Homilia do Bispo da Guarda na Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus 1. Celebramos hoje, na oitava do Natal, a Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus e também o Dia Mundial da Paz. Iniciamos um novo ano sob o signo da protecção de Maria Santíssima e prontos para acolher nas nossas vidas, de pessoas e de comunidades, o sublime dom de Deus que é a Paz. Neste Dia Mundial da Paz, o Papa Bento XVI convida-nos a voltar a nossa atenção para a Pessoa humana entendida como o verdadeiro coração da Paz. Isto quer dizer que só haverá paz quando cada pessoa humana for apreciada, valorizada em si mesma, quando os seus direitos forem por inteiro respeitados e lhe forem criadas todas as condições materiais e de outras ordens necessárias ao seu desenvolvimento perfeito e integral. E ao colocarmos a pessoa humana no coração da Paz, vemos, primeiro que tudo, a urgência de defender para ela o direito à vida. Pois, que podem interessar todos os outros bens se faltar o suporte-base de todos eles que é a existência? O direito a viver leva consigo o direito a ter uma vida digna, de que faz parte a liberdade, incluindo a capacidade de decidir sobre o seu próprio futuro e de participar nas decisões que envolvem o futuro da sociedade e do mundo. Implica o direito à igualdade fundamental de natureza entre todas as pessoas, de tal maneira que ninguém possa ser discriminado por razões de cultura, cor da pele, opções ideológicas e religiosas ou outras. Implica ainda que sejam recusadas compreensões redutoras daquilo que é o ser humano, nomeadamente a recusa de o compreender reduzido à sua componente material e económica. Colocar a pessoa humana no centro de todas as decisões, políticas ou outras, exige também um redobrado respeito pela natureza, que é o “habitat” natural de todas e cada uma das pessoas. Hoje é cada vez mais decisiva a consciência de que o futuro da qualidade de vida das pessoas passa por defender a natureza, os seus recursos, que hão-de servir para as gerações actuais e para as que virão depois de nós. Colocar a pessoa no centro exige que os direitos humanos sejam defendidos e promovidos quer pelos Estados, quer por instituições para tal vocacionadas, de âmbito nacional e também internacional. O que está em causa na construção da paz é, em primeiro lugar, garantir a todas e cada uma das pessoas o direito à vida e vida com a máxima qualidade possível. 2. A Palavra de Deus, neste primeiro dia do Ano e solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, começa por nos falar da necessidade que todos temos de contar com a bênção divina em todos os momentos da nossa vida. Sentirmos que somos permanentemente acompanhados e abençoados por Deus é a realidade mais importante de toda a nossa vida e dará sempre mais peso positivo e valor acrescentado ao tempo que somos chamados a viver como a grande oportunidade para a nossa salvação. Também para o autor do Livro dos Números, entre os maiores bens incluídos na bênção de Deus está o dom da paz; paz que, como diz o Papa Bento XVI, na sua mensagem para o Dia de hoje, é ao mesmo tempo um dom e uma responsabilidade. Ela é um dom que vem de Deus, mas a exigir compromisso sério de todos os cidadãos para que sejam erradicadas do meio das relações entre os seres humanos todas as razões que possam conduzir à guerra. Jesus Cristo, Príncipe da paz, é o grande dom de Deus à humanidade, como nos lembra hoje a Carta aos Gálatas. Ele vem para resgatar os seres humanos de todas as prisões que os ligam a desumanidades e elevá-los à condição de filhos de Deus. É a condição de filhos de Deus, e mesmo já o facto de todos sermos suas criaturas, a grande razão transcendente capaz de garantir a concórdia entre todos os homens e mulheres. No Evangelho de hoje, nós gostamos de nos rever na atitude dos Pastores, que vão felizes adorar o Deus Menino, deitado na manjedoura, sob o olhar atento de Maria Sua Mãe e de S. José. Na sua simplicidade e na sua pobreza, souberam descobrir naquele Menino, envolto em panos como todos os outros e deitado numa manjedoura, o próprio Filho de Deus, Salvador da Humanidade. Tinha sido esse o sinal que lhes fora dado pelos anjos e eles foram capazes de o interpretar. Voltaram entusiasmados e com vontade de dizer a toda a gente as razões da sua alegria, que é também alegria para toda a humanidade. 3. Hoje, Dia Mundial da Paz, como dissemos, somos convidados a colocar a Pessoa Humana como tal no centro das nossas atenções porque ela é, como diz o Papa Bento XVI, o coração da Paz. E queremos olhar para a pessoa humana com toda a sua dignidade e enquanto sujeito de direitos, o primeiro dos quais é o direito à vida. Sem o respeito sagrado por este direito fundamental de todas e cada uma das pessoas, o direito à vida, os outros de nada valem. A vida humana, de facto, é a maravilha das maravilhas e, como tal, deve merecer não apenas o respeito e o cuidado de todos os cidadãos, mas também o empenho positivo do Estado e das leis na sua defesa e na sua promoção. A primeira função das leis que regulam a sociedade é criar todas as condições para que a vida humana, presente em todos e cada um dos cidadãos, se desenvolva e cresça. Ora, a vida em si mesma é um longo processo, uma longa caminhada na história; tanto na história geral da humanidade como na história pessoal de cada ser humano. No que à história pessoal de cada um de nós diz respeito, a nossa vida apresenta-se como um longo percurso, desde o seu início no seio materno até à plenitude da sua realização que, pela Fé, sabemos ter dimensão de eternidade. No início do seu processo, a nossa vida começou quando éramos ainda só o embrião, mas onde estavam já contidas todas as potencialidades para o seu desenvolvimento. Todas essas potencialidades estavam já, do ponto de vista físico, na maravilha do código genético, mas também lá estavam do ponto de vista espiritual, pela força que vem da participação na vida de Deus. Sendo assim, nunca é lícito tratar com menos respeito a vida nas suas primeiras etapas de crescimento, sob pretexto de ainda não ser vida humana em toda a sua plenitude. E aqui insere-se a tentação e o drama do aborto. Sim, porque é de verdadeiro drama que se trata, quando alguém decide interromper a vida de um ser humano ainda não nascido, ou simplesmente colaborar nessa decisão ou na sua execução. Um drama que gera sofrimento espiritual indescritível, sobretudo na mulher que aborta. Estamos de acordo em que toda a sociedade se deve empenhar, por todos os meios legítimos ao seu alcance, para erradicar este drama. Mas também pensamos, em nome do carácter sagrado da vida e da dignidade da mulher, que a legalização do aborto não é o caminho. Este drama do aborto é já muito antigo, embora nas sociedades modernas tenha adquirido contornos específicos. O que no aborto é relativamente novo, embora tenhamos de considerar isso um grande retrocesso civilizacional, é a tentativa de o normalizar, tirando-lhe a gravidade ética de que se reveste. Para sermos honestos, na abordagem deste grande problema humano temos de responder com coragem à pergunta fundamental que é a seguinte: o embrião humano e o feto são ou não são um ser humano, desde o primeiro momento? E para responder a esta pergunta, a única que identifica o problema, o melhor é deixar falar a ciência. Ora os cientistas afirmam claramente o seguinte: desde os primeiros momentos da gestação há uma relação vital que se desenvolve progressivamente entre o feto e a mãe, afirmando aquele a sua alteridade em relação a esta. Todos sabemos que a relação é só própria de pessoas e entre pessoas. Por isso, no estado actual da ciência, começa a não ser compreensível que um Estado de Direito, cuja principal responsabilidade é a defesa e a promoção da vida dos cidadãos, não tenha legislação clara que proteja a vida desde o início; e pior ainda, que se disponha a legislar contra a vida nesta sua fase inicial. Todavia, os factos comprovados pela ciência dizem que o aborto é sempre provocar a morte de um ser humano, no início da sua caminhada de vida pessoal. Por aqui vemos com clareza que o aborto não pode ser considerado em si mesmo uma questão simplesmente religiosa, como pretendem fazer crer alguns defensores da sua legalização. Estes, com alguma frequência, remetem o problema para o foro íntimo da consciência, afirmando que, num Estado laico, onde há separação entre Igreja e Estado, não se pode impor à sociedade a dimensão religiosa do problema. É certo que os cristãos têm mais um motivo para defender a vida humana na qual eles sentem sempre o esplendor da beleza divina, mas não é menos certo que a inviolabilidade da vida humana, desde o seu início até à morte natural é uma questão de direito natural e portanto que a todos obriga. Por isso não podemos aceitar que no esclarecimento das consciências e no debate público se queira transformar o aborto num problema simplesmente religioso ou de confronto entre a Igreja e o Estado. O que está em causa é querer ou não querer optar pela cultura da vida, com todas as consequências, incluindo o alinhamento do Estado e das suas leis nesta cultura da vida. Nós somos pela cultura da vida decididamente e como cristãos estamos dispostos a colaborar com todas as pessoas de boa vontade para acolher todas as mães em dificuldades ajudando-as a vencer a tentação do aborto, sobretudo quando para lá são empurradas por outras pessoas e mesmo por alguns segmentos da sociedade. +Manuel da Rocha Felício, Bispo da Guarda 1 de Janeiro de 2007 (Homilia na Catedral da Guarda)