MENSAGEM DE NATAL 2006 DE SUA EMINÊNCIA REVERENDÍSSIMA D. JOSÉ DA CRUZ POLICARPO CARDEAL-PATRIARCA DE LISBOA “Não havia lugar para eles” Senhores telespectadores e rádio-ouvintes, 1. Na Liturgia desta noite lê-se a narração do Nascimento de Jesus feita por São Lucas. Num determinado momento ele conta: Maria “teve o seu Filho primogénito. Envolveu-O em panos e deitou-O numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc. 2,7). Não havia lugar para eles. O facto é explicado pela circunstância da grande afluência de pessoas a Belém por causa do recenseamento ordenado pelo Imperador Romano. Há sempre uma circunstância para justificar a exclusão. Mas fica clara a insensibilidade de uma cidade à urgência de acolher uma mulher grávida, prestes a dar à luz. Não é por acaso que o Evangelista reteve este pormenor: não havia lugar para eles. Jesus, desde o Seu nascimento, partilha a sorte dos excluídos, dos que não têm lugar. Mais tarde, quando as autoridades civis e religiosas O condenam à morte, negando-Lhe um lugar no seio do Seu Povo, Jesus experimenta na carne que a exclusão pode ser a expressão máxima da injustiça. E percebemos porque é que, na Sua Palavra e nos Seus gestos, Ele se põe, espontaneamente, do lado dos excluídos, lutando por um lugar para eles, quanto mais não seja no coração de alguém que os ame e reconheça a sua dignidade. No Seu caso, o lugar que Lhe fora negado em Belém, há-de conquistá-lo oferecendo a Sua morte e vencendo-a na ressurreição. O Seu lugar é hoje um lugar central no coração daqueles que acreditam n’Ele, incontornável para toda a humanidade. 2. Resolvi sublinhar este aspecto do Nascimento de Jesus nesta saudação que vos estou a dirigir, em noite de Natal, quando há dias fui surpreendido pelo título de primeira página de um grande jornal diário: “Hotéis portugueses começam a assumir opção de não aceitar crianças”. Mais uma vez, noutra circunstância concreta, não há lugar para as crianças. Como em Belém, há certamente circunstâncias económico-sociais que justificam esta exclusão: a comodidade dos outros utentes, a rentabilidade económica do sector, etc. A exclusão das crianças continua a ser problema real na nossa sociedade. O número de crianças sem lugar na família é preocupante. Estou a falar-vos da Casa do Gaiato do Tojal, instituição que a Igreja de Lisboa assumiu, recentemente, à sua responsabilidade e que vem juntar-se a outras obras da Diocese, como a “Casa Mãe” do Gradil e o “Instituto da Sãozinha”, na Abrigada, destinadas a serem a família das crianças sem família. Outras instituições, como a “Ajuda de Berço”, também elas apoiadas pela Igreja, procuram proporcionar um colo aos bebés a quem ele foi recusado. E os filhos dos pais separados comprometidos num segundo casamento? Divididos e, por vezes, disputados entre os pais, essas crianças sentem que não têm lugar no coração dos pais e nas novas famílias que eles constituíram. Os portugueses vão ser consultados, em referendo, sobre a legalização do aborto, a pedido da mulher grávida. Sejam quais forem os motivos que justificam, aos olhos da mulher, essa atitude dramática, é sempre negar um lugar a um ser humano que foi gerado, a quem a mãe, os pais e a sociedade negam um lugar para poder crescer. Em todos estes casos de crianças excluídas, pode dizer-se: não há lugar para eles. 3. E as pessoas idosas? Esse é o seu drama. Muitos sentem que perderam o lugar, que estão a mais. Os lares que os acolhem, e também aí falo com vasto conhecimento da realidade, procuram dar-lhe um lugar, mas não evitam a solidão, não compensam o esquecimento, por melhores que sejam as condições materiais e institucionais de que os rodeiam. Também aí há justificação: o aumento da duração da vida; a mulher no trabalho; a exiguidade da habitação; as condições económicas. Mas a realidade é que não há lugar para eles. 4. Outros grupos mereciam uma referência nesta noite. Penso nas pessoas portadores de deficiência e nos ex-reclusos. Marcados pelo estigma da deficiência ou do seu passado, não é fácil encontrarem um lugar na sociedade, no trabalho, na família. A atenção aos ex-reclusos é urgente, pois se não se sentirem úteis e integrados, podem regredir na delinquência. Saúdo o “Companheiro”, associação católica de apoio à reintegração dos ex-reclusos e que tantas dificuldades tem encontrado nos últimos tempos. 5. Nos últimos meses têm sido abundantes as notícias de empresas que fecham, porque não têm viabilidade ou se deslocam, deixando milhares de pessoas sem trabalho. Numa sociedade em que o trabalho por conta de outrem é, para a maioria da população, a forma da subsistência e, por conseguinte, a garantia das condições que garantam viver a vida em harmonia, o desemprego imposto torna-se uma grave forma de exclusão. De repente essas pessoas sentem, dramaticamente, que não há lugar para elas. Aí as razões justificativas são lógicas e implacáveis: as consequências da globalização, as exigências do sistema económico vigente, quase sempre em crise, o direito das multinacionais se deslocarem para garantirem maior rentabilidade. O fenómeno atinge proporções tais na nossa sociedade, que exige politicas de fundo e não apenas soluções casuais. É preciso aprofundar as exigências éticas de todo o processo económico e dos seus principais agentes, adaptando-as à evolução da sociedade e ao bem-estar dos cidadãos. No que à globalização e deslocação das empresas diz respeito, torna-se urgente a adaptação e a criatividade no âmbito do direito internacional. Enquanto os sistemas económicos gerarem pobreza e causarem exclusão, eles não servem o bem-comum da sociedade. Os sindicatos, legítimas associações de trabalhadores, têm que os defender e promover na busca de soluções criativas e inovadoras. Não podem ficar prisioneiros de ideologias, embora lhes seja legítimo terem princípios inspiradores do modelo de sociedade e das soluções que defendem. Devem ser estruturas de diálogo e não apenas de conflito; devem avaliar a eficácia das acções que desencadeiam, e ser factores de esperança e não de revolta. Numa sociedade justa os primeiros defensores dos direitos dos trabalhadores deveriam ser as empresas e os empregadores, o que não dispensa o papel das associações de trabalhadores, porque não há empresas sadias sem a participação criativa de todos os seus agentes. 6. Jesus nasceu em Belém, começando por fazer a experiência de não haver lugar para Ele na cidade. A quantos O seguem e nos quais Ele infunde o Seu Espírito, convida-os a lutar contra todas as formas de exclusão, na certeza de que só o amor, a generosidade e a paixão pela pessoa humana a podem evitar. Mas o Senhor convida-nos, também, a encontrar um lugar para aqueles a quem o negaram, ainda que seja só na nossa ternura e no nosso coração. A Igreja, se for fiel a Jesus Cristo, estará sempre na primeira linha da luta contra todas as formas de exclusão. Desejo a todos um Bom Natal. E que cada um de nós saiba concretizar este desejo tão próprio do ambiente natalício: dar a alguém que tenha sido excluído, um lugar no seu coração. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca