Homilia de Entrada na diocese de Aveiro de D. António Francisco Santos Solenidade da Imaculada Conceição Sé catedral, 8 de dezembro de 2006 «Feliz a nação cujo Deus é o Senhor, o povo que Ele escolheu como Sua herança» (Salmo 33 (32), 12). 1. AO DEUS ETERNO E SANTO – NA UNIDADE DO TEMPO E DA HISTÓRIA Há precisamente um ano, concelebrava, na Basílica de S. Pedro, a Eucaristia da Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Maria. Evocava-se, nessa celebração, presidida pelo Santo Padre Bento XVI, o 40.º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II. Eu recordava, nesse mesmo dia, o aniversário da minha ordenação presbiteral e louvava a Deus pela graça de o festejar na comunhão, que a proximidade física tornava ainda mais intensa, com o sucessor de Pedro e com bispos, sacerdotes e fiéis de todo o mundo, congregados em Roma. É nesta unidade do tempo e da história e na comunhão da Igreja que, diariamente, acolho a vida e a fé, a vocação e o ministério deixando-me modelar e guiar por Deus que é Amor – Deus caritas est (1Jo 4,8). É o Deus eterno e santo, uno e trino, que “faz maravilhas” (Salmo) e que é Bendito porque “nos abençoou com todas as bênçãos espirituais em Cristo” (2ª Leitura); é esse Deus que me envia como bispo à Igreja de Aveiro para continuar, em ininterrupta sucessão apostólica, a missão dos pastores que me antecederam. A todos quero recordar, louvar e agradecer na pessoa de D. António Baltasar Marcelino meu imediato predecessor, semeador sempre dedicado, generoso e incansável da Boa Nova do Reino e construtor interpelativo e corajoso de um diálogo necessário e lúcido da Igreja com a sociedade do nosso tempo. Sinto estar também, connosco, D. Manuel de Almeida Trindade que, no recolhimento do silêncio e da oração, continua a ser uma bênção para a Igreja de que tomou posse como Bispo a 8 de Dezembro de 1962 e que hoje serve com a diligência da oferta duma vida amadurecida. Deus envia-me para esta diocese, já rica de história Agradeço-vos o acolhimento caloroso e fraterno que desde o primeiro momento me dispensastes. A ninguém perguntarei “donde vem, quem é e o que faz”. Para mim cada um de vós é um irmão. Convosco sou cristão; para vós sou bispo. É neste espírito que vos saúdo, irmãos sacerdotes, diáconos, religiosos, religiosas, consagrados, seminaristas e leigos, individualmente ou integrados em ministérios e movimentos apostólicos. Saúdo igualmente todas as famílias e instituições do espaço diocesano, e não esqueço que este ano pastoral vos está particularmente dedicado. Saúdo-vos caríssimos jovens e crianças, realidade do presente, esperança da Igreja, herdeiros do futuro e certeza de um amanhã cheio de luz, de encanto e de fé em Aveiro. O meu pensamento e a minha oração colocam, desde esta primeira hora, no Coração de Deus, todos quantos, fragilizados pelo sofrimento, pela doença ou pelas incertezas e provações da vida, não estão connosco, mas a quem eu me sinto enviado, com os mesmos sentimentos do bom samaritano do Evangelho (Lc 10, 29-37). Volto-me, assim, com redobrado afecto, através de vós e da comunicação social – cujo trabalho muito prezo e cuja presença muito agradeço – para os pobres e doentes, para os idosos sem ninguém e para as vítimas da injustiça e da violência, do esquecimento, da solidão, do abandono. Para todos vós, queridos irmãos, orientarei, em permanência, a minha solicitude pastoral e a minha solidariedade cristã. Saúdo as autoridades judiciais, civis, militares e académicas que me honram com a sua presença e a quem asseguro total disponibilidade para trabalhar, no respeito pela diversidade e especificidade de missões e de objectivos, com espírito de leal e eficaz colaboração em ordem ao progresso de Aveiro, cidade e diocese, e ao bem das suas gentes, meta que é comum a todos. Conduzem-me a esta querida Igreja de Aveiro e acompanham-me, nesta hora, várias Igrejas irmãs com os seus Pastores, sacerdotes e fiéis em tão grande e expressivo número: a Igreja de Lamego onde, na minha paróquia natal de Tendais, concelho de Cinfães, recebi o baptismo e em cuja Catedral fui ordenado presbítero por D. António Xavier Monteiro e bispo por D. Jacinto Tomás Botelho, meu mestre, irmão e amigo; a Igreja de França onde trabalhei vários anos ao serviço da pastoral da emigração e em missão de estudos; a Igreja de Braga, sede metropolitana a que pertencemos e que hoje, uma vez mais, me envolve com o carinho e a dedicação inexcedíveis a que me habituou nos dias, breves mas intensos, que ali vivi, como bispo auxiliar, em comunhão tão fraterna com o Senhor Arcebispo Primaz, D. Jorge, e com o Senhor D. Antonino. Saúdo, também, o Senhor Arcebispo emérito D. Eurico Nogueira e o Senhor D. Carlos Pinheiro, assim como todos os irmãos bispos cuja presença me sensibiliza, ajuda e encoraja. É devida uma particular referência e um sentido testemunho de gratidão ao Senhor D. Luís Quintero Fiúza, Bispo de Orense, em Espanha. Saúdo com afecto cordial e comunhão fraterna os representantes de outras confissões cristãs que com a Igreja de Aveiro e comigo quisestes partilhar a alegria e a oração desta hora. As Cartas Apostólicas, que consignam a Bula da minha nomeação e expressam a comunhão de fé e a colegialidade episcopal e apostólica, vinculam-me ao Santo Padre Bento XVI a quem testemunho a minha união fraterna e a minha obediência filial e que sei e sinto muito próximo pela presença dedicada de Monsenhor Luigi Roberto, representante do Senhor Núncio Apostólico em Portugal 2 – NOSSA SENHORA, A ESTRELA DO MAR, NOSSA MÃE Escolhi este dia para iniciar o serviço pastoral nesta amada Igreja de Aveiro, rezando frente ao túmulo de Santa Joana Princesa, nossa Padroeira e beijando o chão sagrado da sua Sé Catedral, porque a vida, a vocação sacerdotal e o ministério episcopal a que fui chamado remetem-me, sem cessar, para a Mãe “a grande Crente que, repleta de confiança se coloca nas mãos de Deus, abandonando-se à Sua vontade” (Bento XVI- Homilia de 8.12.2005). Invoco-A com terna devoção filial desde o primeiro momento do meu ministério episcopal em Aveiro e n’Ela contemplo o rosto e o coração da minha Mãe, a mulher humilde e crente, solícita e corajosa que, no silêncio e no sofrimento da doença, constitui para mim uma graça e uma bênção, contínua moldura da minha vida, orientação do meu caminho e do sentido do meu ministério. Obrigado, Mãe. Quando, na conclusão do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI declarava a Virgem Maria “Mãe da Igreja”, todos os padres conciliares – entre eles D. Manuel de Almeida Trindade, bispo de Aveiro -, no mesmo instante e de modo espontâneo se levantaram e aplaudiram de pé, prestando homenagem, num só sentir, à Mãe de Deus e nossa Mãe. A mãe e os filhos são sempre inseparáveis. Esta união é um hino à vida: à vida das pessoas e à vida da Igreja; à vida desta querida Diocese de Aveiro que escolheu a Igreja dedicada a Nossa Senhora da Glória para sua Catedral. Indelevelmente unidas a Cristo, Nossa Senhora e a Igreja são igualmente inseparáveis entre si. Em Cristo, a Igreja tem a sua origem, a sua fonte e o seu fundamento; em Maria, tem o seu paradigma e o seu modelo. A Virgem Imaculada configura a Igreja, acompanha-a e protege-a nos seus caminhos. Vós sois, Senhora, a “stella maris”, a aurora da salvação e Glória da nossa Catedral, em cujo Coração santo e imaculado nos acolhemos, como em regaço materno. Vós sois a Mãe terna e abençoada, testemunha por excelência de uma fé inquebrantável, a Quem confio esta muito amada Igreja de Aveiro e a quem me consagro como seu bispo e humilde servo. 3 – UM MINISTÉRIO DE ESPERANÇA A Palavra de Deus da liturgia deste dia apresenta-nos a Virgem de Nazaré, jovem humilde e digna, escolhida de Deus, imaculada e cheia de graça, morada pura, viva e santa do Espírito Santo e Mãe do Messias que estava para vir: Ele, o Redentor do Homem. Por outro lado, a narração poético-sapiencial do Génesis (I Leitura), propõe-nos a chave de interpretação do sentido redentor da luta entre o homem e a serpente, entre a humanidade e os poderes do mal, entre a cultura da vida, da beleza e da esperança e a cultura do medo, do vazio e da morte. A “descendência da Mulher” sairá vencedora desta luta no palco da história: Nossa Senhora é o primeiro sinal dessa vitória. Maria está presente na aurora dos grandes dias da história da salvação: no proto-evangelho das origens, na plenitude dos tempos em que a promessa se cumpre no Natal do Messias e no nascimento da Igreja no Pentecostes. A nossa redenção e o caminho libertador da humanidade e da história começam a aproximar-se no “Sim”, no Fiat generoso e livre desta Mulher que aceita ser a Mãe do Salvador. A saudação do Anjo inicia o advento do Natal perene e anuncia a Páscoa definitiva. A Igreja é, no seu mistério, Encarnação continuada e presença no mundo do Ressuscitado, pelo Espírito Santo. Para a Igreja peregrina, Maria é a Mãe de “consolação, de bondade e de esperança” (Bento XVI, Ibidem). Na manhã de Pentecostes sob o olhar materno de Maria e repletos dos dons do Espírito Santo, os Apóstolos venceram o medo, deixaram as suas terras e seguranças, os seus barcos e redes e partiram. Partiram ao encontro das pessoas, famílias e multidões; ao encontro das aldeias, vilas e cidades, numa contínua abertura até aos confins do mundo a partir da própria vivência do Evangelho. E as comunidades cristãs começaram a surgir. E os pescadores do lago fizeram-se ao mar, para que aqui e agora acreditemos em Jesus Cristo, vivo e ressuscitado, e ouçamos proclamar o Evangelho, abrindo clareiras de sabedoria e de esperança para a humanidade. É com o mesmo espírito do Pentecostes que inicio a minha missão em Aveiro. Estou certo de que não esperais que eu faça os meus planos pastorais, mas sim que, como discípulo de Cristo e apaixonado do Evangelho, me deixe conduzir pelo Espírito da Sabedoria e da Comunhão. Esta é a hora de acolher Deus e de fazer meus os planos já assumidos e os programas oportunamente elaborados. Quero, todavia, desde já, confiar à vossa oração e reflexão algumas motivações profundas e convicções firmes, que animarão o meu viver e o meu ministério, para que este seja sempre ministério de esperança, de bondade, de comunhão. Que eu saiba, Senhor, testemunhar a esperança cristã e o ânimo evangelizador a partir desta Sé, para que a Igreja de Aveiro seja âncora e farol para todos, crentes e não crentes. Dai-me coragem, Senhor, para confirmar e conduzir, pela oração e pela acção, a Igreja que me confiastes, para que seja uma Igreja atenta à Vossa voz e aberta aos problemas humanos, às exigências do nosso tempo e aos desafios da cultura. Ensinai-nos a todos a olhar para diante, a caminhar em frente, a “fazer-nos ao largo”, neste oceano imenso do mistério santo de Deus e da urgência do Absoluto, dando prioridade à cultura vocacional e à solícita e incessante procura do essencial, na vida e na missão dos sacerdotes, diáconos, religiosos e leigos. 4 – UM MINISTÉRIO DE BONDADE – SERVIDOR DAS BEM-AVENTURANÇAS Sentado no Monte, diria de olhar voltado para a faina da pesca e para as lides do mar, Jesus proclama as bem-aventuranças (Mt 5,1-12). Inscreveu, assim, este sonho na alma da multidão que O seguia e imprimiu no coração dos discípulos este ideal nunca plenamente cumprido nem totalmente realizado, mas continuamente desejado e sempre procurado. Ser feliz é o sonho do homem. Nesta cidade de nobres pergaminhos na defesa da liberdade e de reconhecido prestígio no campo do ensino, da ciência e da investigação, as bem-aventuranças oferecem-nos, em linguagem que o tempo não desgasta e em paradigmas que os séculos não destroem, uma das mais belas sínteses do Evangelho e Carta Magna de um humanismo integral, como proposta de paz, anúncio de esperança e semente de renovação. Vivamos a boa nova e a beleza de um Cristianismo que não se cansa de proclamar as bem-aventuranças: com alegria, com perseverança e com misericórdia. “Feliz o povo que Ele escolheu para Sua herança”… O mundo pós-moderno precisa de encontrar na Igreja palavras, gestos, atitudes e vidas inteiras que anunciem e revelem que ser cristão é ser feliz, coerente, compreensivo, verdadeiro, desprendido, puro de coração, livre, construtor da paz, justo e irmão. Que esta Igreja de Aveiro continue a ser ousada na caridade e criativa nas razões e nos conteúdos da nossa alegria cristã, procurando sempre – “amar a Deus e servir”-, contribuindo, assim, para a santidade de todos nós, para o bem da humanidade e para a beleza do mundo, onde o religioso reencontre lugar e cidadania. 5 – UM MINISTÉRIO DE COMUNHÃO Jesus ensinou-nos a preparar e a preceder os momentos maiores e decisivos e os percursos de todas as horas com tempos de silêncio, de oração e de contemplação. O Cenáculo e o Calvário, a Eucaristia e a Cruz revelam-nos a plenitude redentora da doação de Cristo ao Pai, expressa nas palavras In manus Tuas (Lc 23,46) que assumi como meu lema episcopal. Convido-te, Igreja de Aveiro a contemplar as maravilhas de Deus, a confirmar e a ajudar a crescer na fé a comunidade dos crentes. Convido-te, Igreja de Aveiro, a oferecer ao mundo a evangelizar, rumos e razões para escolher a vida, para acolher o dom de Deus e para assumir a dignidade da nossa filiação divina. Convido-te, Igreja de Aveiro a promover a fraternidade, a construir o progresso e a consolidar a justiça social. Convido-te, Igreja de Aveiro, a abrir novos horizontes à inteligência, à vida e à cultura humanas. Para nós, a Eucaristia faz a Igreja, é centro e vértice do nosso viver, fonte do serviço incondicional às causas do homem e profecia desse mundo de fraternidade e de justiça. Somos uma diocese nova, recém-restaurada. Mas o caminho já percorrido é grande e belo, com as etapas marcantes de dois Sínodos diocesanos a cujos dinamismos me vinculo. É meu dever assumi-los. É meu desejo continuá-los. Há vidas doadas a Deus, à Igreja e ao Seu Povo, que hoje e sempre devemos recordar, agradecer e merecer. Nestas vidas doadas quero destacar a vocação e a missão dos sacerdotes. No padre-pastor está presente o bispo-pastor. Estar convosco, irmãos sacerdotes, é estar com a diocese e viver, através de vós, a comunhão eucarística e eclesial com os diáconos, consagrados e leigos. Asseguro-vos, a todos, disponibilidade atenta e acolhedora e incentivo solícito e fraterno. Peço-vos, Senhor nosso Deus, por intercessão de Nossa Senhora a Imaculada Conceição e de Santa Joana, Princesa de Portugal, nosso modelo de fé e nossa Padroeira, que me ensineis a unir o magistério e a profecia, a memória e o testemunho, a fidelidade à história e a ousadia missionária de caminhos novos, a gratidão e a esperança e, assim, nas belas expressões de S. Paulo, me faça “tudo para todos” e “tudo fazendo por causa do Evangelho”, por Cristo e no Espírito, “Deus seja tudo em todos” (1Cor 9,22-23; 15,28). Ámen. D. António Francisco dos Santos, Bispo de Aveiro