página, um confronto religioso crescente entre Jesus e um grupo influente de judeus (fariseus, doutores da lei, escribas) sobre a observância do sábado, sobre a atitude com os pecadores e os publicanos, sobre o puro e o impuro. Jeremias demonstrou a motivação anti-farisaica presente em quase todas as parábolas de Jesus. O dado evangélico é tanto mais crível enquanto que o confronto com os fariseus não é em absoluto geral e por preconceito. Jesus tem amigos entre eles (um é Nicodemos); encontramos Jesus, às vezes, comendo na casa de algum deles; estes aceitam ao menos falar com ele e levá-lo a sério, diferentemente dos saduceus. Sem excluir portanto que a situação posterior tenha influído em carregar ulteriormente as tintas, é impossível eliminar todo o confronto entre Jesus e uma parte influente da liderança judia de seu tempo, sem desintegrar completamente os evangelhos e fazê-los historicamente incompressíveis. A obstinação do fariseu Saulo contra os cristãos não tinha nascido do nada e não levara consigo de Tarso! No entanto, uma vez demonstrada a existência deste confronto, como se pode pensar que ele não tenha feito, ainda que contrariado, alguma coisa no momento do ajuste final de contas e que as autoridades judias se tivessem decidido por denunciar Jesus a Pilatos unicamente por temor a uma intervenção armada dos romanos? Pilatos não era certamente uma pessoa sensível a razões de justiça, como preocupar-se da sorte de um desconhecido judeu. Era um sujeito duro e cruel, disposto a reprimir com sangue o mais mínimo indício de revolta. Tudo isso é muito certo. Porém, ele não tenta salvar Jesus por compaixão para com a vítima, mas somente por porfia contra os seus acusadores, com os quais estava em marcha uma guerra surda desde a sua chegada a Judeia. Naturalmente, isso não diminui em absoluto a responsabilidade de Pilatos na condenação de Cristo, que recai sobre ele não menos que sobre os chefes judeus. Não é coisa, sobretudo, de querer ser “mais judeu que os judeus”. Das notícias sobre a morte de Jesus, presentes no Talmud e em outras fontes judaicas (por mais tardias e historicamente contraditórias que sejam), emerge algo: a tradição judia jamais negou uma participação das autoridades religiosas do tempo na condenação de Cristo. Não fundou a própria defesa negando o facto, senão em todo caso negando que o facto, do ponto de vista judaico, constituía delito e que a sua condenação fora uma condenação injusta. Uma versão, esta, compatível com a das fontes neotestamentárias que, enquanto por uma parte tiram à luz a participação das autoridades judias (dos saduceus talvez mais que dos fariseus) na condenação de Cristo, por outra parte frequentemente a excluam, atribuindo-a à ignorância (Lc 23,34; Hch 3, 17; 1 Co 2,8). É o resultado a que chega também Raymond Brown, no seu livro de 1608 páginas “La muerte del Mesías”. Uma nota à margem, mas que toca um ponto bastante delicado. Segundo Augias, Lucas atribui a Jesus as palavras: “Porém àqueles inimigos meus, os que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-los aqui e matai-os diante de mim” (Lc 19, 27), e comenta dizendo que “é em frases como estas que cobram forças os partidários da ‘guerra santa’ e da luta armada contra os regimes injustos”. Há que precisar que Lucas não atribui tais palavras a Jesus, mas ao rei da parábola que está a narrar, e que não se podem transportar tal qual da parábola à realidade todos os detalhes do relato parabólico, e que em qualquer caso há que transpô-los do plano material para o espiritual. O sentido metafórico daquelas palavras é que aceitar ou recusar a Jesus não carece de consequências. É uma questão de vida ou morte, porém vida e morte espiritual, não física. A guerra santa não tem nada a ver. 6. Um balanço É hora de encerrar esta minha leitura crítica com alguma reflexão conclusiva. Não compartilho muitas respostas de Pesce, porém respeito-o reconhecendo-lhe pleno direito de cidadania a uma investigação histórica. Muitas delas (sobre a atitude de Jesus para a política, os pobres, as crianças, a importância da oração na sua vida) são inclusive iluminadoras. Alguns dos problemas suscitados – o lugar de nascimento de Jesus, a questão dos irmãos e das irmãs dele, o parto virginal – são objectivas e debatidas inclusive entre historiadores crentes. Porém não são estes problemas que farão permanecer ou cair o cristianismo da Igreja. Menos justificada numa “investigação” histórica sobre Jesus me parece a atenção com que Augias recolhe todas as insinuações sobre supostos vínculos homossexuais existentes entre os discípulos, ou entre ele mesmo e “o discípulo que amava” (mas não tinha que estar apaixonado pela Madalena?), como também a detalhada descrição de escabrosos sucessos de algumas mulheres presentes na genealogia de Cristo. Da investigação sobre Jesus fica-se com a impressão de que se passa, às vezes, a falatório sobre Jesus. Porém, o fenómeno tem uma explicação. Sempre existiu a tendência de revestir Cristo com as roupagens da própria época ou da própria ideologia. No passado, se bem discutíveis, tratava-se de causas sérias e de grande alento: o Cristo idealista, socialista, revolucionário… A nossa época, obcecada com o sexo, não consegue pensar nele mais que concentrado em problemas sentimentais. Considero que o facto de haver situado juntas uma visão de corte jornalístico declaradamente alternativa com uma visão histórica também radical e minimalista levou a um resultado no conjunto inaceitável, não somente para o homem de fé, mas também para o historiador. Ao final da leitura, um pergunta-se: como o fez Jesus, que não trouxe absolutamente nada novo a respeito do judaísmo, que não quis fundar nenhuma religião, que não realizou nenhum milagre nem ressuscitou mais que na mente alterada de seus seguidores, como o fez, repito, para converter-se no “homem que mudou o mundo”? Uma certa crítica parte com a intenção de dissolver estas roupagens postas a Jesus de Nazaré pela tradição eclesiástica. Porém, no final, o tratamento revela-se tão corrosivo que dissolve tudo em volta. A força de dissipar os “mistérios” sobre Jesus para reduzi-lo a um homem comum acaba por criar um mistério ainda mais inexplicável. Um grande exegeta inglês, falando da ressurreição de Cristo, diz: “A ideia de que o imponente edifício da história do cristianismo seja como uma enorme pirâmide situada sobre um facto insignificante é certamente menos crível que a afirmação de que todo o acontecimento – o dado de facto mais o significado inerente a ele – tenha ocupado realmente um lugar na história comparável ao que lhe atribui o Novo Testamento” (Cf. H. Dodd). A fé condiciona a investigação histórica? Inegavelmente, pelo menos em certa medida. Porém, creio que a incredulidade a condiciona enormemente mais. Se um se aproxima da figura de Cristo e dos evangelhos como não crente (é o caso, creio perceber, pelo menos de Augias) o essencial já está decidido de partida: o nascimento virginal não poderá senão ser um mito, os milagres frutos de sugestão, a ressurreição produto de um “estado alterado da consciência”, e assim sucessivamente. Algo, no entanto, nos consola e nos permite seguir respeitando-os reciprocamente e continuar o diálogo: se nos divide a fé, nos une em compensação “a boa fé”. Nela os dois autores declaram ter escrito o livro e nela asseguro que o li e discuti. (Tradução adaptada para Português por António Jesus Cunha, Voz Portucalese)

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